(DATAS EM POEMAS SÃO A HISTÓRIA)

Em certa medida, a arte funciona como sintoma da realidade, espelho onde se projecta a imagem de um objecto nem sempre visível. Resposta à vida, pressupõe-se uma questionação anterior a ela. Entre a pergunta inaudível e o grito de uma resposta desenha-se um espaço de aventura constituído pela arte. Na senda futurista, manifestou-se a vontade de colar a criação estética à evolução tecnológica, sinal de avanço no território do futuro. O ritmo de vida acelerava-se com o aparecimento de invenções e engenhos que encurtavam distâncias e diluíam o conceito de tempo, abrindo à arte horizontes universalizantes.

Os meios de comunicação evoluem, Sá-Carneiro fascina-se sobretudo com esse Ar que chega a personificar, inapreensível suporte físico dos seus poemas sem suporte. «Manucure» é a apologia do Ar, lugar da «Beleza atmosférica», onde tudo paira, incluindo a palavra em liberdade de Marinetti, vogando nas ondas acústicas de algum telefone. Toda a tecnologia e todo o futurismo acabam por se referir ao Ar, espaço para as deambulações também da Alma, numa condensação de energia psíquica. A utilização do ar como suporte para a comunicação é a grande descoberta do nosso século, deslumbra-se ele. Hoje, como outros, teria razão maior ainda para considerar a arte uma aventura que acompanha o desenvolvimento da mais sofisticada tecnologia.

É frequente mencionar-se sobretudo o poema «Manucure», publicado no número 2 do «Orpheu», para evidenciar a sua tendência futurista. E sugere-se que ela vem na sequência das odes de Álvaro de Campos. Ora Sá-Carneiro teve acesso à literatura futurista provavelmente antes de Pessoa. Antes de Álvaro de Campos e de «Manucure», já nas novelas - embrião da poesia - surgem passagens de cunho futurista que nada devem à apologia das máquinas patente nas odes de Álvaro de Campos. Vejamos um fragmento de «Asas», cuja redacção data de 1914, em que a personagem central é o Ar:

...Tudo se abate de Beleza! E o corpo é já um montão de ruínas, de destroços de ar, que ondeiam livres, em vórtice - e se emaranham, se entrecruzam, se desdobram, se convulsionam... Todo o ar vive esse corpo nu!

E nas grandes oficinas... o giro ácido das rodas... os volantes... os êmbolos... as correjas de transmissão... o oscilar de complicados maquinismos... Outros tantos movimentos de ar - fogos de artifício, é verdade, fogos de artifício de Ar!... Hélices, espirais, ramos de parábola, estrelas, hipérboles mortas - turbiIhonando, zig-zagueando, entregolfando-se... Magia contemporânea! Europa! Europa!

Já agora aproveito para dizer que nunca percebi a referência a blagues, feita por Pessoa a «Manucure» (1). Como se alguém pudesse desculpar a má qualidade de uma obra com o argumento de ser uma blague. Há blagues boas e más, como há textos sérios bons apenas para o caixote do lixo. Não vejo que «Manucure» seja mais nem menos blague que uma «Ode Triunfal». Se Mário de Sá-Carneiro entregou o texto com a desculpa de ser uma mistificação, é outro caso: mistificador é ele e não a obra. Sá-Carneiro era demasiado imaturo para ter uma visão crítica do que escrevia em termos de qualidade. O que ele julgava genial é o que há de mais incipiente - falo das novelas, parcialmente débeis, para não exagerar; e o que ele só muito tarde valorizou, por o desconcertar, é que de facto merece a qualificação de excelente - a poesia, a partir do livro «Dispersão». «Manucure», com ou sem blague, futurista ou interseccionista, é para mim dos mais admiráveis poemas de Sá-Carneiro, tão admirável como as odes de Álvaro de Campos, a que não deve nada. Só por obras como esta gasto o fôlego, pois já devo ter demonstrado que nem ideias nem pessoas suas autoras me merecem simpatia de maior. Diga-se no entanto que é interessante e enriquecedor como experiência conhecer a desproporção entre homem e obra.

