(ARSENIATO DE ESTRICNINA)

É a altura de prestar algumas informações quanto à elaboração desta colectânea. A páginas tantas, Mário de Sá-Carneiro dá carta branca a Pessoa para proceder às correcções que julgasse indispensáveis nos poemas. Nem tudo foi corrigido. O que acontece agora é que as versões várias dos textos editados não correspondem aos manuscritos. As variantes vão desde o pormenor de pontuação (que nem sempre uma vírgula é pormenor) até à supressão de estrofes. Neste embaraço, tive de tomar decisões, bastante incómodas, quanto à versão dos textos a incluir na antologia. Tomei como base uma edição das «Poesias» (Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro, II) da Ática (s/d) e fui-lhe introduzindo modificações de acordo com a informação de autores que consultaram os manuscritos, em especial Dieter Woll e Arnaldo Saraiva. Outras surgiram do confronto com primeiras edições (em livro e revista, particularmente do «Orpheu») e reprodução de manuscritos. Tarefa morosa e ingrata, a minha. Sá-Carneiro, mal acabava um poema, enviava-o aos amigos. Mas as versões não coincidem. Quais devem ser tomadas como texto autorizado? Todas o são, incluindo as de Fernando Pessoa, uma vez que Sá-Carneiro lhe deu plenos poderes para emendar o que achasse conveniente.

Leia-se o que Arnaldo Saraiva escreve a propósito do poema «Taciturno» em «Cartas» (Limiar). O texto que apresento diverge quer da versão transcrita por Arnaldo Saraiva, correspondente a um manuscrito pertencente a Alfredo Guisado, quer de outras. O que não quer dizer que não tenha aproveitado nada dela. Seleccionei a variante «Velada de armas» em vez de «Manhã de armas»; já não seleccionei «Oiro perdido") por me parecer mais forte a expressão «Oiro sinistro». O que aconteceu com «Taciturno» verificou-se noutros casos. Menciono este a título de advertência destinada aos especialistas: provavelmente muitos poemas da minha antologia não correspondem na íntegra a nenhuma outra versão, visto que, segundo um princípio de não adopção de critérios rígidos, fiz sínteses das variantes disponíveis. Perante dificuldades inesperadas, resolvi-as de acordo com o meu gosto pessoal.

Por duas ou três vezes fui forçada a alterações da minha inteira responsabilidade. No poema «Bárbaro», onde se lia «Em balde mando arder as mirras consagradas», mudei para «Embalde...». Em «Crise lamentável», onde figuram os versos «Cada vez perdida/Mas a destreza de saber pegar-lhe», emendei para «Cada vez perdida/Mais...», ou seja: cada vez mais perdida a destreza. Substituí todos os «bru-u-á» por «brouhaha». Nem a pontuação nem a ortografia de Sá-Cameiro são das mais autorizadas, por muito autor que seja. Mas há dificuldades, pois a falta de pontuação num poema como «Aquele Outro» pode enriquecer o texto de um ponto de vista emocional. Excepcionalmente, por essa única razão, transcrevi o texto a partir de um manuscrito reproduzido por Maria Aliete Galhoz, sem atender às correcções de pontuação que depois lhe vieram a ser introduzidas.

A respeito ainda da dificuldade que nos coloca este aparente pormenor: segundo Dieter Woll, que julga tratar-se de um lapso, o terceiro verso de «A Inigualável» tem a seguinte pontuação num manuscrito por ele consultado: «Teus dedos, longos de marfim». Preferi a versão desse manuscrito, por ser mais rica no efeito metafórico, à do texto da «Ática», bem mais lógica: «Teus dedos longos, de marfim».

As diferenças mais sensíveis entre esta antologia e o volume «Poesias» das Obras Completas dizem respeito ao maior número de textos que incluí. O termo «antologia» nem é correcto. «Além» e «Bailado» vieram de «Céu em Fogo»; «Curtes aí no leito» foi publicado no Diário Popular (13 de Fevereiro de 1958) por Manuel Correia Marques; «Musa galhofeira» e «A um suicida» fazem parte da documentação recolhida por François Castex no seu livro sobre «Amizade»; «Ah, que te esquecesses sempre das horas», «Feminina» e «... De repente a minha vida» (coloquei entre parêntesis os títulos que não pertencem ao poeta) são poemas que fui buscar aos volumes de correspondência. O autor deixou alguns incompletos.

