Mário Dirienzo
"PAULO: ENTRE A LEI E A GRAÇA"

Entre a Lei e a Graça

Além de Lacan, outro psicólogo de escol fez argutas observações sobre o apóstolo Paulo. O suíço Carl Gustav Jung encara Paulo como um ser humano que, embora julgando ter acesso ao divino, não perdia a auto-reflexão, não incidia em uma atitude unilateral, numa inflação do ego, que tende a neutralizar a diferença essencial entre o divino e o humano. Jung alude à segunda carta que Paulo endereçou aos cristãos da cidade grega de Corinto, na qual o apóstolo relata que foi levado ao terceiro céu.

Paulo, ao invés de só se fiar nesse privilegiado estado extático, sempre pôs às escâncaras a angustiante cisão interna entre o apóstolo iluminado, que ele era, e aquele pobre mortal, que ele também era, e que portava de um mal, que ele não diz exatamente qual é, apenas o chama de “espinho na carne”, assimilando-o a um emissário de Satanás, que o esbofeteava a fim de que ele não se enaltecesse em razão de seu acesso ao divino. Jung julga que o íntimo de alguém que teve uma iluminação espiritual continua ínfimo, mísero, em que pese ser a morada de uma alteridade “sem limites definidos e reconhecíveis”, profunda como os fundamentos da terra e vasta como a imensidão dos céus.

Se, a bem da verdade, Paulo claudica no trato com a sombra, com a pletora de sensações que constituem a vitalidade em seus aspectos básicos e essências, fato que torna sua postura infensa à sensualidade natural e ao salutar senso de humor, sua plena ciência da miséria humana foi um passo para chegar àquele Humor, de que Kierkegaard, um autor cristão, tão influenciado por Paulo, soube captar a ambígua natureza.

Poderíamos, pois, dizer que o Humor é um modo de encarar a sombra que a persona rechaça. Para Kierkegaard, que entende que a existência pode ser encarada sob o prima estético, ético ou religioso, o Humor é um estágio intermediário entre o ponto de vista ético – dominado pelos compromissos, pela obediência à Lei – e a perspectiva religiosa, que estando além do viés estético, que é o reino das sensações e do descompromisso, ultrapassa também o estágio ético. Kierkegaard distingue o Humor da Ironia. A Ironia é o estágio intermediário entre o estético e o ético. O ironista é aquele indivíduo que percebe a sombra fazendo caretas ao arrepio da seriedade da persona. O ironista enxerga a imperfeição humana justamente em suas tentativas de aperfeiçoamento e de atingir a excelência. Ele assiste ao espetáculo do ridículo humano. Assiste de camarote: exclui-se do espetáculo, exclui-se dos compromissos da ética. Se sua acerba crítica fá-lo deixar de ser um mero espectador da ambição, da vaidade, da mediocridade, da estupidez, da hipocrisia, da crueldade e da insanidade, engajando-o em alguma forma de compromisso, o irônico esteta abraça a ética, seus pactos, seus símbolos.

Mas o ironista tem razão, tem paulinamente razão, “as obras não nos salvam”. Talvez sem senso de humor, Paulo percebia a trágica ironia do espinho encravado em sua carne, esse enviado de Satanás que o esbofeteava e debochava de suas pretensões de apóstolo iluminado que foi arrebatado ao terceiro céu. Na aludida passagem da 2 Coríntios, Paulo diz que pedira a Deus que tirasse de sua carne o espinho que o atormentava, mas que Deus lhe havia dito: “A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.”

Essa “graça que basta” é uma suficiência baseada na insuficiência humana. A “Graça”, salvadora, implica a desgraça das ambições humanas. “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte”, arremata Paulo, indicando que os dramas do indivíduo Paulo estavam junto com os percalços e torturas de sua vocação universalizante, mas enclausurada na estreiteza de um destino singular.

Para Kierkegaard, o caminho religioso, rompendo com o frenesi sensorial e com o pendor irônico do ponto de vista estético, acaba por ultrapassar também a esfera ética, porquanto não é sendo bom ou forte que se chega a Deus. Advém o Humor, no qual, ao contrário da Ironia, aquele que está imbuído de tal disposição não se exclui do ridículo que percebe na vida. Aqui, não são os outros que são reles e são vis, mas nós mesmos.

Fernando Pessoa dá-nos um magistral exemplo do que seria o Humor kierkegaardino em seu “Poema em Linha Reta”. Vale a pena transcrevê-lo intotum e determo-nos um pouco em sua análise.

NUNCA CONHECI quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das

etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado

sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora das possibilidades de soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semi-deuses!

Onde é que há gente no mundo?

 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

 

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

O poeta faz uma confissão, uma confissão de sua vileza. Ele se diz “excluído” de um mundo de “super-homens”, excluído por escancarar as suas entranhas nas quais só haveria vileza, enquanto que “os outros”, ainda que possam confessar uma brutalidade, jamais confessariam uma covardia, uma vileza. Nesse Humor, há, deveras, “ironia”, uma ironia que não é a Ironia, aquela que olha de cima, que se exclui do comum dos mortais. A pseudoironia de “Poema em Linha Reta” ao excluir-se dos mortais – os quais não se reconhecem mortais – inclui-se neles. Nada mais vil do que, sendo vil, negar a própria vileza; sendo fraco, negar a própria fraqueza; sendo mortal, querer ser Deus.