Ainda a propósito das influências de Pessoa em Sá-Carneiro: biografando a partir da ficção, sem grande risco de erro, dada não só a plausibilidade da informação como a referência nas cartas ao facto de Pessoa ser representado na personagem de Fernando Passos, a acção de Pessoa junto de Mário é mais afectiva do que efectiva. De novo «Ressurreição»:

Fernando Passos acordara-o em alma. A ele devia Inácio o desdobramento em Oiro do seu génio grifado, toda a ascenção em heráldico do seu espírito, - e os laivos imperiais de Novo com que a sua obra hoje se timbrava, mosqueando-o de Auréola, diademando-se de sombra.

Para assentar num mínimo de argumentos a afirmação anterior quanto à incipiência das novelas: tiradas como esta, de uma linguagem refolhuda que carece de travões, vocabulário repetitivo, para não falar de histórias mal arquitectadas, que muitas fogem à estrutura narrativa para se desfazerem em ensaísmos ingénuos, valem sobretudo como documento da passagem de uma prosa de mau gosto para uma poesia brilhante. Dá ideia de que a linguagem de Sá-Carneiro não se ajusta à narração, só acha lugar próprio para fulgir na poesia, justamente porque a poesia não precisa de argumentos, filosofias, nem de suportes racionais para se impor. O delírio casa bem com a poesia; uma prosa delirante só excepcionalmente funciona nos quadros de outra exigência, próprios de novela ou ensaio.

Mas voltando ao assunto principal: a informação concreta contida nas linhas citadas é a bem dizer nenhuma. O deslizamento da linguagem para um arrebatamento que se detém na pompa das palavras, maiusculadas in extremis, é corrente, quando se manifesta a impotência para precisar ou desenvolver uma ideia. Noutros casos, para conferir verosimilhança a factos imaginários. Neste, não há nada de objectivo a mencionar. De toda a vida de Mário podia dizer não haver nela nada de objectivo a mencionar. O mais importante para a História da cultura reduz-se a datas de edição. O mais importante para nós, que aquém ou além da arte buscamos episódios que lhe expliquem a génese, reduz-se à morte da mãe, caso liceal do suicídio de Tomás Cabreira, breve passagem por Coimbra (a «Lusa Chatice», como ele dizia) a fim de tirar o curso de Direito, partida para Paris ainda com a mesma finalidade (mal frequentou as aulas, o curso não o entusiasmava), agitação provocada pela saída do «Orpheu», ligação com Pessoa e Helena, morte. Um punhado de acontecimentos numa curta vida; poucos, não pela vida curta, mas porque ele se afastava dela. A sua biografia psíquica é bem mais complexa e rica. A outra é tão pobre que de uma febre tifóide fiz um acontecimento; de um pormenor numa carta farei uma tese. Não me censuro nem me desculpo: pergunto se afinal a vida do poeta não é exemplar neste sentido em que dela só restam palavras; se não foi disso que se alimentou; se a vida não se espelha num tremendo vazio; e se de outros nem isto há para dizer.

Para ele a História condensava-se na data dos poemas. Raros textos carecem dessa informação. Quem, onde e quando, sinais próprios do documento. Ele tinha a íntima convicção de trabalhar para a História, orgulho do que escrevia. Poucos artistas se lembram disso, quanto mais não seja porque nem sabem a quantas andam. No meio do seu sonambQlismo, Mário estava sempre ao corrente do calendário. Deste ponto de vista, a documentação biográfica abunda, faltando apenas o facto revelador do mistério. Apetece perguntar se Sá-Carneiro existiu, se não é um efeito da sua própria retórica, uma blague. Um ectoplasma, já que a obra roça tanto pelo Além, num repúdio evidente do Aquém. Não há grandes fronteiras entre realidade e imaginário, como se o poeta fosse uma criação literária. Mas não como se a ficção partisse do facto vivido. A vida dá ideia que a prepara nas novelas, agindo depois em conformidade com o imaginado. N'«A Confissão de Lúcio», por exemplo, deparamos com esta passagem:

Apesar de grandes amigos e de íntimos amigos, eu e Ricardo não nos tratávamos por tu, devido com certeza à nossa intimidade ter principiado relativamente tarde - não sermos companheiros de infância. De resto, nunca sequer atentáramos no facto.

