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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
8ª peregrinação: de como Lineu gostava de Vandelli e este enfeita Sebastião ao prometer casar com a senhora que lhe arranjou emprego em Portugal

Vimos Feijó ser acusado de usar nomes vernáculos e por isso pouco adiantado estar em ciência. 1758 é a data da décima edição do "Systema Naturae", a partir da qual plantas e animais começam a ser designados pelo binómio latino estabelecido por Lineu. O que na acusação se lê é que Feijó ainda não sabia deste avanço científico, o que é falso. Vimo-lo já a designar a urzela segundo o sistema lineano. Podia era ser mau classificador ou nomenclaturista, o que ignoro; agora conhecer o sistema, conhecia. Há uma flora cabo-verdiana dele, em manuscrito, na Academia das Ciências. Foi redigida em Cabo Verde, a data de 1788 assim o indica: Planta Insulana. Prom. Viridis. Varia. Secundum Linnean methodum descripta. Receio que não tenha sido publicada por causa desta nota inscrita à margem: Denuò meliús observanda, iterum describenda, et cum iconibus illustranda. "Repetir com melhores descrições, observações e imagens". Assina Brotero, sem data.

Um biólogo dos nossos dias, Grandvaux Barbosa (1961), considera quase completo o herbário de Feijó levado por Saint-Hilaire para o Museu de Paris.
Há outro manuscrito de Feijó na Academia, pelos vistos impublicado também, e redigido igualmente em Cabo Verde: Reflexões botânicas sobre a censura do Jornal Enciclopédico feito à Flora Lusitanicae et Brasiliensis specimen, do Dr. Domingos Vandelli, Prof. de Medic., Lente de duas cadeiras da Universidade de Coimbra de História Natural e Química, Decano da mesma, Sócio de várias Academias (1789).

Ao regressarem do ultramar, os naturalistas foram confrontados com filtros que impediram a publicação de parte da sua obra. Insuficiente para o nível de Brotero, suficiente para autores do séc. XX. Tenho a ideia de que por uma parte há guerra. Por outra, avaliações sem conhecimento directo das fontes.

A taxonomia é a primeira das ciências, aquela que teve de se desenvolver com a própria linguagem, ou nenhuma delas seria possível: quando se fala, fala-se de algo. Esse "algo", para se falar dele, foi previamente classificado. Há uma diagnose implícita na palavra, ainda que muito vaga, "tartaruga". Se não existisse, como seria possível falar dela sem a confundir com um pote de barro? Quando dizemos a alguém: "Dá-me isso", há um gesto diagnosticante, o que aponta para o lugar onde está isso.

Não seria possível ao homem a sobrevivência, sem classificar. No séc. XVIII, aparece uma obra chamada Systema Naturae, que eu nunca vi, infelizmente, e creio que os sistematas actuais também não, até porque, para fins de revisão de grupos ou de catalogação, o método é partir dos autores mais recentes para os mais antigos. Mas quantos chegam à origem, ou seja, ao Systema Naturae? Para já, a obra está redigida em latim, eles não usavam itálicos nem outros sinais distintivos a separar os nomes da diagnose, o que para nós dificulta a leitura. Nem todas as espécies devem figurar como binómio latino, algumas devem ainda conservar o anterior polinómio, parecendo as actuais subespécies, como em "Coluber Anglica fusca" (in Vandelli, 1797). Acima do táxone género, há-de ser muito problemático encontrar os grupos actuais. A escala de Líneu é muito diferente das que conhecemos, e as que conhecemos estão em mutação contínua. Se os taxonomistas actuais têm do Systema Naturae a ideia de que só inclui espécies de Lineu, como eu imaginava, estão enganados. Lineu incluiu espécies de outros filósofos do seu tempo, como Vandelli. Receio que várias espécies que correm hoje como sendo de Lineu, de A ou B, realmente sejam de C ou D. Entre o Systema Naturae e a actualidade há uma acumulação de erros, uns voluntários, outros involuntários. Quanto mais longe estamos das fontes, mais é fácil institucionalizá-los. Passa-se o mesmo com os textos dos filósofos da Antiguidade, que alguns consideram uma sucessiva acumulação de lapsos: de copistas, de leitura, de interpretação e de tradução. Aquilo que se estuda como sendo a "Apologia de Sócrates", ou as "Categorias", não seria mais do que uma teia colectivamente tecida ao longo de milénios, com pouquíssima frase de Platão e de Aristóteles.

