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ANNABELA RITA
Persistência da Memória

(Universidade de Lisboa)
(MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha)

 

Abertura

Do lugar:

A capa

O título

A epígrafe

A citação: entre clareza e dissimulação

A citação:
entre clareza e dissimulação

Em todos os casos que tenho observado, está em causa a citação, procedimento evocativo que pode verificar-se diversamente: da mais clara e rigorosa à mais subtil. Passo a ponderar algumas das modalidades do seu funcionamento (e seus efeitos) através de casos exemplares.

1.

Quando clara, assumida, a citação recorta um fragmento que descontextualiza e recontextualiza, num trânsito de repetição e de variação semântica: mantendo, embora, um núcleo duro expresso na sua letra, deixa esfumar o sentido que lhe vinha da relação com o contexto original, dissolução que atrai o da nova inscrição. Em torno desse núcleo semântico vincado, o sombreado da sua história desenvolve uma teatro de sombras, tanto mais reconhecíveis quanto mais presentes forem para os leitores. Por vezes, no entanto, o recorte esbate-se até à quase imperceptibilidade, constituindo o citado em evocado ou aludido .

N' O Primo Basílio , de Eça de Queirós (1), essas diferentes modalidades de citação conferem-lhe uma arquitectura móvel, com motivos instáveis e de diferente natureza, cada um interferindo na leitura e na visibilidade dos outros e tornando, assim, estranho esse mundo que parecia anunciado pela cronística queirosiana, em jeito de fait divers ou de hipótese argumentativa (2), e que emerge do encantamento de ardente penumbra sob o meu olhar.

O discurso queirosiano metonimiza a heterogeneidade, integrando-a: diferentes práticas artísticas (literatura, pintura, música, canto), diferentes cânones estéticos (em especial, o romântico), diferentes materiais (desde as referências que vinculam o romanesco ao real comum da Lisboa de então, até às que lhe denunciam a ficcionalidade).

Tudo começa com a cena de Luísa a ler , denunciando a pregnância da interioridade da leitura feminina emergindo no séc. XIX, motivo de tantos quadros como o contemporâneo Mulher a ler ( Lydia Cassatt ) (1878-79), de Mary Cassatt (3), que mantém a figura feminina oscilante entre protagonismo (pelo exercício de uma actividade culturalmente prestigiada) e objectalidade (pela observação que sobre ela incide).

Depois, A Dama das Camélias povoa-lhe as sombras iniciais ritmadas pela Traviata: Luísa convive com ambas as protagonistas, a literária e a operática, e estiliza-se entre elas.

Mas é com a abertura das janelas (emoldurando um suposto real, parecendo citá-lo) que a luz evidencia outras citações: do Dante de G. Doré, da Medeia de Delacroix (1798-1863) e da Mártir de Delaroche (1797-1856). Dante evoca os temas do amor e da morte recortados sobre o da viagem para o além, e as pinturas apresentam dois possíveis femininos entre os quais vai definir Luísa. O napolitano de biscuit , reflectido, evoca o amor mais terreno e banal, vivido na dança e na vida, na dança da vida, antecipa Basílio, também anunciado no título, no jornal, no comentário e nas recordações de Luísa, sinais que nos intensificam a curiosidade e nos insinuam um desenvolvimento leviano como o bibelot .

As molduras douradas, que os impressionistas rejeitaram pela ostensiva delimitação dos quadros, dirigem o nosso olhar para os quadros A Medeia , de Delacroix, e Mártir , de Delaroche, de meados do séc. XIX, e insinuam cromaticamente o simbólico e o onírico. A Medeia e a Mártir dicotomizam, simbolicamente, as possibilidades do universo feminino: a mulher perversa, assassina dos seus filhos por despeito e ódio ao ex-amante, e a mulher-vítima, abnegada por fé ou amor. Entre elas, cria-se todo um espaço de possibilidades ficcionais, numa sugestão algo vertiginosa para o leitor que deseja defini-las e encontrar a do romance: o universo romanesco consegue, assim, integrar fantasmaticamente uma multiplicidade de outros, paralelos e alternativos, que só vai neutralizando à medida que se concretiza. No entanto, ambas as figuras são informadas de ambiguidade: na primeira composição, o modo de empunhar a adaga permite interpretá-la como a mitologia a propõe, mas também como a mãe que defende os seus filhos de uma ameaça; quanto à Mártir , oscila entre aquela que se voluntariza para o sacrifício e a que o sofre passivamente. A nitidez de ambas as figuras, dependendo também da sua interpretação, esbate-se na minha memória, onde já não estavam fielmente reproduzidas.

