CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Três

Belo Horizonte não tem igrejas como Salvador ou Ouro Preto. Ou até Sabará ou Mariana. Mas as ladeiras são iguais e eu não preciso de igrejas para fazer as minhas vias-sacras. Sei que não devia fazê-las, mas faço. E, embora diga sempre, esta noite não vou, todas as noites eu vou. E sei para onde e por que vou. O meu passeio é sempre o mesmo e eu sei sempre o que vai acontecer. Para me justificar, digo que não sei como parar. Mas sei, só que não consigo. O meu medo é sempre maior do que a minha consciência.

A minha vida sempre foi um constante andar-à-volta e eu já tenho os pés redondos de tanto caminhar ao meu redor. Para qualquer lado que me volte o caminho é sempre o mesmo e as paradas também não mudam. Começo na Praça Afonso Arinos, sigo pela Avenida Augusto de Lima, paro na Praça Raul Soares, continuo pela Avenida Olegário Maciel e pela Rua dos Caetés e pela Rua Curitiba, paro na Rua dos Guaicurus e na Rua da Bahia, e volto á Avenida Augusto de Lima. Depois, fujo até á Rua Rio Grande do Norte. Mas é uma fugida sem fuga. Por mais tempo que demore volto sempre ao ponto de partida. O meu quarto no Mangabeiras Palace Hotel, na Praça Afonso Arinos.

Todas as noites faço esta via-sacra. Sempre calado e sempre só. Ninguém me conhece e eu também não conheço ninguém. As pessoas não param para conversar comigo e eu também não paro para conversar com elas. Passo por elas, mas é como se nunca nos cruzássemos. Ninguém me olha e eu também não olho ninguém. Ás vezes, adivinho corpos encostados nas paredes, ou nas árvores, e escuto palavras entrecortadas de gemidos. Mas é só. Eu passo e eles ficam. Eu sempre passo e eles sempre ficam. E, cada noite, a distância entre nós aumenta mais. Eu não posso parar e eles não podem seguir-me.

Saí do hotel há dez minutos. E, como sempre, disse comigo, esta noite não vou. Mas, também como sempre, vou e sei para onde e por que tenho que ir. Não quero ir, sei que não devo ir, mas não consigo parar. E vou. A cabeça dói e os ouvidos zumbem, e o corpo parece arder em febre. É sempre assim. Daqui a pouco direi que vou morrer e tentarei justificar a minha ida, alegando que são as minhas mãos que me levam e o chão que deixa que eu vá. Mas não são. Sou eu. Sou eu que vou. Mas, como sei que não devia ir e não tenho coragem de parar, digo sempre que são as minhas mãos que me levam e o chão que deixa que eu vá. Infelizmente, o meu medo é sempre maior do que a minha consciência.

Estou na Avenida Augusto de Lima e acabo de passar a esquina da Rua Rio de Janeiro. A calçada desce e escorrega, e ando devagar. Tenho as mãos nos bolsos e penso que ainda posso voltar para o hotel. Quem sabe não vou hoje e amanhã não preciso mais voltar? Paro, satisfeito com a idéia, e fico sorrindo no meio da calçada. Hoje não vou, vou voltar. Respiro fundo e dou um passo, e começo a meia-volta. Mas nem termino. As minhas mãos, de repente, enterram as unhas nas minhas pernas e elas assustam-se e voltam à posição inicial. Por que será que as minhas mãos fizeram isto? Será que adivinharam o que eu pensei ou será que me conhecem melhor do que eu mesmo? Quero tirá-las dos bolsos e olhá-las, mas elas resistem e não saem. Tento, então, começar outra meia-volta, mas não consigo. O meu corpo, agora, pesa toneladas. Concentro-me e reteso todos os músculos, mas só o suor escorre pelas costas. Estou pregado no chão e sei que não poderei voltar para o hotel. Por quê? Por que motivo as minhas mãos fizeram isto? Logo hoje, quando eu tinha certeza que poderia superar o meu medo?