Quanto mais perto estamos das fontes, mais o erro pode em certas circunstâncias ser desonestidade. Quanto mais nos afastamos delas, mais é fruto da confiança nos mestres e da inacessibilidade dos textos originais.

Ficando pelo meio termo, penso que a não publicação dos trabalhos, o desdém dos contemporâneos por João da Silva Feijó e Alexandre Rodrigues Ferreira, deixam claro que estes homens não foram seleccionados para as viagens filosóficas só por motivos científicos. Eles não seriam maus naturalistas, mas os melhores também não. Feijó era um militar de carreira. Ambos são brasileiros. Por Cabo Verde passa o tráfico de escravos para o Brasil; no Brasil é o visconde de Barbacena, secretário da Academia Real das Ciências, na altura governador de Minas Gerais, que sufoca a Inconfidência Mineira. Passa-se isto no ano da tomada da Bastilha, 1789, quando Alexandre por lá coligia inconfidências dos independentistas. Do próprio Tiradentes? Ou do mais poético Tomás António Gonzaga, autor do livro mais lido, recitado e reeditado da época, a "Marília de Dirceu"?

O facto de estes naturalistas terem sido agentes secretos não obriga a confiar cegamente nas opiniões de Brotero. O que falta averiguar no meio de tanto ilusionismo é o mérito científico real de cada um deles, pois me parece que há muito mais furto que o vísivel, muito mais logro do que transparece.

Vinha isto entretanto a propósito de conhecer ou não conhecer Feijó o sistema de classificação lineano. Conhecia, o que pouco adianta.

Bons zoólogos da altura, como Buffon, rejeitaram a nomenclatura latina, tal como Bocage rejeitará o evolucionismo. Isto não significa desconhecimento, sim corte epistemológico, coexistência de diversas filosofias da natureza. Feijó educou-se pela cartilha lineana, veio do Brasil para estudar em Portugal, integrado no espírito reformista da Universidade de que surgiram os estrangeirados. Não é o pormenor de o Brasil ser território português que nos impede de o considerar estrangeirado também, uma vez que teve estrangeiros por mestres, através dos quais chegaram a Portugal as novidades literárias e científicas. Se a razão é magra, recordemos que o casamento com uma estrangeira bastou para que Pombal fosse classificado como estrangeirado. Domingos Vandelli, um dos italianos por ele convidados, foi mestre de Feijó, dava as aulas pelo Systema Naturae; Vandelli manteve correspondência com Lineu entre 1759 e 1773, o naturalista sueco tinha-o em boa conta, ao contrário dos colegas portugueses da geração seguinte, responsáveis pela má reputação que ainda hoje mantém, de ter sabotado as colecções de Alexandre, trocando e retirando as etiquetas dos exemplares. O sentimento de rejeição, discriminação, o ciúme e a inveja em relação aos estrangeiros criou muitos problemas, para além do problema maior que deriva do facto de nenhum estrangeiro nem estrangeirado ter garantia de qualidade só por o ser.

A primeira direcção atribuída por Pombal a Vandelli foi a do laboratório de química da Universidade (1772). A certa altura constrói um aeróstato propulsionado a hidrogénio cuja ascensão se faz com sucesso em 25 de Julho de 1784. Alguma coisa sabia o italiano, afinal. E os seus trabalhos de química nas Memórias da Academia não são mais nem menos ridículos que os dos colegas. Li-o a medir a temperatura da água, as substâncias que contém, e alertar para o facto de que a consumida não tinha controlo de qualidade, o que até parece bem avançado para quem acaba de sair de sob as fraldas alquímicas. Muito mais ecologista na verdade do que um Bocage, no século seguinte, quando falar do habitat do M. coctei, para nada mais mencionar além da existência de urzela.

