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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

Peregrinação e Memória
– uma abordagem à escrita de Pedro da Silveira

José António Garcia de Chaves

INDEX

Sumário
Summary
Introdução
O fastio da ilha
O poeta e os outros
A errância e o apelo do sangue
O entrosamento regional
O mundo dos ausentes
O tempo e o longe
Lembranças vagas dos mortos
O tempo e a efemeridade
Bibliografia

O tempo e o longe

“Na praça os velhos olham quem vem/ e recordam histórias de tempos passados”
( Silveira , 1952: 30).

A imaginação do poeta extravasa o limite do quarto ou a data do calendário, torna presente o tempo longínquo, justificando-se também em Sinais de Oeste o cuidado em salvar, pelas “letras”, a memória do esquecimento: “Leio-os, e lendo-os refaço/ dentro de mim quanto leio:/ e as letras, oh maravilha! São, vivas, re-vivo tempo,/ já não letras: multidões,/ cidades, portos, caminhos/ que vão de todas, por todas,/ às partes todas do Mundo:/ a vida e a morte jogadas,/ vibrando em mim, lado a lado!” ( S ilveira , 1962: 20). No segundo dos «Sete romances imperfeitos» a memória do sangue e das raízes, do “Sangue indomado, indomável”, repete-se. O rosto dos presentes e dos vivos reproduz os de outrora, explicando-se, como tal, a persistência do sangue dos navegadores, baleeiros, emigrantes e pioneiros – “Remotos, velhos, remoçados sangues/ do longe aos longes feitos” ( S ilveira , 1962: 48). O poeta é o mensageiro perpetuador das “fogueiras de sangue desmedidas”. A sua voz é o reflexo da história pessoal e da saga de quantos plantaram países e cidades e correram “sobre o Tempo”. Todos eles encontram na voz do poeta a fixação à sua casa-ilha: “Na minha voz as vozes/ amarguradas de todos,/ sobre o lume do tempo/ nos seus passos queimados!/ Remotos, velhos, remoçados sangues avançando/ e, incontíveis, alastrando,/ unindo-se,/ perdendo-se:// mil sangues: um sangue,/ sua voz: mil vozes” ( S ilveira , 1962: 53-54). A missão do poeta surge evidenciada no sétimo romance quando afirma: “Desenterro palavras, ergo-as até aos olhos/ e aos ouvidos/ e à sede do cerne./ (…) – Lembro. E só lembrando existo” ( S ilveira , 1962: 68). A sua preocupação será, portanto, reconstruir pela Palavra poética a marca e a sombra dos Mortos e prolongar a sua memória ( S ilveira , 1962: 70-71), livrando-os do anonimato das “multidões de mortos”: os Mortos agem no poeta, prolongam-se nele e existem agora: “ – Lembro-os, com ternura,/ familiarmente curioso/ de saber como sentiam,/ como eram” ( S ilveira , 1962: 68).

As palavras do poeta em «Tarde de Agosto, Oeste» estão impregnadas de tédio e aflição. Não será por acaso que o texto é dedicado a Roberto de Mesquita (assim como «À memória de Roberto de Mesquita») (cf. S ilveira , 1962: 37). No primeiro desses textos faz-se referência à “tarde aguada” e ao “exílio”. O poeta anseia por uma transfiguração desta ilha-prisão que lhe faculte alcançar o Além – “Arrasta-se o tempo. É infindável!/ ou parece, este dia./ Se acontecesse alguma cousa!/ Até um naufrágio/ servia./ Mas sem mortos, só para/ quebrar esta/ monotonia” ( S ilveira , 1962: 24). A morbidez do lugar imprime ao texto uma atmosfera cismante ao gosto da estética simbolista. Porém, esse habitat, apesar da desolação, é o lugar da aproximação do poeta às suas raízes – “ei-la, é esta/ a nossa história,/ a que não coube nos compêndios!” ( S ilveira , 1962: 56). É assim que o capitão Francisco Augusto, “açoriano de berço”, “comandante de navios”, aparece-nos retratado na sua luta contra o mar – “Até à Califórnia trabalharam nos farms e onde adregava./ Às vezes viajavam escondidos/ nos carros-de-fogo que metiam medo a meu tio António” ( S ilveira , 1962: 58). Na casa memorial do poeta (a sua voz), perpetuadora de retratos familiares e das “aventuras marinheiras”, das “sete andanças do emigrante”, das “Califórnias dos Enganos”, cabe a identidade eterna (apesar da diluição material da casa-objecto, do seu descaiar) de Laureano, Raulino, Ana Rosa, José Vitorino, Rosa Emília, Maria e António Pedro: “Lembranças que desenterro das poeiras do esquecido,/ por que me vêm, como um laço, ao de cima da memória?” ( S ilveira , 1962: 62). A casa morta que o poeta faz renascer e perpetuar é a casa dos ausentes, dos que no passado saíram da casa-berço e cujo sangue se espalhou pelos “outros”.