As referências multiplicam-se ao longo do texto, obrigando-me a um movimento de memória e de associação progressivamente acelerado. Bastará lembrar o caso da música oitocentista que ritma e semantiza o universo de Luísa: além de La Traviatta (duplicando e amplificando a versão literária que a absorve e faz devanear), ou das suas congéneres amorosas Luccia di Lammermmoor (também ouvida com emoção por Ema Bovary), Norma e A Filha do Pescador , os casos d' O Barbeiro de Sevilha , do Barba-Azul , de Don Juan e do Fausto , ou a sensualidade de Medjé , a dolência de Sonâmbula , da Oração de uma virgem ou dos Nocturnos de Chopin, o pessimismo do fado, etc.. Tudo culmina no lutuoso e antecipador Requiem de Mozart. Texto, personagem e história emergem reforçados estética e semanticamente pela redundância e pela dimensão simbólica.

Literatura e pintura combinam-se na citação, representando o feminino delimitado entre as duas extremadas possibilidades efabulatórias já referidas, entre as quais Luísa, Leopoldina e Juliana se definirão.

2
Mas a citação pode surgir muito mais dissimuladamente, como em Sophia, no conto Silêncio (4), que evoca e/ou me faz evocar o Grito (1893), de Munch, até pela semelhança da sua descrição por ambos os autores (5).

O grito domina o conto de Sophia, monopolizando a minha atenção desde a escuta da personagem. A narração vai dando conta da história da sua sucessão e das suas modulações, da origem e da escuta, inicialmente indefinidas: " uma voz" torna-se "a voz" , adquire "o rosto torcido e desfigurado" (p. 52) e a escuta (" se ouviu o grito", p. 51) é a de Joana. O grito e a sua história chegam-me através de Joana (focalização interna), e tudo acaba quando ela deixa de ver e de ouvir a mulher do grito e o seu companheiro, após "virara[e]m a esquina" (p. 54): essa percepção é, em simultâneo, factor de doseamento informativo e de intensificação da curiosidade relativamente a ele.

O grito e os seus protagonistas surpreendem, conquistam enigmatismo e dimensão existencial pelo anonimato que a sua focalização externa implica: o par em sofrimento adquire estranheza, gera interesse de leitura e impõe-se como representação da dor humana. É também por isso que o procedimento comparativo ensaia a caracterização do grito, buscando rigor descritivo e a comunicação a mim ("Gritava como se...", "Erguia a sua voz como se...", "...como quem...", p. 53), mas também denunciando o esforço de compreensão da sua (nossa) realidade.

Assim sendo, oscilo entre um movimento mental sequencial , sintagmático, e outro lateralizante , de descontinuidade, paradigmático. No primeiro caso, acompanho a história do grito. No segundo caso, deixo que outra história se efabule em mim, evocando outros gritos que as artes me oferecem, os literários, os pictóricos, mas igualmente os cinenematográficos, onde estão potenciados pelo suspense e pelo terror (o de Scream , 1996, de Wes Caven e as suas sequelas, ou Silent Scream , 1990, de David Hayman, ou, ainda, Ancient Evil: Scream of the Mummy , 2000, de David DeCoteau, etc.). Interrompo, assim, a cada passo a primeira história para ponderar e/ou seguir especulativamente as sugestões das múltiplas comparações através das quais o texto se abre em hipóteses ficcionais. Entre ambos os movimentos, a leitura torna-se sincopada e sinuosa, além de se prolongar, de se expandir para além dos limites materiais da obra e de exigir uma flexibilidade mental maior pelo modo como me obriga a conjugar a memória com a imaginação.

O discurso dirige, pois, o meu olhar, simulando acompanhar o da personagem, que institui como ponto de vista organizador da experiência perceptiva, responsável por destacar e hierarquizar o perceptível em função do par "figura" e "fundo" (portanto, de criar o seu próprio objecto representando-o como uma parte de uma suposta realidade), oferecendo-mo, emoldurando-mo . Por um lado, confere-lhe "saliência cognitiva" (6), legitimando a atenção a ele. Por outro lado, realiza um movimento aproximativo relativamente ao facto, da compreensão , enfim, revelando a descrição como "germe de um sistema de variações" (7), como esforço cognitivo: a aproximação vai-se descrevendo nas sucessivas imagens do "grito", imagens que lhe vão construindo uma história , ao mesmo tempo que exprimem a história das hipóteses interpretativas comparativamente colocadas.