Será ele o criador e primeiro director dos jardins botânicos de Coimbra e Lisboa, e só abandonará o último cargo já deportado, por reclamação de Brotero. Não será isto insignificante; apesar de acusado e expulso do país, ninguém demitiu Vandelli do seu posto de director do Jardim Botânico da Ajuda. O que certos biólogos dele nos vão apresentar anos depois da sua morte é uma personagem, o relato configura-se em transmissão de uma narrativa exemplar, isto é, tem o carácter de mito. Bocage, nas "Instrucções Praticas" (1862), é tradição o termo que emprega:

O seu biógrafo Costa e Sá, tratando deste tristíssimo período da sua vida [vida de Alexandre Rodrigues Ferreira], indica-lhe vagamente por causas "desgostos provenientes de ilusões desvanecidas acerca dos homens e coisas da corte": a tradição porém refere que o dr. Alexandre encontrara, ao regressar ao reino, os exemplares que coligira à custa de tantas fadigas e remetera com o maior desvelo para o gabinete da Ajuda, deteriorados na maior parte e confundidos todos, perdidos ou trocados os números e etiquetas que traziam. Acrescenta ainda a tradição que não fora isto efeito do acaso ou do desleixo, mas obra premeditada da mais ruim maldade, planeada e levada à execução por um empregado da Ajuda, a quem o ciúme dos talentos do nosso grande naturalista, e porventura a esperança de o desgostar prontamente de uma posição no museu que ambicionava para si, inspirara essa torpissima acção. Console-nos ao menos, se a tradição não mente, a certeza de que o autor de tamanha infâmia não era português.

A tradição mente. Costa e Sá nada insinua sobre a deterioração e troca de etiquetas dos exemplares, e ainda menos portanto disso podia acusar Vandelli. As colecções da Ajuda estavam virgens, disse-o Saint-Hilaire, e virgindade é dogma que a Maria se aplica. Bocage calou o nome do pretenso autor do delito e o que relata é uma ficção sebastianista. Mito fabricado com a cena muito posterior das etiquetas trocadas e caídas no Museuda Academia Real, e com o propósito de investir Alexandre na categoria de Desejado. Não precisava de calar o nome, o que a tradição oral conservou até mim, o que ainda a mim chegou, via escolástica, ou seja, decalcado deste magister dixit de Bocage, foi o nome de Domingos Vandelli. Outros o revelam sem nevoeiro, por exemplo Carlos França (1922), na sua biografia de Alexandre Rodrigues Ferreira, colando o que se segue à anterior passagem de Bocage:

Esse homem foi o italiano Domingos Vandelli de quem Link dizia "on pourrait lui pardonner son ignorance, s' il ne se montrait pas, à ce qu' on prétend, envieux et intolérant envers ceux qui sont au dessus de lui par leur mérite".

Vandelli, que era uma criatura sem escrúpulos, como o mostra uma carta de Pedro Arduíno a Lineu, pertencia à categoria daqueles para quem "Nuire c' est jouir".

O começo da sua vida em Portugal é assinalado por uma torpeza: consegue os seus lugares graças à intervenção de uma mulher a quem prometeu casamento caso obtivesse os empregos que pretendia. Audacioso, ingrato, plagiário, tal o pinta o seu contemporâneo e mestre Arduíno, que caridosamente previne Lineu que se acautele contra tal conjunto de perfeições: "Si quid Patavií fecit de me, de aliís quoque idem perget facere quaqumque in regione fuerit, caveat sibi ne Ulissiponenses eum brevi tempore mittant ad cruenda et describenda Fossilia Regni Plutonii..."

Tal era o homem que se apoderou de uma parte dos trabalhos do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira.

Todas as causas que deixámos apontadas - desgostos e perseguições de toda a espécie -, incidindo sobre um organismo depauperado pelo esforço dispendido durante a sua expedição ao Brasil e pelas doenças lá contraídas, explicam perfeitamente a neurastenia de que o Dr. Alexandre sofreu nos anos que precederam a sua morte.

Em nota infrapaginal, sobre a carta de Arduíno a Lineu, Carlos França informa: Devemos o conhecimento desta carta (escrita em Pádua a 20 de Julho de 1764), ao venerando Professor Júlio A. Henriques, da Universidade de Coimbra.