Quanto ao poema «Manucure», ele engloba o que na edição da Ática é o título autónomo «Apoteose». Trata-se de um poema uno por duas razões essenciais: temática (apologia do Ar e ideia inicial e final de pintar as unhas) e editorial: no «Orpheu» 2 o termo APOTEOSE marca apenas um tempo na sequência do discurso. «Manucure» e «Elegia» aparecem aí sob o título geral «Poemas sem suporte», que preferi ao título «Últimos Poemas» (de Pessoa) para a terceira parte da antologia.

*

Regressando às influências de Pessoa sobre Sá-Cameiro, não são muitas. Não vamos considerar influências as emendas e arranjos introduzidos nos poemas anos depois da morte do autor. A permuta deve ter sido equilibrada. Mais frio, Pessoa há-de ter sentido o impacto da energia emocional «dispersa» pelo amigo, e creio mesmo que essa obsessão de Mário manifesta na «dispersão» contribuiu para a posterior dispersão de Pessoa nos heterónimos. Além disso recebeu sem dúvida informações sobre o que se ia passando pela Europa no domínio da arte e da literatura. É natural, já em Lisboa, dado o desafogo financeiro, Sá-Carneiro podia adquirir livros e revistas europeus, para não falar das suas viagens. Se bem que o seu conhecimento se mostre superficial, Mário, instalado em Paris, é uma fonte de informação cosmopolita para o amigo que, fechado num meio estreito, só viaja imaginariamente. Não sabemos ao certo o que Pessoa dizia a Mário nas cartas, visto que se perderam. Podemos supor no entanto que há-de ter funcionado como conselheiro, ideólogo, confidente e suporte emocional. É certo que Mário o considera um mestre. Mas não o seu mestre, Sá-Carneiro é um poeta demasiado impulsivo, independente e alto para ter sido discípulo. Facto que não elimina marcas; é evidente que ao património literário e cultural ninguém consegue fugir. A originalidade pura é tão impensável como qualquer outra coisa dita pura, cor, palavra, língua ou raça. Ambos são mestres na sua qualidade de poetas cuja influência se exerce nas gerações futuras. Em minha opinião, é menos significativa a sua influência mútua do que aquela que exercem nos escritores dos nossos dias.

Este assunto surgiu por efeito de uma digressão, pois não lhe atribuo importância de maior. Eu tinha começado por referir outro tipo de influências, e até citei a quadra em que João Gaspar Simões, na peugada do próprio Sá-Carneiro, vê um vaticínio, poder divinatório do vates. Neste ponto, é notável a contradição que se verifica no carácter de Sá-Carneiro. Contradição talvez normal em pessoas que, como ele, sofrem de uma neurose de angústia, manifesta no seu caso por pequenas fobias relativas às condições climáticas. Aliás há mais do que o medo anormal pelas doenças. Há também o medo anormal em face da mulher, vista sempre em termos de personagem agressiva. Não raro aparece o termo «fera» para a caracterizar. Por consequência, o acto sexual desliga-se de outra coisa que para o poeta é uma arte, e diz respeito a uma fruição da alma mais do que do corpo: a voluptuosidade.