Cem metros à frente está a esquina da Rua São Paulo. Respiro fundo e concentro-me outra vez. Se chegar lá estarei salvo. As minhas mãos pensarão que estarei obedecendo e largarão as minhas pernas, e poderei voltar para o hotel. Concentro todas as forças nos pés e dou um passo. Sei que as minhas mãos me matarão se adivinharem o que penso, mas tenho que arriscar. Não posso morrer agora, entre estas duas esquinas, só porque as minhas mãos querem que eu vá e eu não quero ir.

Vou castigá-las. Deixo que enterrem ainda mais as unhas nas minhas pernas e faço de conta que nem sinto. Mas vou castigá-las. É só ter paciência e o momento de castigo chegará. Por mais inteligentes que sejam, as minhas mãos não são mais inteligentes do que eu. Quando chegar ao cruzamento, em vez de seguir, dobrarei a esquina e entrarei na Rua São Paulo e voltarei. As minhas mãos não conhecem a Rua São Paulo e pensarão que ainda estarei andando pela Avenida Augusto de Lima. E se, por acaso, descobrirem, mesmo assim, terei tempo de pensar em outra solução. O importante é não morrer agora, entre estas duas esquinas.

Relaxo os músculos e procuro respirar calmamente, para que as minhas mãos não desconfiem e abrandem a vigilância. Se cochilarem um segundo que seja, já poderei controlá-las. Por enquanto, ainda estão vigilantes e atentas, e enterram cada vez mais as unhas nas minhas pernas. Mas isso é o de menos. Já estou tão habituado que nem sinto mais a dor. E, mesmo que sentisse, não teria importância. O importante é as minhas mãos cochilarem e eu poder controlá-las. E, depois, castigá-las.

O indicador da mão direita e o mindinho da esquerda estão mexendo. Sorrio. As minhas mãos, mesmo sendo como são, ainda não são como eu. Não têm a minha paciência e não sabem esperar. Deixo-as à vontade, como se não soubesse o que pensam, e, de repente, num gesto rápido, mando-as sair dos bolsos. Apanhadas de surpresa, não têm tempo de reagir e cumprem a minha ordem. Deixo-as cair ao longo do corpo e respiro, aliviado. Agora, que já as controlei, tenho certeza que poderei fazer o que quiser. Poderei voltar para o hotel ou poderei continuar o meu passeio. Já estou bem e estou calmo, e nada me poderá obrigar a fazer o que não quero. Nem as minhas mãos.

Atravesso a Rua São Paulo e paro na calçada. As minhas mãos vão comigo e, agora, vão fazer, exatamente, o que eu mandar. Respiro fundo e olho-as, e penso na melhor forma de castigá-las. Elas nem me olham, mas eu sei que não estão arrependidas. As minhas mãos nunca se arrependem. Se, agora, estão quietas é só porque estão envergonhadas. Conheço as minhas mãos. Jamais imaginaram que eu poderia ser mais inteligente do que elas.

Pego o maço de cigarros com a mão esquerda, a minha mão esquerda sempre foi a mais dócil e a mais fácil de controlar, e olho a direita. Ela fecha os dedos e baixa o punho, como se não quisesse que eu visse a sua humilhação, e esconde-se nas minhas costas. Puxo-a com força e obrigo-a a olhar-me bem nos olhos. É bom que saiba que posso mandar nela. Mando-a acender um fósforo e observo-a com atenção. Apesar de estar controlada, não posso abrandar a vigilância. Conheço-a bem. Se não ficar atento, ela é capaz de passar o fósforo para a esquerda e rir de mim. Já não é a primeira vez que faz isso. Só que, agora, já não me engana mais. Levanto-a à altura dos olhos e deixo o fósforo queimar. E, enquanto a chama desce pelo palito e ele se retorce e carboniza, fico pensando: se eu ando todas as noites por estas ruas e carrego sempre as minhas mãos, por que é que as minhas mãos também não têm as suas próprias mãos e vão onde quiserem, em vez de me obrigarem a ir sempre onde não quero?

