Mário Dirienzo
"PAULO: ENTRE A LEI E A GRAÇA"

O Caminhante de Damasco e Sua Sombra

O jurista e pensador alemão Carl Schmitt perscrutando a guerra intestina que perfaz a identidade, debruçou-se sobre a essencial relação com o inimigo. Eis a lapidar página sobre o assunto lavrada por esse autor: “Quem é meu inimigo? Quem posso geralmente reconhecer como meu inimigo? Evidentemente, apenas aquele que pode me questionar. E quem pode realmente me questionar? Apenas eu mesmo. Ou meu irmão. Pronto! O Outro é meu irmão. O Outro revela-se meu irmão, e o irmão, meu inimigo. Adão e Eva tiveram dois filhos, Caim e Abel. Assim começou a história da humanidade. Esse é o rosto do pai de todas as coisas. Essa tensão dialética detém o motor da história, e a história do mundo ainda não está no fim. Prudência, portanto, e não falemos de inimigo com leviandade. Classificamo-nos por meio do próprio inimigo. Enquadramo-nos graças àquilo que reconhecemos como inimigo. Maldosos são certamente os exterminadores que se justificam aduzindo que os exterminadores acabaram exterminados. Mas cada extermínio não é senão um auto-extermínio. O inimigo ao contrário é o Outro. Recordemos as grandes proposições do filósofo: a relação consigo mesmo no Outro – esse é o verdadeiro infinito.”

Como já mencionamos, no começo, Paulo era inimigo do cristianismo. Seguiu para a cidade síria de Damasco a fim de combater o cristianismo que se espalhava entre os judeus helenizados que residiam na Síria. Narra o livro bíblico de AtosdosApóstolos que “Saulo” – o apóstolo ainda não havia adotado o nome “Paulo” – partiu, com a autorização dos principais sacerdotes judeus, para Damasco a fim de trazer presos para Jerusalém aqueles que seguiam o cristianismo. Ao aproximar-se de Damasco, “subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor”. Paulo foi ao chão e, então, ouviu uma voz que dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Era a voz de Jesus. Saulo ficou três dias sem ver nem comer, nem beber. Depois, recuperando a visão, foi batizado e passou a proclamar nas sinagogas de Damasco que Jesus Cristo era o Filho de Deus.

Schmitt dizia que o inimigo é aquele que nos questiona. Jesus, resplandecente, questionou a Saulo: “Por que me persegues?” A sombra que Saulo perseguia lançou uma luz que cegou o exterminador do cristianismo. Tal extermínio seria um auto-extermínio. O destino de Saulo era tornar-se Paulo, aquele que estenderia a Aliança de Deus com os judeus para todo aquele que cresse em Cristo.

O Deus que Paulo julgava conhecer era, na verdade, desconhecido. Deus, o absoluto, é sempre o Desconhecido, Aquele que buscamos e adoramos sem conhecer. Aquele que está presente, ainda que não O invoquemos. Paulo nunca supôs que seu ser estivesse repleto de Deus, mas, ao contrário, sempre dividido entre o dom da graça divina e a danação da natureza pecadora.

Há, com efeito, uma disjunção perfazendo o ser: nem transcendência nem imanência – uma iminência, a iminência do instante, que não é o fração de tempo, mas aquilo que insiste; é “instante”, como adjetivo, o que quer dizer “insistente”. Este – esse, aquele – instante é saída da eternidade e, a cada instante, um mergulho nela. Nas palavras do messiânico Walter Benjamin, cada instante é uma brecha por onde passa o Messias.

A iminência do instante é a sombra das sombras: é a sombra da luz que ofusca a treva. A condição humana forja formas permanentes de sombra. Se há a sombra de um rosto, este rosto pode ser a sombra de outro rosto, até daquelerosto que este julga sera sua sombra. O inimigo de que falava Carl Schmitt é a nossa sombra – o arquétipo junguiano – sombra à qual opomos o nosso rosto, uma máscara fixa – persona – cega para a multifacetada mobilidade que compõe a personalidade. Voltando às máximas de Schmitt, digamos: o inimigo, Caim, é nosso irmão, é o Outro, sustentáculo da nossa própria identidade, é o “verdadeiro infinito”, o nosso começo e o nosso fim – e o nosso começo...