Lírico na sua essência, o poeta, despojado das couraças da épica e da carapuça da tragédia, assume o seu ridículo a um passo do sublime: mortal assumido no limiar do Eterno. Talvez chore, talvez ria, mas as lágrimas ou o riso em face da própria vileza caracterizam o Humor kierkegaardiano. Charles Le Blanc, filósofo canadense estudioso da obra do autor dinamarquês, define o Humor “como a tomada de consciência do limite da condição humana”. O Indivíduo assume, a partir dessa consciência, um “distanciamento”, “um certo desinteresse com relação à sua situação existencial”. E arremata Le Blanc: “quando esse distanciamento do humorista for interiorizado, quando o Indivíduo compreender que a fé é a resposta, estará pronto para o religioso”.

E o nosso apóstolo evoca o cerne desse Humor kierkegaardiano, seu distanciamento e sua aproximação da fé, quando diz que “não há nenhum justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só... por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras de lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado.” Se todos pecaram, como acrescenta o apóstolo, “estão destituídos da graça de Deus”. O que nos resta, então, já que toda glória é vã, mera vanglória? Paulo dá a sua resposta: “Porque pela graça somos salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é um dom de Deus. Não vem das obras para que ninguém se glorie.” Assim, há uma glória, mas não é nossa: é de Deus. A partir dessa glória é que podemos nos orgulhar das boas obras, das proezas, da épica que se ancora no nosso trágico destino.

Um guerreiro certamente veria no sinuoso raciocínio de Paulo uma tergiversação de um beato amaricado, incapaz de encarar a honra de uma maneira viril e assumida. Honrado é quem se orgulha dos seus feitos, feitos advindos da própria força de quem é o mestre de sua alma e o capitão do próprio destino. O raciocínio do guerreiro, todavia, é fantasioso. Paulo, mais realista, vê o limite da “função paterna”, cabível a Deus em última instância.

Identificou o “apóstolo das gentes” um princípio para além da Lei, que, sem abolir a Lei, transcende-a. Esse princípio é a “Graça”. E a Graça é a Ironia, mas a Ironia que perde o ser quando, ao invés de ironizar apenas os outros e excluir-se do ridículo, sublimemente, ri-se de si mesma, tornando-se a sua própria derrisão e, seguindo o apóstolo Derrida, – desconstrói-se. É por isso que entre calar, legislar e charlar, dou a inefável palavra ao Alberto Caeiro/Álvaro de Campos chinês, o vetusto e sempre criança Lao-Tsé:

Todo mundo tem riquezas,

só eu permaneço desprovido.

Meu espírito é como o de um ignorante.

Todo mundo é clarividente,

só eu permaneço nas trevas.

Todo mundo tem o espírito perspicaz,

só eu tenho o espírito obtuso,

que oscila como o mar e sopra como o vento.

Todo mundo tem um objetivo definido,

Só eu tenho o espírito confuso de um

[campônio.

 

Só eu me distingo dos outros homens

porque continuo a aleitar-me

no seio da Mãe.

Com efeito, a Lei é santa, severa e santa. Ela acusa a má conduta humana e, em última instância, sentencia o Homem à morte: a morte do indivíduo humano e do gênero humano, sepultado pelos incomensuráveis ditames cósmicos, que, se o determinam, ignoram-no completamente. Até agora apenas tangenciamos, ainda que reiteradamente, o tema da Lei e da Graça, isto é, do universal e seu fundamento pelo Evento, tema este que será tratado com mais vagar no próximo tópico. Por ora, seguindo o teólogo luterano Rudolf Bultmann, digamos somente que qualquer cosmovisão baseada na idéia de Lei é uma visão de mundo atéia, “ainda que conceba as leis do mundo como forças e formas do agir divino, ou encare Deus como a origem do legalismo”, pois Deus não pode ser visto como um soberano prepotente ou como um ente supremo: como “um pedaço do mundo”, alheio à nossa existência. Ao contrário disso, Deus estaria imerso na nossa existência, a qual estaria imersa na Sua. Ou seja, nem Deus é um pedaço do mundo nem o Homem se autojustifica como um sujeito soberano.

Neste diapasão, Paulo – o cristianismo que o possui –, ouve, sob as judiciosas sentenças da Lei, uma voz que balbucia pias “charlatanices”, como um infante, nos limites do inefável, aleitando-se nos eflúvios da Graça, com as suas facetas hilariantes, ridículas e a sua suprema face sublime, salvadora: o rosto de Cristo, no qual estão condensados todos os homens, todas as vicissitudes humanas, todos os seus sonhos de amor, todos os segredos de todos os corações. Cristo, a caricatura de um rei, um rei escarnecido, um quixotesco messias impossível, atrai para si as caricatas sinas dos homens: dos homens casados, fúteis, corriqueiros e sob a vigilância do fisco, dos burgueses ardendo por fidalguia, dos fidalgos que, à revelia de seu nada, portam-se como se fossem algo, dos miseráveis que, com a torpeza, aprofundam a sua miséria, enfim, de toda sorte de homens e mulheres, que vagam sobre a terra com os olhos fixos nas estrelas, que cintilam no firmamento, tilintam no ouro e na prata e reverberam no estrelato.

A querela e o enleio protagonizados pela Lei e pela Graça jazem na oscilação entre o existir e a “justificação”. A justificação é a adequação aos ideais e às ambições. A vontade messiânica de Paulo pende para o existir, o simplesmente ser, independentemente dos atributos e lacunas deste ser, “justificado” pela Graça e não pelas obras, mas dando os frutos que provêm dessa Graça divina. Não ser ruim, para Paulo, é ser amado, divinamente amado, ter nas entranhas a bondade de Deus. Traduzem com perfeição o desiderato paulino as frases lapidares do arcebispo anglicano Desmond Tutu: “Não somos amados por sermos bons. Somos bons porque somos amados.”

Introdução
A Detração de Nietzsche
Dualidade e Dualismo
O Reverso da Medalha
Entre a Lei e a Graça
Um Legado, Dentro e Fora do Templo
O Caminhante de Damasco e Sua Sombra
Bibliografia