Não gosto das minhas mãos. Tenho certeza que se não as vigiasse constantemente elas me matariam. Muitas vezes, sem eu querer, nem mandar, fazem coisas que nunca pensei que pudessem fazer. E se tento controlá-las, revoltam-se e cravam as unhas nas minhas pernas e obrigam-me, também, a fazer coisas que nunca pensei que pudesse fazer. As minhas mãos são piores do que eu. Eu só faço o que me deixam fazer. Elas não. Elas fazem o que querem e ainda me obrigam a fazer o que não quero. Por isso, não gosto delas. Mas elas também não gostam de mim. Odeiam-me. Sei que me odeiam. E odeiam porque, embora andem sempre na minha frente e vejam coisas que eu não vejo e escutem conversas que eu não escuto, ainda não conseguiram separar-se do meu corpo. Por mais força que tenham e por mais independentes que sejam, as minhas mãos ainda são minhas.

Sei que não confiam em mim. Mas eu também não confio nelas e só adormeço quando já estão adormecidas. Há muitos anos sou obrigado a fazer isto. Se adormecesse antes, tenho certeza, nunca mais acordaria. Se ainda estou vivo, devo a minha vida a esta vigília constante. Por isso, percorro todas as noites estas ruas, esperando que as minhas mãos adormeçam. Hoje, por exemplo, sei que poderia ter ficado no hotel. Estava bem e estava calmo, e não precisava sair. Na verdade, só saí por causa das minhas mãos. Se não saísse, elas não adormeceriam e, tenho certeza, me estrangulariam. O ódio das minhas mãos é muito maior do que o meu.

Mas elas também se vingam. A cada momento que passa, só pelo prazer de me violentarem, obrigam-me a sentir a presença de tudo que me cerca. É por meio das minhas mãos que eu conheço as paredes das casas, as cascas velhas das árvores, as portas dos cinemas, o vidro frio dos copos mal lavados onde costumo tomar os meus conhaques, tudo. Tudo que eu conheço, conheci através das minhas mãos. E elas me violentam, justamente, porque sabem que, sem elas, eu não seria quem sou. Não teria, nunca, nenhum prazer.

Mas eu também me vingo. Mesmo sem vontade de fumar, pego um cigarro e acendo um fósforo. Como agora. Já tenho o cigarro na boca e o fósforo já está aceso, mas só eu sei que não vou fumar. Tudo que fiz até agora, pegar o cigarro e colocá-lo na boca e pegar a caixa e acender o fósforo, não passou de um pretexto para castigar as minhas mãos. Mas elas não sabem. Felizmente, as minhas mãos são mais racionais do que eu e sempre agem como se tudo tivesse, obrigatoriamente, uma seqüência lógica. Para elas, pegar um cigarro e acender um fósforo só pode ter um significado: fumar. Mas, para mim, o significado destes gestos pode não ser seqüente, nem ser lógico. E, desta vez, não é mesmo. Apesar de ter o cigarro na boca e o fósforo já estar aceso, não vou fumar. Não sou obrigado a fumar. Na verdade, a única vantagem que eu tenho sobre as minhas mãos é esta: os fatos não serem, obrigatoriamente, lógicos. Porque, se fossem, já há muito elas me teriam estrangulado.

Agora, como sempre, foi a mão direita que acendeu o fósforo. E tenho certeza que pensa que o fósforo só foi aceso para acender o meu cigarro. Nenhuma delas, nem a esquerda, que segurou a caixa, nem a direita, que riscou o fósforo, sabe que não vou fumar. Da forma lógica como agiram, para elas, eu também só posso fazer uma coisa lógica. Por isso, não estão preocupadas. Mas não vou fumar. Vou castigá-las. Embora saiba que, quando a chama queimar a pele, também sentirei dor. Mas elas sentirão primeiro, e esse será o seu castigo.