Colocado, assim, em perspectiva, o quadro de Munch torna-se acontecimento (até pela deformação dessa imagem original) e capta mais eficazmente a minha atenção, pois "a dinâmica é a própria essência da experiência perceptiva" (8). E o conto afirma uma relação cognoscente com o quadro, denunciando essa relação como uma força exercida no seu próprio desenvolvimento. Aliás, o conto encena essa cognoscência, colocando-o em perspectiva no interior do mundo ficcional face ao olhar da personagem, em que se projectam o da autora e o meu, como que numa mise en abîme simbólica e arquitectónica.

3.

Outras vezes, um texto não cita nem alude , em rigor, a outro, mas certos elementos estruturais são suficientemente vincados para nos fazerem recordar um texto modelar desses mesmos elementos, uma referência incontornável. É uma semelhança (simetria, paralelismo, etc.) que os aproxima, uma relação implicada .

Parece-me poder observar isso mesmo em Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo (9).

As referências estéticas de Gente Feliz com Lágrimas redimensionam as referenciais e esfumam os contornos das personagens e das suas histórias, ecos da História comum, adensando fantasmas estéticos e esteticizando ainda mais o discurso. A consonância reforça as linhas de sentido nucleares da ficção, discurso definido de alteridade, inclusivamente artística.

Por exemplo, a múltipla referência aos "domingos de Lisboa" evoca, irresistivelmente a pincelada cesárica e a sua Lisboa entre a luz ("Num Bairro Moderno") e as sombras ("O Sentimento dum Ocidental"), sombras por onde Gomes Leal arrastou a fome e o choro de um Camões doente, cidade que António Boto afadista com "vielas da desgraça" ( Canções , 1921) e que Almada Negreiros torna trepidante de vida nas "fotografias com a imaginação" ( Nome de Guerra , 1938) ou geometriza, vincando a emigração ( Domingos em Lisboa , 1946-49), tema também de Malhoa e de António José Patrício ( A despedida, 1858), domingos que O'Neill considera "terríveis de passar" pelos rituais do quotidiano ( No Reino da Dinamarca , 1958), etc.. A íntima solidão, melancólica e fascinada de um autor movimenta-se nessa sinédoque do país em busca de alguém que o compreenda: o leitor, Portugal. Vulto habitado de outros.

O drama da gente feliz com lágrimas vertido em canto-pranto literário "de frente para o mar" parece elevar-se de um solo de vozes sucessivas em lenta elaboração simbólica e sinedóquica: o de um eu poético que vai esboçando uma intermitente vocalização de timbre agónico (Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Camões, Cesário Verde, António Nobre, Raúl Brandão, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, Sofia, Vergílio Ferreira, Casimiro de Brito, etc.) e de reivindicada identidade ocidental que, desde Homero, à beira d'água , à beira mágoa , se vai pensando e transformando.

4.

Também há obras que induzem o leitor a assumir uma distância perspectivante e que a modulam esteticamente. Paisagem com mulher e mar ao fundo (1982), de Teolinda Gersão, é um título que sugere uma maior distância de observação e, com ela, uma perspectiva intertextualmente mais abrangente, como procurarei demonstrar num estudo em preparação (10), além de remeter de forma incontornável para a pintura e o género da paisagem, no caso, a impressionista.

5.

A relação implicada na citação dissimulada pode ser arquitectónica, seja no que à estrutura da obra respeita, seja referente a um processo em função do qual ela se desenvolve.

Ainda no caso de Gente Feliz com Lágrimas, constato que, p or vezes, apesar de não serem enunciadas, certas evocações e imagens me assaltam pelo paralelismo, em especial, a d' O Quarteto de Alexandria , tal como Durrell o apresenta, explicando a sua arquitectura, espelho fumado que me ajuda a compreender a arquitectura textual da obra de João de Melo, canto-pranto a diferentes vozes divergindo a partir de um par inicial e temporalizando a história através do paralelismo e das (as)simetrias:

"/.../ tentei realizar um romance em quatro dimensões cuja forma assenta no princípio da relatividade.

/.../ Os quatro romances obedecem a este plano.

Contudo, as três primeiras partes devem desenrolar-se no espaço (daqui utilizar o conceito de 'sósia' onde se podia esperar continuação) e não se encadeiam numa série. Sobrepõem-se, entrecruzam-se, mas as relações entre elas são puramente especiais. O tempo fica em suspenso. Somente a quarta parte representa o tempo e constitui verdadeiramente uma continuação.

A relação sujeito-objecto é tão essencial à relatividade que tentei conduzir o romance simultaneamente na forma subjectiva e objectiva. A terceira parte, Mountolive , é um romance /.../, no qual o narrador de Justine e Baltasar se torna num objecto, i. é, numa personagem." (11)

Mas, tradicionalmente, a janela tem sido imagem da citação. No início, da citação do mundo, do real. Leon Battista Alberti ( Da Pintura ,1435-36) assumiu-a como recorte ou moldura enquadrando o mundo, favorecendo o seu 'transporte' representativo para a tela e Albrecht Dürer apresentou vários instrumentos através dos quais o artista podia 'cientificamente' pintar o real. Outros implicaram-na metaforicamente no conceito de Perspectiva , "metáfora cognitiva", como Claudio Guillen , em Literature as system (12), E. Panofsky (13) e tantos outros.

No Silêncio de Sophia, como vimos, essa janela é evocação subtil que a ficção usa literalmente para enquadrar a evocação de O Grito (1893), de Munch, tornando-a, assim, metáfora do procedimento citacional, equivalente iconográfico das aspas.

Enfim, reflectir sobre esta problemática como uma das modalidades de esteticização do discurso artístico entendido como discurso de segundo nível, que se apropria de matéria estética e a re-elabora, habitado pela memória de si e pelo fantasma da tradição, como a modernidade tem afirmado, é assunto inesgotável e que continuarei a ponderar. Por agora, suspendo-me nos limites aconselhados pelo convite para homenagear um professor com lugar cativo na galeria das figuras tutelares da minha geração académica na Faculdade de Letras de Lisboa: Fernando Cristóvão. Figura sujeita às metamorfoses da nossa memória, mas sempre modalizada pelo afecto e pelo respeito.

Abril de 2004

 

(1) Edição utilizada: a de Lisboa, Livros do Brasil, s.d..

(2) Em crónicas de Março e de Outubro de 1872, ambas coligidas na recolha de Uma Campanha Alegre (Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 322/342 e 387/405).

(3) Que inspira ainda hoje a ficção, como o prova o romance Lydia Cassatt lisant le journal du matin , 2002, de Harriett Scott-Cheesman e Mirèse Akar.

(4) Sophia de Mello Breyner Andresen. "O Silêncio" (1966) in Histórias da Terra e do Mar , 7ª ed., Lisboa, Texto Editora, 1994, pp. 45/55.

(5) No seu diário, Munch descreve assim a experiência que o levou a pintar o quadro:

"Eu estava a passear cá fora com dois amigos e o Sol começava a pôr-se - de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue -. Eu parei, sentia-me exausto a apoiei-me a uma cerca - havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade - os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, em pé, a tremer de medo - e senti um grito infindável a atravessar a Natureza ." . (cit. por Ulrich Bischoff. Munch , Lisboa, Taschen, s.d., p. 53, sublinhados meus).

A descrição de Sophia assemelha-se-lhe de modo incontornável: "Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro." (p.51) faz ecoar o que Munch refere.

(6) Fernando Gil. Modos da Evidência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s.d. [ 1998 ] , p. 198.

(7) Idem. Idem, p. 211.

(8) Rudolf Arnheim. Arte & Percepção Visual. Uma Psicologia da Visão Criadora, 2ª ed., S. Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1984, p. 409. Cf. também sobre este assunto pp. 363/400.

(9) Edição utilizada: Lisboa, Dom Quixote, 1988.

(10) Refiro-me a um ensaio que, a convite de Teolinda Gersão, integrará o volume dedicado à obra da autora na colecção "Faces de Penélope", da Roma Editora, volume no prelo e com publicação prevista ainda para 2004

(11) Laurence Durrell. Baltasar , Lisboa, Ulisseia, 1991, pp. 5/6.

(12) Princeton, Princeton University Presse, 1971; "On the Concept and Metaphor of Perspective" (1966), pp, 283/371.

(13) La Perspective comme Forme Symbolique , Paris, Minuit, 1975.