O texto «Nocturno» é particular na ilustração de um lugar habitado pelo “silêncio de cal” e pelas “janelas cegas” ( S ilveira , 1962: 39), evidenciando que, de facto, o tempo é um elemento condicionante da poesia de Pedro da Silveira. O tempo repete-se, arrasta-se, prolonga-se, torna-se, por fim, “infindável”: “Esperamos/ (seja lá o que for)./ Esperamos…/ desde quando?/ Até quando?” ( S ilveira , 1962: 25).

Justificando que o tempo é um dos temas de Sinais de Oeste temos o texto «Azorean Torpor». À semelhança do anterior, somos aqui confrontados com um tempo que passa escorrendo, escoando-se, aparentemente sem nada alterar. É o tempo suspenso, cristalizado, que tortura com vagar os que miram o longe.

Cilício e inanição vincam um lugar “Tão deserto de passos”, sonolento, resumido a “pedras” e “ervas bravas”, dificultando a adesão do poeta ao microcosmos ilhéu: “Mole, como a paz do lugar, lentamente/ passeio os olhos em redor/ e longe, pelo mar estagnado.// (…) Tudo começa e acaba exactamente aqui,/ na madorna da tarde sem memória” ( S ilveira , 1962: 27). O mundo murado, da quietude e da sombra está ainda retratado em «Praia do Fim» e no texto «No cimo do Morro Alto». Mais concretamente neste último podemos reparar que o espaço descrito está fechado em círculo, é um lugar vertical, em “declive”, que obriga o poeta a subir para olhar. Este cenário de sufoco só é perturbado pelo balir das ovelhas e pelo vapor porque ele é essencialmente morte e espanto. Os termos que o poeta utiliza para a ele se reportar são finitos e angustiantes tais como “quietude lisa”, “íntimo oco de um globo”, “redoma azul e prata”, “solidão”, “silêncio”, “encovado” e referem-se a um espaço que propicia o olhar – “A cada hora invento a cor e o hálito/ de ignoradas paisagens” ( S ilveira , 1962: 44). O poeta (“vivo-morto”) sente-se parte desse cenário, talvez “sobrevivente” de um mundo morto e dominado pelo sonambulismo enfeitiçante da “redoma intransponível”: “Pesa-me, nos ombros e na cabeça, o silêncio. E desce-me, como um líquido peganhento, ao longo do corpo. É um silêncio que se fixa, e ao mesmo tempo móvel – mas tão lento, tão lento!, dir-se-ia que vagarosamente engrossa; um corpo disforme de silêncio” ( S ilveira , 1962: 30). Em «Intermezzo» o “pasmo triste da noitinha” e novamente o “silêncio suspenso” e a “espera” corroboram a predilecção de Pedro da Silveira pela elaboração de um panorama de isolamento e flagelação: o sujeito que o habita anula-se face à potencialidade da ilha, terrifica-se.

 

Palavras-chave : ilha, isolamento, emigração, tempo e memória, poesia açoriana, raízes, realismo. Key-words : island, isolation, emigration, time and memory, Azorean poetry, roots, realism.

José António Garcia de Chaves – jachaves@portugalmail.pt