Ética e identidade pessoal:
o impacto das ciências cognitivas
Alfredo Dinis

Introdução
a) Identidade pessoal - 1.1. O eclipse do “eu” substancial e permanente
1.2. A ideia de um eu ou self – a primeira grande ilusão
1.3. As ciências cognitivas e as bases neurobiológicas da identidade pessoal
2. Identidade pessoal e ética
2.1. De novo Hume: ética, a segunda grande ilusão
2.2. O impacto das ciências cognitivas contemporâneas - a) Daniel Dennett
b) Lakoff e Johnson
c) Paul Churchland
d) Francisco Varela: um caso particular
3. Uma nova perspectiva paradigmática
3.1. A questão fundamental: o conceito de pessoa
3.2. A identidade pessoal e a ética como estruturalmente relacionais
3.3. A relacionalidade na perspectiva do existencialismo de cariz personalista
a) A análise de Martin Buber
3.4. A relacionalidade pessoal nas ciências cognitivas: abordagens recentes
4. Conclusão
Bibliografia

 
IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
d) Francisco Varela: um caso particular

Numa linha de pensamento semelhante à de Paul Churchland, Francisco Varela crê que o comportamento ético é mais uma questão de intuição sobre o que é o bem, do que o resultado de aprendizagem e decisões racionais sobre normas a seguir. É curioso notar que a concepção ética de Varela inspirando-se embora na tradição budista, retoma de algum modo, embora não intencionalmente, a corrente intuicionista dominante no mundo ocidental sobretudo na primeira metade do século XX, como resultado da influente obra de George Moore Principia Ethica. A outra corrente igualmente importante na ética europeia do mesmo período foi o emotivismo, na linha do pensamento ético de David Hume, como se disse. O que une estas duas correntes e as aproxima das actuais concepções éticas das Ciências Cognitivas é a drástica redução do papel da racionalidade nas decisões éticas pessoais.

Também para Varela a existência de um eu subsistente, que delibera e assume decisões éticas é uma ilusão.

“Não foi o self que foi considerado como detentor de uma potência moral e ética? Se pusermos em causa a ideia de um tal self, o que é que perdemos no mundo? Sentimos que tal preocupação é o falhanço do discurso ocidental em analisar o self e o seu produto, o interesse próprio com uma perspicácia experiencial. Ao contrário, a dimensão ética do ego e da ausência de ego estão no âmago da tradição budista.“ (2001, 312).

A sua posição sobre a relação entre ética e identidade pessoal é interessante, embora não seja original, já que é a posição da filosofia oriental budista. Não sendo totalmente satisfatória porque deixa alguns problemas por resolver, ela tem porém aspectos que vale a pena considerar.

Varela vê a Ciência Cognitiva ocidental e a tradição ética budista oriental convergindo para uma mesma ideia, a da relação não racional entre um self não substancial e um saber ético que não se obtém pela aprendizagem de normas de conduta. Ele retoma de algum modo as teses de Churchland, Lakoff e Johnson sobre a virtualidade do self:

“A radical novidade da compreensão das propriedades emergentes nos processos de redes distribuídas por nós recentemente adquirida e ainda fragmentária encontra-se precisamente no facto de que elas são fortes metáforas, ou melhor, protótipos, daquilo que é um Si mesmo sem si: um todo coerente que não se encontra em lado algum e que, todavia, pode proporcionar uma ocasião para o acoplamento.” (1995, 65).

Desta visão do self que emerge dos recentes estudos das ciências cognitivas Varela crê poder aproximá-las do Budismo:

“(1)Do ponto de vista do moderno estudo da mente a natureza virtual, vazia, de um Si mesmo que resulta de uma capacidade de confronto imediato constantemente em acto; (2) Do ponto de vista das tradições de ensino a natureza progressiva da competência ética fundada na crescente realização do Si mesmo vazio na vida e nas acções de todos os dias. Estes dois fios condutores sustentam-se reciprocamente, e dão agora corpo ao seguinte postulado, o coração da minha tese neste ensaio: a competência ética é o progressivo conhecimento em primeira mão da virtualidade do Si mesmo”(1995: 67-68).

É precisamente quando o self se reconhece como substancialmente vazio e virtualmente como “processo” que ele reconhece o engano das suas ilusões substancialistas, dado que “não existe qualquer self na sua experiência real” (2001, 315). Varela reconhece que esta descoberta pode ser perturbadora e levar, por exemplo, ao desespero do nihilismo. Mas esta é ainda uma possibilidade criada pela própria tradição ocidental que pressupõe que deve existir qualquer fundamento substancial e estável que torne possível um self substancial e, consequentemente, uma ética racional, ao contrário do que é pressuposto no budismo. Devo dizer que se torna muito difícil compreender o conceito budista de reincarnação ou renascimento sem pressupor a existência de algo substancial no ser humano, seja a alma, o espírito ou o self. De facto, como afirma o Dalai Lama: “Quando o corpo já não pode ser mantido, morremos e tomamos um novo corpo. O ser básico, ou eu, que é designado pela combinação de corpo e mente, persiste depois da morte, apesar de o corpo já não existir” (2001, 65). Embora, afirme que “a vida depois da morte é algo de que sabemos muito pouco, e que o nosso destino é imprevisível”, o Dalai Lama aconselha a que nos preparemos para a morte tornando “a nossa vida significativa”. E logo a seguir explica como:

