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ANNABELA RITA
Persistência da Memória

(Universidade de Lisboa)
(MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha)

 

Abertura

Do lugar:

A capa

O título

A epígrafe

A citação: entre clareza e dissimulação

A epígrafe

Do exterior, a capa e o título anunciam a ficção. No interior, a epígrafe poderá orientar de modo mais rigoroso o texto que a exibe no seu limiar.

E a epígrafe pode ser única, singular. Nas Viagens na Minha Terra (1), Garrett cita em epígrafe X. de Maistre, anunciando-as como texto sob o signo da originalidade, surpreendente para o leitor, tanto "comme une comète inattendue [que] étincelle dans l'espace!", justificando o gesto inovador sob o signo do citado e no quadro de uma tradição em que o outro também se inscreve: a literatura de viagens no seu sentido mais lato, que vai dos antigos e clássicos "espelhos da natureza" até à moderna literatura que assume a viagem como tema. O capítulo I abre, aliás, com a justificação legitimadora do novo modelo, da proposta garrettiana:

"Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo - entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica."(2)

Mas a epígrafe pode também multiplicar-se, elegendo diferentes obras, tradições, autores, cada uma com a sua função.

Por exemplo, no limiar de Mau Tempo no Canal (3), de Nemésio, as epígrafes detêm-me. Da primeira (de uma obra técnica) à última (de uma obra literária), como que traçam um itinerário de esteticização sinalizando o próprio trabalho da escrita ficcionalizadora do real: a elaboração transfiguradora.

A primeira epígrafe, citada de Charts of the Anchorage and Breakwater of Horta and Fayal Channel , enuncia "Instructions to Captains of Steamers calling for coal, provision or repairs", instruções necessárias aos "barcos" do sujeito de escrita e do leitor a que Vitorino Nemésio dedica a obra na página anterior (Mário de Castro), leitor que nos representa ou em que me projecto durante a leitura, em cumplicidade e companhia : a acostagem a um mundo, ficção do real. O que implica aproximar-me dele conduzida por quem o conhece bem, vê-lo crescer para mim, definindo-se, volumetrizando-se, pormenorizando-se, temporalizando-se e, por fim, absorvendo-me na sua vivência. Neste sentido, a escrita revela-se apresentacional. Como nos relatos de viagens semelhantes à Carta de Pero Vaz de Caminha, tradição aqui convocada de um modo que denuncia como ela contamina muita ficção moderna com os seus mecanismos retóricos de orientação da leitura.

A escrita assume, assim, uma dimensão representativa: o mundo ficcional é sinédoque e símbolo de um real envolvente comum ao romancista e ao leitor a que ela é dedicado (por extensão, aos leitores), real onde ambos se deslocam em direcção ao espaço insular. Mas também sugere a leitura como uma travessia guiada de um (real abrangente) ao outro (sua representação ficcional), através de um meio instável como o mar, o que denuncia um projecto pedagógico: de um romance social e culturalmente (re)formador e de um modo de escrita orientador da leitura.

Além disso, as instruções de navegação indicam um ponto de ancoragem no espaço e no tempo: o microcosmos açoreano do primeiro quarto do séc. XX (no rescaldo da 1ª guerra mundial) e, por extensão concêntrica, Portugal e a Europa em revolução industrial e mudança sócio-cultural. (4)

 

(1) Edição utilizada: a do Porto, Edições Caixotim (colecção "Obras de Almeida Garrett", nº1), 2004.

(2) Ibidem, pp. 73/74.

(3) Edição utilizada: a de Lisboa, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s. d. [1994].

(4) Sobre este e outros aspectos da obra, cf. meu ensaio "Vitorino Nemésio: nocturno, ou romance com instruções de navegação", Islenha (31) , Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Julho-Dezembro de 2002, pp. 168/172, que integrará o vol. II de No Fundo dos Espelhos (a sair).