As palavras de Garrett na célebre “Memória” lida em conferência no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843 e que começámos por citar em epígrafe poderiam mutatis mutandis {“o cinema é a imagem, etc. etc.” e de modo muito particular na parte em que se fala de “influir sobre uma sociedade [sob incontáveis aspectos, hoje como ontem, confrangedoramente abúlica, amorfa e] indefinida”}; ter sido proferidas por João Botelho, o realizador desta (vá-se já adiantando: cuidada, originalíssima—e porque não?— em diversos momentos, verdadeiramente empolgante) re/visão do “Frei Luís de Sousa” de Garrett que é “Quem És Tu?”.
É preciso talvez dizer, para começar, que ela, a versão em causa da tragédia garrettiana, opera, com efeito, entre diversas outras coisas, claramente, como a expressiva corroboração de um princípio genérico de natureza (chamemos-lhe: teórica) que consideramos essencial, do ponto de vista das tais relações ideais entre o individuo e a cultura ou entre o individuo e a sociedade que Garrett aborda na epígrafe, princípio que, pela relevância de que julgamos revestir-se, aqui temos convictamente vindo a defender, sessão após sessão, do nosso “Cine-clube na Biblioteca”; princípio esse a que chamámos da “educada transgressão” ou (aliterando um pouco…) da “disciplinada, dialéctica, desejável desobediência” segundo o qual, obra cuja sucessiva apropriação ou… “leituração” pelos diversos públicos que com ela se forem cruzando ao longo do tempo e mesmo do espaço em que a sua vigência durar que não se saiba prestar utilmente a sucessivas (e, lá está: “educadas”, consequentes, articuladas) des-construções e contínuas re-construções; obra que, numa palavra, não se disponha, mais ou menos, livre e naturalmente, a dialogar de modo activo e sempre consciente com todos os tempos através do diálogo vivo com o seu próprio tempo carece, no fundo, inevitavelmente sempre de algum sentido cultural e está condenada a ficar, de um modo ou de outro, sempre fatalmente refém de um único tempo—senão (o que ainda é pior!) de uma única visão do mundo ou de um único pensar. |
Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor. |