LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO SÉTIMO
 
34
«Naus arma e nelas mete, curioso,
Mercadoria que ofereça, rica,
Pera ir nelas a ser religioso
Onde o Profeta jaz que a Lei pubrica.
Antes que parta, o Reino poderoso
Cos seus reparte, porque não lhe fica
Herdeiro próprio; faz os mais aceitos
Ricos, de pobres; livres, de sujeitos.

35
«A um Cochim e a outro Cananor,
A qual Chale, a qual a Ilha da Pimenta,
A qual Coulão, a qual dá Cranganor,
E os mais, a quem o mais serve e contenta.
Um só moço, a quem tinha muito amor,
Despois que tudo deu, se lhe apresenta:
Pera este Calecu sòmente fica,
Cidade já por trato nobre e rica.

36
«Esta lhe dá, co título excelente
De Emperador, que sobre os outros mande.
Isto feito, se parte diligente
Pera onde em santa vida acabe e ande.
E daqui fica o nome de potente
Çamori, mais que todos dino e grande,
Ao moço e descendentes, donde vem
Este que agora o Império manda e tem.

37
«A Lei da gente toda, rica e pobre,
De fábulas composta se imagina.
Andam nus e sòmente um pano cobre
As partes que a cobrir Natura ensina.
Dous modos há de gente, porque a nobre
Naires chamados são, e a menos dina
Poleás tem por nome, a quem obriga
A Lei não mesturar a casta antiga;

38
«Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,
De outro não podem receber consorte;
Nem os filhos terão outro exercício
Senão o de seus passados, até morte.
Pera os Naires é, certo, grande vício
Destes serem tocados; de tal sorte
Que, quando algum se toca porventura,
Com cerimónias mil se alimpa e apura.

39
«Desta sorte o judaico povo antigo
Não tocava na gente de Samária.
Mais estranhezas inda das que digo
Nesta terra vereis de usança vária.
Os Naires sós são dados ao perigo
Das armas; sós defendem da contrária
Banda o seu Rei, trazendo sempre usada
Na esquerda a adarga e na direita a espada.

40
«Brâmenes são os seus religiosos,
Nome antigo e de grande preminência;
Observam os preceitos tão famosos
Dum que primeiro pôs nome à ciência;
Não matam cousa viva e, temerosos,
Das carnes têm grandíssima abstinência.
Sòmente no Venéreo ajuntamento
Têm mais licença e menos regimento.

41
«Gerais são as mulheres, mas sòmente
Pera os da geração de seus maridos
(Ditosa condição, ditosa gente,
Que não são de ciúmes ofendidos!)
Estes e outros costumes vàriamente
São pelos Malabares admitidos.
A terra é grossa em trato, em tudo aquilo
Que as ondas podem dar, da China ao Nilo.»

42
Assi contava o Mouro; mas vagando
Andava a fama já pela cidade
Da vinda desta gente estranha, quando
O Rei saber mandava da verdade.
Já vinham pelas ruas caminhando,
Rodeados de todo sexo e idade,
Os principais que o Rei buscar mandara
O Capitão da armada que chegara.

43
Mas ele, que do Rei já tem licença
Pera desembarcar, acompanhado
Dos nobres Portugueses, sem detença
Parte, de ricos panos adornado.
Das cores a fermosa diferença
A vista alegra ao povo alvoroçado;
O remo compassado fere frio
Agora o mar, despois o fresco rio.

44
Na praia um regedor do Reino estava
Que, na sua língua, «Catual» se chama,
Rodeado de Naires, que esperava
Com desusada festa o nobre Gama.
Já na terra, nos braços o levava
E num portátil leito ũa rica cama
Lhe oferece em que vá (costume usado),
Que nos ombros dos homens é levado.