:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
A VOZ

Não sou eu quem vos fala.

N ão é minha voz que ouvis.

É algo mais, sempre algo mais,

Cordão que une as coisas

E as separa, movimento constante

E inconstante,

pedra ou cal, fruto ou carne.

 

Há sempre algo mais nestas

Palavras, há sempre uma doçura angelina

E um beijo mefistofélico.

E as mãos sangram sob o gesto

Dos cardos e o coração teme

O desconhecido,

Coração solitário

Templo onde habitam lado a lado

Anjos e demónios.

 

Aqui é o lugar da celebração total

O lugar do profano e do sagrado

E os rios correm e cruzam-se

E entrecruzam-se

E as árvores medem-se

No círculo dos ventos, no anel das

Tempestades metafísicas...

 

Que queres pobre coração? Que procuras?

Um deus clemente? Uma pietà sob

Um céu sem estrelas e um mar sem fundo?

 

Recebe as tempestades e a bonanças

Desta vida que te corre nas veias

Recebe-as, impassível,

Recebe-as como um milagre

como valiosas dádivas e lembranças,

Tão valiosas como a mirra e o ouro

Tão valiosas como marfim e prata

E deixa o barco singrar,

De velas pandas, deixa-o singrar,

Rumo ao desconhecido

Deixa-o singrar...

 

E mesmo na hora do naufrágio

Dá graças aos céus,

Dá graças e canta

Pois para ti - ó voz! - cantar é existir

 

Luís Costa, Züschen - MMVII