Tentemos abarcar o essencial: Vandelli não era um "empregado", sim o director do Jardim Botânico da Ajuda e anexos. Trazia currículo de Pádua. Em Portugal, publica os primeiros catálogos lineanos, entre outros: Florae Lusitanicae et Brasiliensis specimen (178S) e Faunae et Florae lusitanicae specimen (1797). Funda uma fábrica de faianças considerada a melhor do país, são-lhe concedidas todas as facilidades, incluindo oferta de terreno, matéria-prima gratuita, onde quer que a encontrasse, para a explorar e colocar em bons mercados o produto. Deve-se-lhe o florescimento da indústria da cerâmica conimbricense e das então conhecidas Louças de Vandelles ou de Bandelli. Se antes não era pobre, com as faianças há-de ter melhorado os rendimentos. Talvez fosse a pessoa execrável a que aludem os cronistas, mas não se vê em que se baseia a argumentação sobre esse ponto, pois nada de concreto se adianta, faltando provas que permitam aceitar as acusações. Assim sendo, desde sempre tal falta se avolumou no meu espírito como principal prova da sua inocência.

Domingos Vandelli (1735-1816) só chega a Lisboa em 1765. Como é que uma carta escrita em Pádua no ano anterior, e dirigida a Lineu, na Suécia, aparece nas mãos de Júlio Henriques, em Coimbra, cento e cinquenta e oito anos mais tarde? Porque é que a carta não foi reproduzida no momento tão oportuno em que Carlos França, prefaciado por Júlio Henriques, dá à estampa a sua biografia de Alexandre Rodrigues Ferreira (1922)? Porque é que Lineu continuou a corresponder-se com Vandelli até 1773, se essa carta de 1764 era assim tão desabonatória?

Vejamos: a carta pode ter sído forjada, forjada até por Brotero, tão bom latinista que excelentes poemas em latim redigia, quando sucessor de Vandelli no cargo de director do Jardim Botânico. Embora não haja qualquer referência a tal carta nas que o sueco lhe escreveu, segundo penso, passou-se o seguinte: Lineu enviou a carta a Vandelli, o que significa que não acreditou em patavina (do lat. patavino, habitante de Pádua, como Vandelli e também Arduíno) do que em latim rezava, por ser óbvia a calúnia ou intriga que Arduíno tramava contra Vandelli. Este, por a carta nada ter de desabonatório nem de fiável, prestou-lhe tão pouca atenção que nem a queimou, deixando-a entre os seus documentos, em Coimbra, antes de tomar a direcção do Jardim da Ajuda, em Lisboa. Ou ter-lhe-á dado outra espécie de atenção, uma vez que há críticas tão disparatadas que funcionam como elogios, com a vantagem de insuspeitas de lisonja. E assim se explica que, cento e cinquenta e oito anos depois, Júlio Henriques a encontre no arquivo histórico da Universidade de Coimbra. Como imperava o magister dixit de Bocage, aqueles dois naturalistas portugueses jamais poriam em dúvida a tradição das malfeitorias do italiano, e enfeitaram o conto com mais uns pontos.

Tais como a necessidade de o mestre italiano seduzir uma mulher para com isso arranjar emprego em Portugal. Vandelli não era um imigrante galego que viesse de mala de cartão para Portugal à cata de emprego. Ele veio por ser um mestre italiano, célebre na Europa. Convidado por S. Exª o ministro português, Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido por Marquês de Pombal. Com conhecimento e anuência de Sua Majestade, o Rei D. José I. Durante quase toda a vida o governo português o cumulou de honras, facilidades económicas, cargos e condecorações, e nem a directoria da Ajuda lhe foi retirada após a expulsão. O que significa que, expulso embora, e condenado, devia continuar a receber o ordenado. Só não digo que o Vandelli de certos aspirantes a historiadores não passa de personagem camiliana, porque Camilo era um escritor. O que dele se relata é um mito, idêntico ao de Alexandre Rodrigues Ferreira, quando nos aparece sob a estampa de O Desejado. Vandelli é o negativo disto.

Quanto às acusações de plágio, receio não saber bem o que terá Vandelli roubado a Alexandre, se a grande dor é a de Alexandre quase nada ter dado a lume, perdida que ficou com os diários, apontamentos e colecções, a hipótese de edificação de uma obra. Ignoremos por instantes a divisão de trabalho a que obrigam as viagens, e a que já aludi, dando o exemplo de Bocage, cuja obra erigiu à custa do esforço dos naturalistas Anchieta e Newton (Anchieta tinha um laboratório no Bié, munido de material óptico, classificava os animais, mas todo o seu trabalho é assinado por Bocage), sem que jamais tenha alguém levantado o problema de ele se ter aproveitado da obra alheia, e façamos uma pausa para falar do plágio.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).