O acto sexual propriamente dito considera-o repulsivo. Portanto trata-se de sintomas de angústia. Sabemos que a angústia funciona como transvasamento de energia libidinal que não tem aplicação, que carece de objecto. Esse é o fundo psíquico da dispersão. Sá-Carneiro é sensível à beleza feminina mas a mulher causa-Ihe pânico e não consegue sintetizar energia sexual e afecto. Em casos destes é normal surgirem crises de impotência que acompanham a crise de angústia. E também é natural que o medo exerça repressão, levando o indivíduo a correr uma cortina de defesa entre si e a realidade exterior, causa objectiva e imediata do estado de ansiedade. Mas se por um lado diminui ao máximo o contacto, desligando-se de coisas e pessoas, numa descentração típica de quem, em última instância, prefere alimentar-se da sua própria vibração interior, por outro é receptivo a uma comunicação subjectiva, a mensagem clandestina vinda da sociedade. Vendo bem, o seu afastamento é provocado pelo que julga ser a hostilidade do meio. E tem razão: em muitos aspectos o meio foi-lhe hostil. Infelicidade que se avoluma quando o próprio corpo se lhe torna adverso, não respondendo aos estímulos da vaidade. «Aquele Outro» falsamente gordo que tanto desgosta Sá-Carneiro. É ele que escreve algures que, despindo-se, causaria surpresa, pois tem as pernas magras. E não será a insegurança causada por um corpo que não agrada a quem o tem, a causa, por sua vez, da insegurança diante dos outros? Como não há-de um indivíduo nestas circunstâncias denunciar desprezo por tudo o que é natural, material? A Natureza parece ter feito dele um alvo de agressões. Julgo que será impossível, hoje, determinar as causas da sua obesidade. Não era decerto provocada por dietas abundantes. Não me recordo de ter lido nada que permita concluir que comia muito. Pelo contrário, imagino-o a sentir repulsa pelos alimentos. E agora que penso nisso verifico que são bem curiosas as suas cenas de luxúria. Nas festas que descreve não há referência a alimentos. «A Confissão de Lúcio» abre com um desses cenários de voluptuosidade, mulheres que dançam e mergulham em piscinas, em suma: algo que lembra uma orgia de music-hall. Num palácio encantado, diga-se de passagem. Ora a única coisa material, desencadeadora da volúpia, é a luz eléctrica. Por alguma razão o livro se intitula A Confissão de Lúcio; até certo ponto trata-se de uma confissão lúcida. A luz, o brilho, a Auréola, são estímulos sensoriais muito fortes para Sá-Carneiro. Mas não tornam evidentes cores nem formas materiais. Dir-se-ia que toda a sua literatura evoca outros espaços, povoados por objectos e seres fantasmáticos. Tudo bate certo de novo, se nos lembrarmos que uma líbido errática, sem capacidade de se fixar num ser humano, pode encontrar aplicação, por desvio ao natural destino, na criação estética.

Os problemas levantados pelo corte entre o Eu e Aquele Outro, entre afinal um Eu ideal e um Outro material, resultam num complexo de identidade. Ele é comum à gente do «Orpheu» e tem o seu melhor espelho na despersonalização heteronímica voluntária de Fernando Pessoa. Mas na origem de um acto voluntário há sempre estímulos subterrâneos a conduzi-lo, pessoais ou estranhos. Trata-se de algo comum que cada personalidade reflecte à sua maneira. Como se aqueles homens não aguentassem a pressão da sua desmesura ou isolamento. Uma forma de escaparem era tornarem-se o mais possível iguais aos outros, buscando uma inserção pacífica no meio social. Esta solução não resolve porém os conflitos de um artista, cujos princípios assentam na diferença. Pensar nela só serve para acrescentar confusão à angústia. Sá-Carneiro sentiu bem fundamente o conflito, quando nos poemas se deixa enternecer com os domingos de Paris, desejando-se com família, em suma: igual aos outros, feliz como eles, esses que também despreza por, na sua qualidade de artista, os julgar inferiores. Mas, mesmo cedendo ao desejo de se perder na homogeneidade do anonimato, ele não o podia fazer. Não porque o seu estatuto de artista o impeça. O princípio da diferença existe em relação às obras (as obras é que têm de ser originais) e não em relação aos autores. Ele, como indivíduo, é que revela diferenças de carácter psíquico e fisiológico que tornam difícil e improvável a vida normal. Saber se as anomalias psíquicas provocam distúrbios fisiológicos ou se estes estão na origem daquelas, eis um enigma. Penso que ambos se desenvolveram em interdependência tempestuosa até ao gesto voluntário de lhes pôr termo. Sá-Carneiro deve ter sido uma pessoa excepcionalmente infeliz. Nestas circunstâncias, não podendo participar daquela felicidade que imagina entre os seres sociáveis, é natural que se tenha isolado cada vez mais. Em Paris tinha raros amigos, dois ou três. Grande parte do tempo passa-o a correr as avenidas ou sentado a escrever à mesa dos cafés. Dos Cafés, as catedrais do seu tédio e ociosidade.

Mas dizia eu que esse problema da identidade era comum à gente do «Orpheu». Se não for comum a todos os artistas. Enfim, também hoje se ouve falar muito de crise de identidade, mas nacional. Voltando ao «19l5/Orpheu/1965», de Almada Negreiros:

Ainda hoje desconheço felizmente a identidade dos inesquecíveis companheiros do «Orpheu».
(...)
Os inesquecíveis companheiros do «Orpheu» foram os meus
precisamente por nos ser comum uma mesma não-identidade, um mesmo escorraçar comum que a vida nos fazia. Absolutamente mais nada de comum. Éramos reclusos da mesma cela de prisão.

Era oportuno citar aqui a quadra de Sá-Carneiro onde se diz: «Eu não sou eu nem sou o outro». Há poemas em que a vontade de perder uma para ganhar identidade diferente se exprime de outras maneiras:

Fios de ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira -
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte...
.................................................
- Ai que saudades da morte...

Quero dormir... ancorar...
.................................................
Arranquem-me esta grandeza!
- Pra que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?...

Vontade de dormir, como forma de anular a ansiedade provocada pela incerteza da espera - espera de mudança, naturalmente - eis um tema curioso na lírica de Sá-Carneiro. O sujeito sente-se pulverizado por forças estranhas, suspenso e sem suporte. A necessidade de se fixar para alcançar equilíbrio e serenidade exprime-a por termos de significado homólogo: dormir e ancorar. Tal como um barco sem bússola no mar alto, o indivíduo sente-se agido por energias que não controla. Na sequência desse movimento sem norte surge o esgotamento. Essa é de facto a função do sono: evita o cansaço, criando defesas contra ele. Sá-Carneiro parece proteger-se dos perigos do meio exactamente como os animais que hibernam, mergulhando numa espiécie de estado letárgico. Foi nesse estado que partiu para a poesia, segundo carta a Pessoa, referindo as circunstâncias em que redigiu «Partida». Este tema abrange no entanto outros aspectos, dir-se-ia inesgotável. Evoca irresistivelmente a situação da Bela Adormecida à espera do beijo que a há-de despertar para vida nova. Ela também dorme para evitar a ansiedade da espera, da incerteza que a acompanha. A incerteza implica um desgaste psíquico. Imagem de fixidez libidinal, a Bela Adormecida repousa quem a contempla. Não se trata de um sono de morte, sim de uma diminuição das actividades orgânicas. O indivíduo que dorme recebe menos estímulos do exterior, portanto não gasta energia a responder-Ihes. Equivale também a um corte com a realidade e ao estabelecimento de ligações com outra, a do sonho. A Bela Adormecida sonha. A sua letargia é uma forma de defesa em relação à hostilidade do meio que simultaneamente lhe permite a liberdade de sonhar. Há quem considere esta figura uma representação própria de conflitos que surgem na adolescência, no momento em que o indivíduo sai de uma fase e tem de esperar o amor para abrir as portas da idade sexualmente adulta. A letargia defende-o da angústia ante a crise de mudança. Julgo que nenhum crítico alguma vez considerou a maturidade de Sá-Carneiro. Ele surge naturalmente como um adolescente.

Mas A Bela Adormecida enquadra-se noutro contexto, ao longo da obra de Sá-Carneiro, sobretudo a lírica. O da reminiscência do conto popular e fantástico, ambientes medievais evocados pelo cavaleiro, castelo, palácio e espada, manifestações de um imaginário que se deixa seduzir pelo maravilhoso, em suma: nostalgia da distância com tudo o que encerra de mítico. Como entender a «saudade da morte»? Saudades do que está morto, talvez. Saudades de um estado pré-existente, em que não há consciência. Mas este verso, literalmente, diz que o sujeito tem saudades da morte, como se a morte tivesse sido uma experiência passada. Não vou discutir uma teoria de facto perfilhada por Sá-Carneiro, a das vidas anteriores e sucessivas. Esse é o tema da novela «A estranha morte do Prof. Antena».

Nós estamos habituados à saudade, que se considera até um sentimento lusíada. Sobre o termo se formou a palavra «saudosismo», -ismo que em parte marca o «Orpheu». Será a saudade realmente um sentimento que consiste em dirigir o desejo para o passado? Que acontecimentos felizes teria um Sá-Carneiro para lembrar? E de que espécie de informações se tece a memória de um poeta que, como ele, se encontra em permanente estado de devaneio? A aspiração cria um contexto de imagens, o desejo forma os seus referentes a-históricos, de tal modo que, quando dizemos sentir saudades, é saudades dos nossos sonhos o que sentimos. A saudade, em Sá-Carneiro, não tem por referentes os factos vividos. Trata-se de saudades do futuro, do nunca experimentado, Aspiração a que o sonho se realize, ainda quando o seu maior sonho é sonhar:

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

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Conversa acabada? Sem ter levado até ao fim o raciocínio, desviando-me das conclusões ao menor pretexto, como se tivesse medo delas? Confesso que sim, que todas as associações de ideias foram bom motivo para me desviar do que mais me interessava. Acredito que o leitor também se interessasse. A verdade, no entanto, é que me sinto incapaz de falar com seriedade de assuntos que jndubitavelmente fascinaram Sá-Cameiro, fascinam toda a gente, mas numa situação de raciocínio crítico considero pouco sérios. A beleza da poesia não se descreve, mostra-se. Está na antologia. As ideias discutem-se, quando merecem discussão. As mais marcantes numa obra nem sempre o merecem. Apontam-se, o leitor fica livre de lhes atribuir o mérito que entender. Pessoa mais as sessões de espiritismo em casa da tia Anica, a sua vontade de se estabelecer como astrólogo com salão ao Rossio, horóscopos de Lisboa para Paris via normal, Mário com as teorias da reencarnação, tudo isso pesa nos livros e o vocabulário não deve andar longe do usado nos «Azulejos», revista ocultista onde o jovem suicida publicou alguns dos primeiros textos. Disposta a acreditar no impossível, desde que obra de um cérebro vivo, confesso-me incapaz de analisar a influência dos espíritos numa obra de arte. O mais que posso dizer, em vez de concluir, é que a literatura de Sá-Camciro transpira. A elipse acaba por ser a forma mais elegante de fugir ao contágio do mistério.

«Conversa Acabada», de João Botelho. Falei com André Gomes, que desempenhou no filme o papel de Sá-Carneiro. O André, um artista visual, fora convidado a representar de novo um sketch da personagem. Entre as razões legítimas com que recusou o convite, uma chamou-me a atenção: não desejava repetir uma situação que envolvera elementos mórbidos. Insisti com ele, interessada em saber o que sentira. Não se pode ser claro nem objectivo no domínio das emoções. Aludiu a perigos, à sensação de permeabilidade, de receptividade a algo que perturba o sentimento da identidade. Referiu-se à circunstância de andar em estado mais ou menos sonambúlico durante a rodagem do filme.

Este testemunho, mais do que interessante, foi tranquilizador para mim, pois também eu me achei a reagir de forma anormal, sobretudo depois de ter lido as cartas a Pessoa com grande concentração. Só a metáfora dá conta do que acontece, quando passamos da situação de leitor vulgar para a de intérprete, posição que exige um empenhamento e atenção mais fundos. Dá ideia que se liberta dos textos uma espécie de onda pastosa de emoções, a tentar aderir, a procurar suporte. Ou então o intérprete, ao abrir-se demais, torna-se excessivamente receptivo à sua própria perturbação emocional, provocada pelo que não conhece. Seja como for, há de facto um perigo, na mesma ordem de ideias em que se aconselham as pessoas muito sensíveis a não verem certos filmes na TV. Ou antes: não há perigo real, são só palavras. Palavras carregadas de um sentimento que repelimos às vezes com violência irracional. Tal como, diante de um tigre numa jaula, recuamos de medo quando abre a boca, ainda que só para bocejar.

Sá-Carneiro deve ter sido uma criatura inofensiva, se bem que sujeito esporadicamente a bruscos acessos de cólera. Conta Rogério Perez (V. Castex), seu condiscípulo de liceu, que uma vez Mário o correu a ele e a outro amigo pela escada abaixo, porque tinham ousado censurar-Ihe uma peça de teatro. Explosões pouco significativas no contexto geral. E nem sempre correspondendo à causa aparente. O desespero pode mascarar-se com qualquer pretexto. Julgo ser esse o motivo de gestos explosivos como o de partir um copo na cara, diante de Helena, como conta na carta que endereçou a Pessoa semanas antes de morrer. A obra está tão sobrecarregada dessa energia libidinal com fundo desesperado, que perturba, desgosta fisicamente. Tudo o que se torna excessivo nos faz recuar para a protecção oferecida pela norma. Ele não era normal. A poesia desvia-se da norma no sentido em que a sua extrema beleza e singularidade só por si a colocam em situação ímpar. Mas eu refiro-me à pessoa do autor, não à obra. E não me refiro apenas ao seu evidente desequilíbrio emocional.

Não sei por que razão nunca ninguém aludiu ao uso da estricnina. Ou antes: a certos compostos de estricnina, como o arseniato. Não é uma droga nem um afrodisíaco; trata-se mais propriamente de um produto farmacêutico usado em casos de impotência sem lesão orgânica total. Julgo desnecessário continuar a conversa. Afinal ele utilizou grande dose de um remédio para a acabar.