LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO SÉTIMO
 

23
Chegada a frota ao rico senhorio,
Um Português, mandado, logo parte
A fazer sabedor o Rei gentio
Da vinda sua a tão remota parte.
Entrando o mensageiro pelo rio
Que ali nas ondas entra, a não vista arte,
A cor, o gesto estranho, o trajo novo,
Fez concorrer a vê-lo todo o povo.

24
Entre a gente que a vê-lo concorria,
Se chega um Mahometa, que nascido
Fora na região da Berberia,
Lá onde fora Anteu obedecido.
(Ou, pela vezinhança, já teria
O Reino Lusitano conhecido,
Ou foi já assinalado de seu ferro;
Fortuna o trouxe a tão longo desterro).

25
Em vendo o mensageiro, com jocundo
Rosto, como quem sabe a língua Hispana,
Lhe disse: – «Quem te trouxe a estoutro mundo,
Tão longe da tua pátria Lusitana?»
– «Abrindo (lhe responde) o mar profundo
Por onde nunca veio gente humana;
Vimos buscar do Indo a grão corrente,
Por onde a Lei divina se acrecente.»

26
Espantado ficou da grão viagem
O Mouro, que Monçaide se chamava,
Ouvindo as opressões que na passagem
Do mar o Lusitano lhe contava.
Mas vendo, enfim, que a força da mensagem
Só pera o Rei da terra relevava,
Lhe diz que estava fora da cidade,
Mas de caminho pouca quantidade;

27
E que, entanto que a nova lhe chegasse
De sua estranha vinda, se queria,
Na sua pobre casa repousasse
E do manjar da terra comeria;
E despois que se um pouco recreasse,
Co ele pera a armada tornaria,
Que alegria não pode ser tamanha
Que achar gente vizinha em terra estranha.

28
O Português aceita de vontade
O que o ledo Monçaide lhe oferece;
Como se longa fora já a amizade,
Co ele come e bebe e lhe obedece.
Ambos se tornam logo da cidade
Pera a frota, que o Mouro bem conhece.
Sobem à capitaina, e toda a gente
Monçaide recebeu benignamente.

29
O Capitão o abraça, em cabo ledo,
Ouvindo clara a língua de Castela;
Junto de si o assenta e, pronto e quedo,
Pela terra pergunta e cousas dela.
Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,
Só por ouvir o amante da donzela
Eurídice, tocando a lira de ouro,
Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

30
Ele começa: – «Ó gente, que a Natura
Vizinha fez de meu paterno ninho,
Que destino tão grande ou que ventura
Vos trouxe a cometerdes tal caminho?
Não é sem causa, não, oculta e escura,
Vir do longinco Tejo e ignoto Minho,
Por mares nunca doutro lenho arados,
A Reinos tão remotos e apartados.

31
«Deus, por certo, vos traz, porque pretende
Algum serviço seu por vós obrado;
Por isso só vos guia e vos defende
Dos imigos, do mar, do vento irado.
Sabei que estais na Índia, onde se estende
Diverso povo, rico e prosperado
De ouro luzente e fina pedraria,
Cheiro suave, ardente especiaria.

32
«Esta província, cujo porto agora
Tomado tendes, Malabar se chama;
Do culto antigo os Ídolos adora,
Que cá por estas partes se derrama;
De diversos Reis é, mas dum só fora
Noutro tempo, segundo a antiga fama:
Saramá Perimal foi derradeiro
Rei que este Reino teve unido e inteiro.

33
«Porém, como a esta terra então viessem
De lá do seio Arábico outras gentes
Que o culto Mahomético trouxessem,
No qual me instituíram meus parentes,
Sucedeu que, prègando, convertessem
O Perimal; de sábios e eloquentes,
Fazem-lhe a Lei tomar com fervor tanto
Que pros[s]upôs de nela morrer santo.