Ora, por esta época, eu encontrei-me por vezes de súbito a tratar o meu amigo por tu. E quando o fazia, logo me emendava, corando como se viesse de praticar uma imprudência.

«A Confissão de Lúcio» foi redigida entre 1 e 27 de Setembro de 1913, em Lisboa, e a amizade entre Sá-Carneiro e Pessoa data de 1911/12. No volume «Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa», Arnaldo Saraiva aponta lapsos da seguinte natureza: «E recebe mil abraços, mil saudades do seu, muito seu Mário de Sá-Carneiro» (1914). O itálico é meu, tenho-me esquecido de dizer que os outros, no texto do poeta, são dele. A questão de corrigir ou não os lapsos foi a pior maçada e o maior trabalho que me deu a elaboração deste livro, sobretudo por Sá-Carneiro ter uma escrita desleixada. Mas neste caso, o das fórmulas de tratamento, acho que não há erro nenhum. Nem sequer lapso no sentido freudiano de gesto falhado: Mário comete o erro de propósito, como qualquer namorado que simula para melhor afirmar o desejo de intimidade. O tratamento sistemático por «tu» era natural e ele sabe-o. O fingimento do engano introduz no também natural «você», usado como norma, uma subtil manobra de sedução.

O Mistério é dos grandes temas de Sá-Carneiro. Era tranquilizador sabê-lo homossexual, isto ou aquilo. Qualquer coisa servia para arrumar o assunto, não se falava mais dele. Mas por um golpe de mestre esse rapazinho inexperiente conseguiu lançar toda a casta de sugestões mais ou menos pérfidas sobre a sua vida, de forma a torná-la o maior Mistério. Ele, o Esfinge Gorda! Ora me parece a mim que o mistério maior da vida dele é não haver nela mistério nenhum. Lançar a dúvida na mente dos outros é a sua Grande Obra, rasgo francamente genial. É isso o que o «mosqueia de Auréola, diademando-o de sombra», para o parafrasear.

Entre Sá-Carneiro e Pessoa existe de facto uma relação equívoca, o suficiente para a tomar como matéria de um filme («Conversa Acabada», de João Botelho). O equívoco, porém, é um efeito da conversa, literatura. Entre eles havia uma correspondência, em que a fábula tem o seu papel a desempenhar. Não nego o intercâmbio emocional, pelo contrário. Creio até que a amizade os amparou com a bengala de um afecto sincero. Fernando Pessoa deve ter estimulado o amigo a desenvolver a sua vocação lírica. Em troca recebeu admiração sem limites e um investimento amoroso que às vezes parece filial. Por baixo da fábula amorosa há até um paradoxo. Se é verdade que Mário se humilha para que o «amante» se orgulhe, desaparece para que o outro rebrilhe, por outro lado Mário faz de Pessoa o seu moço de recados. Desde corrigir-lhe a ortografia nos manuscritos até vender-lhe os livros, Pessoa desempenha o papel de secretário, de subordinado sem pagamento. Por obra das circunstâncias, o desaparecimento das suas cartas acaba por o colocar numa situação de mutismo e subordinação de facto. Mas estes amores são retóricos, efeitos especiais, como se diria de filmes com grande aparato. Eles eram demasiado tímidos para sair da esfera da Alma e reconhecerem-se mutuamente a existência de corpo. Excessivo em Sá-Carneiro, insuficiente em Pessoa. Almada apanha na perfeição a ideia de um Fernando Pessoa na caricatura que dele faz e é o mais célebre dos seus quadros: funéreo, triste, abstracta geometria de um ser incorpóreo. Reveladora também a anedota da tempestade: um dia, estavam ambos no Martinho da Arcada, sobrevém um temporal com relâmpagos e trovões aterradores. Almada sai para a porta, eufórico com o estrépito. Quando regressa à sala, não vê rasto de Pessoa. O trémulo autor da «Ode Triunfal» tinha-se escondido debaixo da mesa.

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(1) V. «Poesias». Ática. «Tábua Biográfica de Mário de Sá-Carneiro», por F. Pessoa.