Estou com raiva das minhas mãos. Logo que parei, depois da esquina da Rua São Paulo e pensei voltar para o hotel, elas, para se vingarem da minha força de vontade, me agrediram. De repente, sem o menor aviso, sem eu ter tempo, sequer, de pensar no que estava acontecendo, as minhas mãos me obrigaram a conhecer uma coisa que eu, naquele momento, não queria conhecer. Um automóvel. Eu posso imaginar o que quiser. Posso até imaginar Deus ou os seios de todas as mulheres, quanto mais um automóvel. Mas, conhecer aquele, exatamente aquele - BN-9659 - só se as minhas mãos o tocassem. E foi o que elas fizeram. Se não o tivessem tocado, ele continuaria sem forma. Sei que os automóveis existem. Todas as coisas existem. Mas só quando as minhas mãos me obrigam a senti-las é que as coisas tomam forma e me agridem.

Por isso, só porque me odeiam e conhecem esta minha dependência, é que as minhas mãos me fizeram conhecer aquele automóvel. Até que elas o tocassem e eu o sentisse, ele não existia. Até àquele exato momento, se não fosse o ódio das minhas mãos eu estaria tranqüilo. Mas elas me odeiam tanto que não permitem, sequer, que eu tenha privacidade.

Estou na Praça Raul Soares. Na minha frente está um banco e eu sei que posso sentar nele. Não vou sentar, o meu destino é outro, mas sei que, se quisesse, poderia sentar nele. Bastaria ter vontade. Se tivesse vontade de sentar e não existisse nenhum banco, sentaria no chão. O importante seria ter vontade. Olho o banco e me sinto bem. Ele é apenas um pormenor e não afeta a minha existência. O que importa é o meu poder de decisão. Para sentar não preciso de bancos. Preciso, apenas, de vontade. Volto a olhar o banco e me sinto ainda melhor. Não são os bancos, nem é mais nada, é só a minha vontade que determina o meu estar-no-mundo.

Continuo andando e paro junto de um canteiro do jardim. Na minha frente está uma árvore e vejo que não posso passar através dela. O tronco não permite. Olho à volta e a Praça Raul Soares está cercada de edifícios, e também vejo que não poderei sair dela, caminhando em linha reta. Por mais vontade que tenha, não posso fazê-lo. Aquelas paredes me cerceiam. E, então, penso: o que vale a minha vontade, se só vale para mim? Na verdade, a minha vontade não vale nada. Uma simples árvore me obriga a parar e as paredes dos edifícios me obrigam a dar voltas. E, o que é ainda pior, se o chão que me sustem não existisse, por mais vontade que eu tivesse, não poderia sentar. Nem andar. Nada. Se este chão que sustem o peso do meu corpo não existisse eu também não existiria.

Volto-me e olho o banco, e comparo-o comigo. Na verdade, mesmo que ele seja apenas um pormenor é muito mais consistente do que eu. Existe junto com o chão e eu apenas existo em função dele. Diante do que sou, na verdade, este chão é, exatamente, igual às minhas mãos. Se são elas que me obrigam a vir aqui todas as noites, é ele que permite a minha vinda e eu só não existirei em função dele depois de ter morrido.

Ainda não consegui castigar as minhas mãos. O fósforo que tinha acendido na esquina da Rua São Paulo foi apagado pelo vento. Mas, agora, vou castigá-las. E sem dó nem piedade. Se não fossem elas, eu não estaria aqui, nem estaria pensando em tudo isto.

Encosto-me na árvore e acendo um fósforo, e deixo-o arder até ao fim. A chama já queima a pele, e sinto a dor da queimadura, mas não me importo. Antes pelo contrário, estou bem e estou calmo, e sinto até prazer. Quanto mais forte for a dor, mais forte será o castigo das minhas mãos. Estas mãos que sabem tudo, que tudo podem e sempre me obrigam a fazer coisas que não quero.

Estou na porta do cinema Candelária. A primeira parada da minha via-sacra. Não quero entrar, sei que não devo entrar, mas vou entrar. Tenho que entrar. Sei qual o filme que vou ver e sei também o que vai acontecer. Vou sentar numa cadeira lá na frente e as minhas mãos vão começar a trabalhar. E, quando os seios das atrizes abanarem na tela e se cobrirem de espuma, terei ganho a minha recompensa. É para isso que faço as minhas vias-sacras.

 
 
 
 

Cunha de Leiradella
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