Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

Aspectos da cristologia
JOÃO DUQUE

INDEX

Introdução
Percursos cristológicos
A questão da identidade
Conclusões

 

1. Percursos cristológicos

1. Embora se admita hoje, cada vez mais claramente, que os primeiros séculos do cristianismo e da respectiva reflexão teológica apresentaram já uma enorme complexidade e pluralidade de posições, admite-se de forma mais ou menos consensual que houve uma tendência que predominou e se afirmou mais fortemente nas primeiras definições dogmáticas, todas elas, como se sabe, de conteúdo preponderantemente cristológico. Tornou-se já habitual denominar essa tendência «cristologia do logos», precisamente a partir do conceito central nela utilizado.

Ao repensar, no contexto da cultura helénica e partindo de determinadas pretensões próprias do cristianismo, a figura histórica de Jesus, os primeiros cristãos, sobretudo pela boca e pela pena de alguns dos mais salientes pensadores de entre eles (mais tarde denominado «Padres da Igreja»), recorreram cada vez mais frequentemente à categoria grega do logos. Dos vários significados que essa categoria possuía, salientaram-se sobretudo a sua pretensão de universalidade e a sua espiritualidade. Com base nesses elementos, a cristologia que neles se baseou ficou logo predeterminada, para os séculos seguintes, nos seus aspectos positivos e negativos.

Ao recorrer à universalidade do logos, enquanto elemento que anima todo o cosmos e todo o ser humano, a transposição da história concreta de Jesus para essa categoria permitiu que a referência à pessoa histórica de Jesus de Nazaré se distinguisse da referência a qualquer outro fundador ou outra qualquer personagem histórica. Tratava-se, antes, de um mediador divino (não simplesmente mediador do divino), cuja actividade salvífica suplantava a particularidade das suas relações culturais e pessoais, a fim de se orientar para todos os seres humanos, sem distinção de nacionalidade, etnia, sexo, estatuto social, etc. Dessa universalidade cristológica brotou a vocação incontornavelmente universal do cristianismo, que rebentou com todas as identificações culturais que ainda dominavam o universo judaico (confins étnicos do «povo de Deus) e mesmo grego (limites políticos da polis).

Por outro lado, essa universalização implicou uma consequente espiritualização, já que a categoria do logos se assumia como universal precisamente por ser de ordem espiritual, independente das condições particulares da matéria e mesmo da carne. No interior dessa espiritualidade é que começam a definir-se, então, as categorias teológicas relativas ao Cristo, como Filho enviado do Pai, ou Logos que se faz carne, sem deixar de ser o Logos eterno.

O acontecimento histórico da vida real de Jesus de Nazaré, sobretudo a sua paixão e morte, passam para segundo plano, sendo mesmo ultrapassadas em certas cristologias, para tudo se fixar na relação eterna entre Pai, Filho e Espírito, no seu significado de salvação espiritual ou mística, cada vez mais interiorizada, para o crente individual. A devotio moderna, séculos mais tarde – assim como muitos elementos da reforma protestante, para não falar na própria cultura moderna do sujeito e pós-moderna do indivíduo – brotará desta interiorização e espiritualização da pessoa de Jesus e, de forma analógica, do cristão que com ele se identifica.

Esta cristologia do logos não foi a única, logo desde o início das reflexões teológicas. Mas foi a que se sobrepôs, marcando depois a maioria das cristologias posteriores. Para esse tipo de cristologia, assumiu papel central a encarnação, não propriamente enquanto acontecimento histórico, mas enquanto processo pelo qual o Logos eterno assume carne humana. Paradoxalmente, a fixação na encarnação provocou uma espécie de esquecimento da «carne» real, na história humana, reduzindo tudo a um processo divino, cuja realidade histórica é mais ou menos aparente.

Grande parte dos conflitos dogmáticos dos primeiros séculos, com as consequentes condenações a afirmações solenes, poderia ser revista – no sentido de ser re-lida ou de novo compreendida, não propriamente alterada – com base no questionamento desta opção teológica – pelo menos em parte. Mas não é isso o que aqui nos ocupa, até porque implicaria um trabalho sem fim, sumamente complexo do ponto de vista histórico e teológico (3).

2. Durante os séc.s XIX e XX, por diversas influências – também de cristologias antigas – assistimos a uma reformulação da cristologia, através da reorientação para a história humana, presente na história concreta de Jesus Cristo, sobretudo enquanto kenosis ou auto-aniquilamento de si mesmo. A centralidade da encarnação foi cedendo lugar à centralidade da paixão, como manifestação máxima da real pertença de Jesus Cristo à humanidade sofredora, em que se fez carne.

Esta «cristologia da kenosis» centrou-se no percurso humano de Jesus, na sua actividade global como anunciador vivo do Reino de Deus e, sobretudo, na sua actividade de solidariedade com as vítimas sofredoras, como forma de redenção do sofrimento e da morte. Não se trata, apenas, de uma qualquer manifestação humana do logos eterno de Deus, mas de uma manifestação na carne real da vítima sofredora – precisamente em favor dessa vítima, e não para aprovar a vitimação. Essa manifestação não anula a relação eterna ao Pai, mas é precisamente a sua realização máxima, na história, sendo também a sua revelação fundamental. Os acontecimentos da vida de Jesus tornam-se, assim, o único ponto de partida para uma cristologia fiel à sua pessoa, sem dissoluções teóricas nas categorias da filosofia grega.

3. Como noutras áreas, também aqui a pluralidade teológica só se torna problemática quando não é assumida, isto é, quando cada posição se pretende única e se fecha em si mesma.

A cristologia do logos, na sua pretensão universal, salienta a divindade de Jesus, o poder salvífico da sua acção, a revelação do próprio Deus na sua pessoa; salienta, além disso, a continuidade dessa presença e dessa acção, sobretudo no interior de cada indivíduo, por actuação do Espírito, como transformação espiritual. Deixa em segundo plano, contudo, o significado da actuação concreta de Jesus de Nazaré, do percurso da sua paixão. Por outro lado, ao situar-se ao nível do esquema gnóstico da relação entre o «uno» supremo e o logos mediador, acaba por paradoxalmente correr certos riscos de diminuir a própria divindade de Jesus, num esquema de intermediários salvíficos; e o automatismo dessa salvação, pelo poder de Deus, através dos intermediários, hierarquizando o processo, reduz o ser humano, como último elo da hierarquia, a resultado do destino, pouco autónomo e dificilmente assumido como sujeito livre do seu acolhimento da salvação. Para além disso, a dimensão carnal do ser humano é tendencialmente desprezada, sendo este reconduzido à sua participação num espírito único e universal.

Por seu turno, a cristologia da kenosis centra-se na realidade histórica, numa profunda aliança de Jesus Cristo com todo o ser humano, sobretudo com os mais débeis e indefesos; salienta, assim, a característica fundamental da revelação em Jesus Cristo, que é precisamente o amor de doação pelos outros, colocando-se no lugar dos proscritos da nossa sociedade. Mas, por outro lado, Jesus poderia ser visto, assim, apenas como um ser humano solidário com os outros, sem que isso tenha qualquer significado salvífico e revelador e sem que isso tenha, pois, nada a ver com a relação entre Deus e o ser humano – deixaria de ser o Cristo.

Nos mais diversificados caminhos da teologia, percorridos ao longo do séc. XX, estas duas tendências fundamentais da cristologia, sobretudo a segunda, assumiram variadas fisionomias, de que aqui apenas poderei referir algumas, de forma algo esquemática.

Tendo a generalidade das cristologias assumido o perfil histórico, isto é, a concentração na pessoa concreta de Jesus de Nazaré como ponto de partida das suas reflexões, o certo é que algumas o fizeram com intuito mais claramente dogmático, quer numa linha claramente transformadora, quer em continuidade com a teologia clássica.

a) Algumas cristologias pretenderam enquadrar a figura de Jesus Cristo no interior da problemática moderna de reflexão do sujeito humano sobre si mesmo e o seu destino. São já conhecidíssimas a perspectiva existencialista de Rudolf Bultmann, assim como a teologia antropológica de Karl Rahner e mesmo a versão «humanista» de Hans Küng. Mais recentemente, René Girard e Eugen Drewermann colocaram o problema antropológico mais ao nível das estruturas profundas e encobertas do ser humano (arquétipos), quer ao nível do relacionamento social (violência), quer ao nível da vida psíquica (subconsciente), explorando nesses campos o significado do papel salvífico de Jesus Cristo, seja como superador de toda a violência sacrificial, seja como terapeuta (salvador) das angústias, que conduziriam o ser humano à perdição.

b) Outras cristologias actuais, mais em continuidade com as tradicionais, situam-se no interior de questões de sempre da tradição teológica. Assim, Bernard Sesboüé, por exemplo, relê a cristologia à luz da soteriologia, ou seja, da necessidade de repensar as categorias que reflectem sobre a realidade da salvação, realizada por e num mediador único, humano e divino. Bruno Forte, por seu turno, lê esse processo salvífico como um processo que constitui a história do próprio Deus, na nossa história, enquanto história trinitária. Situa-se na linha de Hans Urs von Balthasar, o qual insere, por assim dizer, a cristologia na teologia trinitária, encontrando na cruz o seu ponto de confluência, como ponto de confluência da relação entre o Pai e o Filho, em auto-doação mútuas.

