Ética e identidade pessoal:
o impacto das ciências cognitivas
Alfredo Dinis

Introdução
a) Identidade pessoal - 1.1. O eclipse do “eu” substancial e permanente
1.2. A ideia de um eu ou self – a primeira grande ilusão
1.3. As ciências cognitivas e as bases neurobiológicas da identidade pessoal
2. Identidade pessoal e ética
2.1. De novo Hume: ética, a segunda grande ilusão
2.2. O impacto das ciências cognitivas contemporâneas - a) Daniel Dennett
b) Lakoff e Johnson
c) Paul Churchland
d) Francisco Varela: um caso particular
3. Uma nova perspectiva paradigmática
3.1. A questão fundamental: o conceito de pessoa
3.2. A identidade pessoal e a ética como estruturalmente relacionais
3.3. A relacionalidade na perspectiva do existencialismo de cariz personalista
a) A análise de Martin Buber
3.4. A relacionalidade pessoal nas ciências cognitivas: abordagens recentes
4. Conclusão
Bibliografia

 
IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
1.2. A ideia de um eu ou self – a primeira grande ilusão

As Ciências Cognitivas, especialmente as neurociências, não detectam nenhum centro coordenador da actividade cognoscitiva do sujeito. Poder-se-á responder que a categoria de substância é de natureza metafísica e que, por conseguinte, ela é indetectável por qualquer ciência natural. Consequentemente, também a noção de um eu pessoal substancial, sendo de natureza metafísica, não é detectável por qualquer ciência que se ocupe dos fenómenos meramente naturais. Esta perspectiva, na linha da filosofia tradicional de matriz aristotélico-tomista, considera a realidade neurobiológica do sujeito ético como estando ao nível dos acidentes, incapaz portanto de captar a realidade mais essencial, substancial, do ser humano. Esta perspectiva alimenta e alimenta-se de dualismos (matéria/espírito, substância/acidente, corpo/alma, etc) que hoje aparecem como difíceis de aceitar e em vias de superação.

A ideia de um sujeito substancial, de algum modo distinto dos seus estados acidentais, está hoje em crise, como se disse, mas as razões da crise actual já não são novas, elas encontram-se em autores como, por exemplo, David Hume.

Na sua obra Ensaio sobre a Natureza Humana, Hume critica a posição dos filósofos que “imaginam que estamos a cada momento intimamente conscientes daquilo a que chamamos “eu” (self); que sentimos a sua existência e a sua continuidade em existência” (1985, 251). Trata-se aqui de uma referência à identidade do eu ou self em sentido substancial. Hume nega que tenhamos alguma ideia de um tal self. Partindo do suposto que cada ideia tem a sua origem em alguma impressão sensível, Hume argumenta da seguinte forma:

“De que impressão poderia esta ideia derivar? ... O self, ou a pessoa, não é uma impressão mas sim aquilo em relação ao qual as nossas várias impressões e ideias se devem referir. Se alguma impressão der origem à ideia de self, essa impressão deve permanecer invariavelmente a mesma através do desenrolar de toda a nossa vida, uma vez que se supõe que o self tem esta forma de existência. Todavia, não existe nenhuma impressão constante e invariável” (1985, 251).

Por conseguinte, a ideia de um eu subsistente não passa de uma grande ilusão. É evidente que o pressuposto humeano de que qualquer ideia tem que corresponder necessariamente a uma impressão proveniente dos sentidos é muito discutível, mesmo tendo em conta que já a filosofia escolástica afirmava que nada existe no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos.