CARLOS MACHADO ACABADO

QUEM ÉS TU?
Um filme de João Botelho
baseado no “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett

auditório municipal almeida faria

INDEX

Introdução

O “Frei Luís de Sousa” de Garrett: proposta de “leituração” pessoal 

“Quem És Tu?”—o filme

Sugestões adicionais de (meta?) leitura do texto de Garrett

“Quem És Tu?”—o filme

E posto isto, passemos, então, à abordagem do filme propriamente dito.

Filme belíssimo, filme de ideias, filme… inteligentíssimo, “Quem És Tu?” impressiona-nos, desde logo (é uma impressão subjectiva, é verdade, mas é essa a primeira impressão que do respectivo visionamento “a quente” formulámos…) como um excitante mecanismo de relojoaria…

No documentário que acompanha a referida edição DVD do filme de Botelho, isso fica, de resto, perfeitamente corroborado—e claro.

Confesso admirador de Caravaggio (o revolucionário pintor e fugaz “fresquista” italiano) Botelho vai lá buscar muito do que de esplêndido em termos visuais há no filme (o que não “trouxe” do Bacon ou do Greco) desde as cores ao gosto pelas diagonais perturbadoras, desde a sugestão tentadora, erotizante, dos cortinados a certos planos de facto arriscadíssimos: os tão premonitoriamente cinematográficos “picados” e “contra-picados” do truculento mestre italiano).

Mas falemos, um pouco mais, de cores…

Concebido como um voluptuoso tecido de “seda ou veludo visuais”, o filme abre deliberadamente a vermelho e verde (o vermelho carnudo e seminal de Caravaggio chocando-se nos baços, meditativos, turvos, carrancudos e quase misantrópicos verdes do Greco, a outra confessa influência plástica do filme) sendo que esta particular teoria cromática corresponde à fase do texto em que a ilusão de vida se conserva ainda genericamente possível, isto é, ao primeiro acto/andamento da tragédia—como do filme.

À medida, porém, que da cena se vai esvaindo a qualquer aparência de vida, vai ela ganhando progressivos tons de azul—para acabar, no auge do drama numa espécie de quase preto-e-branco pré-tumular, fúnebre—mortal.

Mas não são apenas o Greco e Caravaggio a fazer sentir a sua influência no tratamento dado por Botelho ao “aparelho cromático” do filme: Francis Bacon, o escatológico Bacon, “aparece” com toda a força e poder do sangue e da carniça na espectacular sequência do pós-batalha: 3 minutos e 40 segundos ininterruptos de “travelling” lateral organizados no sentido da

Em síntese: dos homens (cadáveres) para os animais (ironicamente o último sinal de vida neste caso é irracional…) e destes para a imobilidade definitiva do vazio e da terra. Esta última, uma sugestão que encontra, aliás, eco no fim, quando (repetindo, aliás, a impressiva solução de encenação de Lopes Ribeiro) Botelho apresenta Manuel e Madalena prostrados no chão, fundindo-se (dir-se-ia: simbólica ou figuradamente) com a pedra—em pleno processo de mineralizar-se definitivamente?...

De qualquer modo, na provocatória sequência/travelling de Alcácer-Quibir, o mundo já se imobilizou por inteiro. O próprio sentido do “travelling” (para o lado) sugere a descentração e a deformidade ou a imperfeição absoluta, des/estrutural, do movimento, a violação deliberada do Tempo, a expressão simbológica da acinesia: é uma deslocação que não vence espaço, antes encontra nele resistência e o torneia e ilude—e se ilude: é um falsíssimo, completamente ilusório progresso, uma mera (e tristíssima!) “reflexão puramente espacial e visual”, completamente esvaziada de acção e, sobretudo, de eficácia.

Ali, só nós, espectadores, estamos vivos—embora solitários, isolados num universo onde, ao invés, tudo já morreu—ou se converteu definitivamente em vazio ou em mineral: onde o único movimento é o do cavalo que agoniza ou o da pena do chapéu do pajem/efebo—movimento ilusório, ele mesmo: tão ilusório quanto vazio de significado e propósito: já não é realmente um movimento—é o reflexo puro de outro, completamente aleatório e exterior—o do vento aflorando, indiferente e frio, a matança.

De facto, a acção do filme não apenas termina na Morte—começa também com ela.

A tal ponto que são (juntamente com a imagem-símbolo de D. Sebastião) os corpos calcinados da batalha (quatro deles) que fazem a ligação desta com o quarto de Maria e com o “Frei Luís de Sousa” propriamente dito, naquilo que podemos talvez entender como uma (inconsciente?) “citação”/ homenagem do realizador a duas referências clássicas do cinema: Joseph von Sternberg e Marlene Dietrich, a “imperatriz vermelha”.

Aliás, falando de sugestões ou influências no filme, é tentador ver na surreal composição da sala dos quadros uma outra homenagem—ou um outro tributo, desta vez ao génio de Orson Wells e do seu lendário Citizen Kane.

Aí, nessa sala, Botelho mistura e confunde tão hábil quanto inquietantemente as próprias dimensões, as efectivas proporções da realidade com as da sombra ou revérberos imóveis daquela (o real com a ideia ou ideias de si—arrancadas a si) numa espécie de fantástica corroboração do significado pretendido pelos seus íngremes “plongés”, usados para sugerir a pequenez e a insignificância do humano perante o peso de uma História completamente coagulada—e terrivelmente ameaçadora (cf. por exemplo, a sugestão criada pela omnipresente espada do “cavalheiro” de Greco/D. João de Portugal, a propósito da qual Botelho usa expressamente o termo “violação”).

Já agora, falando de possíveis “citações” do filme, é tentador, sem dúvida, aproximar, por exemplo, também—com a reserva que prudência impõe, claro!—a sequência do terceiro acto em que Manuel de Sousa Coutinho, está sentado, profundamente acabrunhado, nuns degraus de pedra (em mais uma cena, aliás, extremamente bem organizada, com as cargas volumétricas e as sugestões de luz e sombra perfeitamente significadas, repartidas e distribuídas por todo o espaço do campo) da mítica sequência das escadarias d’ “O Couraçado Potemkine” de Eisenstein onde mais uma vez a diagonal é rainha e a sugestão de descentralidade, de desequilíbrio e de instabilidade e angústia visual que ela traz são aflitivamente evidentes.           
            
Mas há, no filme, (voltando a falar de Caravaggio, mestre absoluto do claro/escuro) de facto uma espécie de inteligência plástica extrema onde a dialéctica da luz e da sombra (que é também a dialéctica da Luz e das sombras, da Razão e da loucura, da racionalidade e do irracionalismo) possui uma importância verdadeiramente crucial. O cuidado posto, por exemplo, por Botelho na encenação do diálogo do primeiro acto entre Madalena e Telmo é, efectivamente, notável e corrobora à saciedade aquela nossa ideia inicial de todo o filme ter sido concebido e realizado como um espantoso mecanismo derelojoaria sémica”, se assim nos é permitido dizer. O modo como o realizador coloca, com efeito, as figuras humanas, cada uma delas no centro de um halo luminoso que as articula entre si e, nesse sentido, as une e simultaneamente isola por completo é, de facto, notável

E, depois, há o modo como na luz e na sombra as figuras vão continuamente imergindo e emergindo, num discurso subliminar subtilíssimo onde as ideias ou as sugestões de efémero e de transitório, de virtude e de pecado, de poder e de fragilidade (leia-se: de Morte impendente) são outras tantas presenças (uma transpresencialidade) terrível, ameaçadora e, ao mesmo tempo, atormentada, tragicamente desesperada.         

E tal como nos exemplos que citámos de Caravaggio (os retratos de Maffeo Berberini ou de Alof de Wignacourt) há também esse soberbo expediente de introduzir deliberadamente a sugestão inquietante de desconhecido no campo, através do recurso perturbador de colocar as figuras a dialogar consistentemente com a ausência (de alguém ou de alguma coisa—de quê?) ou, se assim se preferir, com a inexistência e o próprio vazio.    

Mas falemos, ainda uma vez, do tema que tem sido recorrente na programação do Cine-clube: o motivo da transgressão e da desconstrução.

Que dizer, por exemplo, neste domínio em particular, da ideia de fazer de Telmo um “vampiro” e um “espião”?

Haverá transgressão mais evidente—sobretudo, quando pensamos no modo como João Villaret compôs o seu próprio Telmo na versão de Lopes Ribeiro?...

Do “seu” Telmo diz, pois, Botelho textualmente: “Telmo é uma espécie de vampiro”. E logo acrescenta: “Vampiro, criado de vampiro”

E da chegada de D. João afirmará que “vem imolar a sua presa”—que é, claro, D. Madalena

Virá “imolar a sua presa” mas é já, também ele (como Manuel de Sousa, aliás) no fundo, um “carrasco frágil”—um algoz cuja espada no retrato (detalhe relevante!...) ressurge já, nesse “fim do tempo” que é o final do segundo e todo o terceiro acto da tragédia, metamorfoseada em bordão, em cajado a que se ampara odebilíssimo, sobretudo inerte verdugo” em que ele se tornou… 

Porque nesta tragédia, também os algozes são, afinal, vítimas: grande parte da tragédia da portugalidade aqui proposta consiste exactamente, a nosso ver, na fatalidade de o passado reincidir.

Trata-se de uma espécie de maldição que impende sobre todos os presentes mas de que não escapa o próprio passado que, à semelhança de Nosferatu ou Drácula (a clássica criação de Bram Stoker) ou do espectro de Hamlet-pai foi condenado a errar pelo tempo, impedido de repousar numa morte que o liberte finalmente a ele próprio da desventura de ter de vir sempre, algum dia, ainda uma vez, assombrar o presente.     

Uma parte relevante do mérito de Botelho consiste, aliás, exactamente no modo como soube inteligentemente evitar o esquematismo e a unidimensionalidade das suas personagens.

“Todos os personagens são contraditórios”, dirá expressamente no documentário já aqui por diversas vezes referido.

Maria, por exemplo, como vimos, é, provavelmente, a expressão máxima da contradição e da complexidade—da contradição que é o próprio sebastianismo.

Capaz do pior e do melhor (tão depressa sonha com a loucura de, depois de Alcácer-Quibir, ver “o que quer que seja que se pareça com uma batalha”) como parece, logo a seguir, encarnar a própria esperança (vaga e indefinida, sempre, embora mas aí já reconhecivelmente positiva e—quase?—madura) de energia e regeneração nacionais, exigindo que se “emende” o mundo e responsabilizando directamente “o rei” e os “governadores” pela tarefa histórica de fazê-lo.  

Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.