“Podemos consegui-lo através seguindo um caminho que propiciará renascimentos favoráveis no futuro e que, finalmente, leva à iluminação. A aspiração última é conseguir atingir o estado completamente desperto da budicidade, porque mesmo um renascimento futuro favorável não é certo” (1999: 14).

É possível que o eu, que segundo o budismo subsiste depois da morte, não seja o eu metafísico da tradição aristotélico-tomista, nem sequer o eu ilusório de que falam as Ciências Cognitivas, mas parece claro que “algo” subsiste depois da morte, um eu cuja natureza permanece obscura.

O pressuposto antropológico budista que Varela adopta, emética, faz-nos lembrar a concepção de Jean-Jacques Rousseau segundo a qual o ser humano é bom por natureza, e é a cultura que o torna mau. “O nosso impulso natural é o da compaixão, mas foi obscurecido por hábitos de apego ao ego, tal como o sol é obscurecido por uma nuvem que passa.” (2001: 316) Parece-me, porém, que esta bondade natural se harmoniza dificilmente com a teoria da evolução das espécies que, embora com significativas modificações desde a sua enunciação por Charles Darwin, continua a ser o pano de fundo da ciência moderna, sobretudo da biologia e das ciências cognitivas. A luta pela sobrevivência que, segundo Darwin, caracteriza o dinamismo da evolução, favorece mais instintos de competição e de domínio dos seres humanos uns sobre os outros do que sentimentos de compaixão. É evidente que, sobretudo nas últimas décadas, o evolucionismo ético reelaborado por Edward Wilson (2001) e Michael Ruse (1986), entre outros, não exclui o altruísmo, mas este está em última análise ao serviço da sobrevivência do altruísta ou do grupo a que pertence, ao contrário do que afirma Varela a respeito da “compaixão espontânea”. As teses da sociobiologia afirmam que não existe compaixão espontânea e desinteressada, mas apenas um altruísmo altamente calculista, mesmo que este calculismo seja inconsciente. É por isso que neste ponto Varela se afasta da biologia. Curiosamente, ele afasta-se do individualismo antropológico das Ciências Cognitivas num outro ponto que me parece muito relevante, ao explicitar a sua concepção de self como co-dependente da relação com os outros selves.

“A abordagem à experiência atenta e ilimitada revela que, momento a momento, esta coisa a que se chama self ocorre apenas em relação ao outro. Se pretendo amor, fama ou poder, tem que haver outro (mesmo que seja só mental) para louvar, amar, conhecer ou se submeter a mim... Uma vez que o self é sempre co-dependente com outro ... a força do interesse próprio está sempre direccionada para o outro, exactamente do mesmo modo como é autodireccionada.”

É evidente que a argumentação de Varela resulta muito enfraquecida ao admitir a possibilidade de “o outro” ter apenas uma existência mental. Mas é evidente que a sua distinção entre pessoas egoístas e altruístas, isto é, “as pessoas que aparecem empenhadas no interesse próprio em oposição àquelas que estão interessadas no outro”, dificilmente encontra correspondência nas teses de Johnson ou Lakoff. As primeiras “debatem-se de uma forma confusa para conseguirem manter o sentido de um self separado envolvendo-se em relações de auto-referência do self com outro”(2001, 314). Pelo contrário, para as pessoas que estão interessadas no outro, “a perda de um ponto de referência fixo ou fundamento, tanto no self , como no outro ou numa relação entre eles, é considerado como sendo inseparável da compaixão”(2001, 316). A compaixão, segundo Varela e o budismo em que se inspira, é incondicional, isto é, não depende da reciprocidade da compaixão do outro, nem é um simples meio de obter alguma forma de prazer, por exemplo pela melhoria da própria auto-estima. Mas estas ideias podem ser retomadas de forma mais inspiradora e criativa no contexto de uma antropologia paradigmaticamente renovada. Considero portanto a análise relacional de Varela simultaneamente muito interessante mas também muito insatisfatória, como se verá a seguir, mesmo tendo em conta que ela se baseia numa respeitável tradição oriental. Há sem dúvida nesta análise elementos interessantes da perspectiva existencialista e personalista ocidentais do século XX, de que falarei mais adiante. Mas é a fidelidade à experiência humana, que o próprio Varela proclama, que nos conduz numa direcção que, embora não contrariando totalmente as teses de Varela, nos leva mais longe na compreensão do que é ser humano.