Situando-se embora no interior da história e mesmo por referência preferencial à paixão, essas cristologias não deixam de ser preferencialmente dogmáticas e quase cristologias do logos, pois compreendem Jesus Cristo e a sua actuação no interior da relação eterna Pai-Filho, sendo um a Palavra-expressão do outro, num drama que envolve a história humana e no qual actua o Espírito.

c) Outros partem de considerações centrais sobre essa história humana, sobre a necessidade de salvação, sobre a possibilidade dessa salvação, frente às experiências negativas de perdição. Em paralelismo com outras leituras da história – sobretudo as leituras globais hegelianas e as leituras revolucionárias marxistas – elabora-se uma cristologia que encontre na história de Jesus Cristo – e na continuidade dessa história na história da humanidade – uma proposta que mantenha a esperança numa salvação doada por Deus, mesmo se construída humanamente no processo da mesma história. Em diferentes perspectivas, podemos inserir aqui as cristologias de Wolfhart Pannenberg – que considera Jesus como antecipação do sentido global da história, que parece perdida em si mesma – e de Edward Schillebeeckx – que lê a história de Jesus em contraste com as histórias de perdição e, por isso, como antecipação de sentido para as histórias de sofrimento.

d) Mais próximos do Jesus histórico, mas fortemente interessados na valência dogmática da cristologia, alguns teólogos – como Jürgen Moltmann – concentram-se no significado messiânico da actuação de Jesus e nas possibilidades desse messianismo para todos os tempos. Ou então – como Christian Duquoc – vêem em Jesus o protótipo do homem livre, do profeta que anuncia um Deus oculto, que parece ausente mas que, nessa ausência, revela uma outra realidade, que contesta a nossa realidade e a situa sempre apenas a caminho de um Deus de quem somente temos indícios e que não se manifesta de forma forte e evidente.

Esse Jesus, homem livre, é também sobretudo o libertador, cujo modelo de libertação, tal como a realizava em relação aos pobres e excluídos do seu tempo, se torna o modelo de libertação cristã, na actualidade. A «teologia da libertação» constrói a sua cristologia centrando-se nessa categoria, que explora no contexto de determinadas visões da história e da sociedade.

A «teologia asiática», por seu turno, explora na história de Jesus o que o relaciona com elementos fundamentais da espiritualidade e religiosidade asiáticas, como formas libertadoras relativamente a esquemas sociais e mesmo religiosos, o que transforma a cristologia num potencial, simultaneamente, de inculturação e de crítica cultural. Na linha da inculturação de alguns traços da figura de Jesus Cristo trabalham hoje também algumas «teologias africanas», que exploram sobretudo o papel do chefe, do sábio, do antepassado, para transpor determinados aspectos da figura histórica de Jesus e da sua missão salvífica para o contexto existencial das africanas e dos africanos de hoje.

A «teologia feminista», por seu turno, muito na linha das diversas teologias da libertação, pretendem fazer descolar a cristologia de certa identificação masculina de Jesus com o homem, o que terá servido de justificação para muitas características patriarcalistas da própria Igreja. A emancipação da mulher – sobretudo da cristã – frente a essa situação patriarcalista, implica mesmo que, por vezes, apenas se considere a missão de Jesus nessa perspectiva relativamente revolucionária, independentemente da sua divindade ou humanidade.

Noutra vertente, a «teologia das religiões», que hoje assume um lugar cada vez mais saliente no conjunto da investigação teológica, também passa pela cristologia como um dos seus lugares centrais, já que se trata de questionar a unicidade e exclusividade de Jesus Cristo, como salvador universal. Em que termos poderá essa afirmação central da fé cristã ser mantida, sem desconsiderar ou invalidar o valor salvífico de outras religiões e possibilitar, desse modo, um correcto diálogo com elas? Nas reinterpretações dessa pretensão cristã, onde encontrar os limites, para além dos quais a referência a Jesus deixaria de ser cristologia, propriamente dita? Estas e outras questões irão colocar-se no centro das cristologias dos próximos anos ou décadas.

d) Após os efeitos do método histórico sobre a teologia – que fizeram com que, sobretudo desde o séc. XX, surgissem cristologias que mais pretendiam ser história da vida de Jesus do que propriamente cristologia – o interesse por descobrir a verdadeira fisionomia dessa personagem nunca desapareceu. Actualmente, embora se tenha superado o historicismo dos primeiros tempos e se assuma que o que interessa não é apenas saber quem foi esse Jesus, e o que fez e disse, tal e qual, ressurge uma nova concentração na fisionomia da sua identidade pessoal e da sua actuação. Inserindo-o no seu contexto sócio-religioso, ele é interpretado como um judeu do seu tempo, que tomou determinadas posições em relação aos assuntos e formas de vida em voga. Uns (como John Dominic Crossan) vêem-no como anunciador do Reino de Deus, a realizar numa comunidade humana distinta das instituições conhecidas, livre de esquemas sociais, em atitude de total desprendimento dos esquemas de poder (ao estilo dos cínicos). Outros situam-no entre os profetas apocalípticos, que anunciavam um final eminente para a história e a irrupção de um reino novo, o reino do amor de Deus. Outros, ainda, enquadram-no no contexto da cultura judeo-helenista, como carismático anunciador da vida segundo o Espírito, como verdadeira vida de Deus.

Para estas perspectivas, a questão da divindade, da encarnação, da preexistência do logos são abordadas de forma metafórica, vendo em Jesus um especial anunciador da verdadeira vida de Deus, como modelo a seguir, que terá entusiasmado um grupo de discípulos e impulsionado o que viria a resultar no cristianismo.

 

(3) Pode ler-se, com proveito, W. Simonis, Gott in Welt, St. Ottilien: EOS Verlag, 1988.

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