Começamos este ensaio evocando a sombra de Nietzsche, cuja bêtenoir é o nosso apóstolo Paulo. Um dos novos comentadores de Paulo, o rabino Jacob Taubes, achava que Nietzsche, na verdade, tinha “inveja” de Paulo, pois Paulo realizara a verdadeira “transvaloração de todos os valores”, colocando a fraqueza como força e a loucura como sabedoria. Ao tentar inverter os valores invertidos por Paulo, Nietzsche estaria dando uma resposta fraca em relação à envergadura da revolução paulina, sendo, pois, apenas sua “pálida sombra”. Embora nossa tendência seja concordar com essa avaliação da peleja entre Paulo e o seu principal detrator, o escopo destas linhas finais não é a emulação, mas o maravilhamento, o assombroso maravilhamento da Angústia, no qual a relação de si consigo é no Outro – o “verdadeiro infinito”.

Sob a forma da eternidade, na qual todos os tempos são simultâneos, eis a cena: antiga Atenas, cidade líder nas artes e na filosofia, mais precisamente, no Areópago, local onde os gregos se reuniam para discutir idéias, discutir os problemas da cidade e ouvir novidades. Aparece Paulo. Imbuído de seu ardor de evangelista, diz aos atenienses que estes são acentuadamente religiosos e que têm até um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. E proclama a boa nova: “Pois esse que adorais sem conhecer, é precisamente aquele que nos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse, pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo o mais. Nele vivemos, nele nos movemos e existimos. Como dizem alguns dos seus poetas: ‘porque dele também somos geração’. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, trabalhados pela imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos.”

A pregação de Paulo tocou a alguns, mas muitos escarneceram dele. Sob a forma da eternidade, Nietzsche está entre os estóicos e epicureus. Um sátiro e não um santo, o extemporâneo pensador do eterno retorno também ri do tagarela judeu.

Embora tenha convertido alguns, Paulo percebeu que a intelectual Atenas não era o terreno fértil para a sua pregação. Ruminando pensamentos, vai rumando para a comercial e luxuriosa cidade de Corinto. “Desventurado homem sou! O conhecimento que infla está em minhas entranhas como um espinho na carne. A roda dos escarnecedores ronda o meu ânimo atormentado. A sombra do perseguidor de Cristo que fui ainda me persegue. Serei eu como esses gregos, um soberbo, escarninho, sequioso de poder? Eu? Serei esse eterno judeu sempre à sombra de impérios que não posso emular? O que sinto e faço, não sou eu que faço. É pecado que vive em mim; é Cristo que vive em mim. O tempo é breve. O que importa é que os que choram vivam como não chorassem; que os que se alegram vivam como se não se alegrassem; que os que usam deste mundo como se não usassem. Pois a figura deste mundo passa.”

Contemplando os pesados passos do apóstolo, Nietzsche começa a sentir por ele um sentimento que abomina: a compaixão. Mas olha para o chão e vê um escaravelho egípcio que se arrastava pelo solo ateniense. Esmaga-o. E o movimento de seu pé vira uma divina dança. Nietzsche, com uma lira em suas mãos, levita, livre dos escrúpulos, carrega os giros do mundo na lépida sola de seus sapatos. Súbito, sob a visão do Areópago, do altar com a inscrição AO DEUS DESCONHECIDO, que vão lentamente se apagando, lembra de um poema que escreveu em sua juventude:

Ainda mais uma vez, antes de prosseguir

E deitar o olhar para diante,

Ergo, na minha soledade, as mãos

Para ti, em quem me refugio,

A quem no mais fundo do coração

Consagrei solenemente altares,

Para que em todos os tempos

Não cesse de chamar-me a tua voz.

 

Depois se acende, gravada profundamente,

A palavra: ao Deus desconhecido!

A ele pertenço, ainda que entre a turba dos malfeitores

Eu tenha até agora permanecido.

A ele pertenço, embora ainda sinta os laços

Que, em meio ao combate, me puxam para baixo

E que, embora eu tente subtrair-me,

Me arrastam para o serviço.

 

Quero conhecer-te, ó Desconhecido,

Que penetras até o centro de minha alma,

Que atravessas minha vida como uma tormenta,

Incompreensível, aparentado comigo.

Desejo conhecer-te, e, inclusive, servir-te.

Cai a Noite dos Tempos, onde não há judeu nem grego, nem escravo nem senhor, nem homem nem mulher, nem... 

Introdução
A Detração de Nietzsche
Dualidade e Dualismo
O Reverso da Medalha
Entre a Lei e a Graça
Um Legado, Dentro e Fora do Templo
O Caminhante de Damasco e Sua Sombra
Bibliografia