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A.M. GALOPIM DE CARVALHO

"ONDE A TERRA SE ACABA E O MAR COMEÇA"
(O LITORAL PORTUGUÊS NOS ÚLTIMOS 18 000 ANOS)(3)

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Há cerca de 18 000 anos, no Paleolítico, já as mais antigas gravuras rupestres do Côa se disseminavam pelas paredes rochosas do vale, no máximo de rigor e de extensão da glaciação Würm, a calote glaciária em torno do Pólo Norte, espessa de dois a três milhares de metros. Descia até latitudes que, na Europa, atingiam o norte da Alemanha (e a latitude de Chicago, nos EUA), deixando toda a Escandinávia submersa numa imensa capa de gelo, a que os geológos chamam inlandsis, capa que cobria igualmente todo o Canadá e grande parte da Sibéria.

No Atlântico, a frente polar, ou seja, o encontro entre as águas polares, com icebergs à deriva, e as águas temperadas, situava-se à latitude da nossa costa norte, entre Aveiro e o Porto. O nível do mar estaria, ao tempo, uns 140 m abaixo do actual, pondo a descoberto uma vasta superfície de terras baixas, levemente inclinada para o largo e que corresponde à actual plataforma continental. Da linha de costa de então descia-se rapidamente para os grandes fundos oceânicos, com 4 a 5 mil metros de profundidade. A temperatura média das nossas águas rondaria, então, os 4º C.

As serras da Estrela e do Gerês, à semelhança de outras montanhas no país vizinho (Gredos, Guadarrama, etc.), tinham os cimos permanentemente cobertos de gelo, desenvolvendo processos de erosão próprios dessa situação climática, cujos efeitos ainda hoje se podem observar em importantes testemunhos como, por exemplo, na serra da Estrela, o vale glaciário do Zêzere, entre a Nave de Santo António e Manteigas, além de grandes penedos erráticos (Poio do Judeu), certas concentrações pedregosas muito heterométricas (moreias) e superfícies rochosas estriadas e polidas, etc..

Nos relevos menos proeminentes, mais a sul e menos afastados do litoral, como as serras calcárias de Sicó, Aires, Candeeiros e Montejunto, encontram-se ainda, da mesma época, vestígios bem conservados e evidentes de acções ditas periglaciárias (porque ocorrem à periferia dos glaciares), expressas por certas coberturas de cascalheiras soltas, brechóides, sem matriz argilosa, essencialmente formadas por fragmentos de calcário muito achatados e angulosos (em virtude da sua fracturação pelo frio) que deslizaram ao longo das vertentes geladas, destituídas de vegetação e de solo, e se acumularam na base desses desníveis. A conhecida "pincha" de Minde, jacente à beira do grande polje de Mira-Minde, teve a sua origem nesta altura e através deste processo.

A partir de então, teve lugar uma importante melhoria climática. A temperatura global sofreu uma elevação gradual; as grandes calotes geladas começaram a fundir e a retrair-se, debitando nos oceanos toda a imensa água até então aprisionada nas latitudes circumpolares e nas altas montanhas. Em consequência, o nível geral das águas iniciou a última grande subida, em mais uma invasão das terras pelo mar, conhecida por trangressão flandriana. Praticamente todos os rios portugueses, do Minho ao Guadiana, terminam em estuários que não são mais do que vales fluviais escavados durante a glaciação Würm e posteriormente invadidos pelo mar no decurso da a referida transgressão.

No que se refere à margem portuguesa, sabemos, pelos estudos realizados na nossa plataforma continental, que, há uns 12 000 anos, na continuação do degelo global, o nível do mar coincidia com uma linha aí bem marcada à profundidade de 40 metros (isto é, a isóbata - 40 m). Uns mil anos mais tarde, há 11 000 anos, a tendência geral de aquecimento generalizado foi perturbada por uma crise de arrefecimento à escala mundial. Uma explicação para esta interrupção relativamente brusca no processo de aquecimento global, que se vinha a verificar há alguns milhares de anos, pode encontrar-se na presunção de que durante a deglaciação se formaram, no continente norte-americano, lagos enormíssimos mantidos por grandes barreiras de gelo, que teriam recebido as águas de cerca de oito mil anos de degelo nessa área do inlandsis" árctico. Admite-se que, tendo descongelado as barreiras que sustinham esses lagos, toda a água doce aprisionada entrou no Altântico Norte, desencadeando a brusca congelação da superfície do mar (1) precisamente na latitude onde se forma a chamada água atlântica de fundo e a consequente mudança climática com reflexos à escala global.

Com um tal arrefecimento os glaciares não só interromperam o degelo como reinvadiram as áreas entretanto libertadas. Em consequência desta nova retenção das águas, o nível do mar desceu, de um valor avaliado em cerca de 20 metros, isto é, para a isóbata - 60 m e assim permaneceu durante cerca de mil anos. A frente polar, que recuara até latitudes mais setentrionais, avançou de novo e atingiu o paralelo da Galiza, pelo que as temperaturas das nossas águas voltaram a descer, rondando os 10º C. No final deste episódio de inversão climática, a que se dá o nome de Dryas recente, há 10 000 anos, a transgressão retomou o seu curso. O clima tornou-se mais chuvoso e mais quente, entrando-se no que muitos autores designam por interglaciário. Há 6 a 7 mil anos a temperatura média atingia aqui valores na ordem dos 5º C acima dos valores normais no presente. Foi o recomeço da subida generalizada do nível do mar, que se vinha a verificar desde o início da deglaciação (à razão de cerca de 2 cm por ano, em valor médio, embora a ritmo não constante e com algumas oscilações) caracterizando um período conhecido por Óptimo Climático, que coincidiu em parte com o nosso Mesolítico, bem exemplificado nos magníficos concheiros de Muge, no Ribatejo.

O nível marinho actual foi atingido entre os 5 000 e os 2 500 anos atrás, em pleno Megalítico ibérico, iniciando-se aí o que é corrente referir como Período Climático Subatlântico, marcado por relativa humidade. A partir de então verificaram-se pequenas oscilações na temperatura, marcadas por moderadas e curtas (relativamente) crises de frio, com correspondentes recuos do mar assinalados como o Baixo Nível Romano, há 2000 anos, o Baixo Nível Medievo, em plena Idade Média (Séc. XIII e XIV) e a Pequena Idade do Gelo, nos Séc. XVI a XVIII, bem assinalada na Europa do Norte pelo congelamento de rios e lagos (situações testemunhadas em pinturas da época) e pela ocorrência de grandes cheias primaveris na sequência do degelo nas montanhas.

No litoral português, como em qualquer outro, à evolução natural associa-se uma outra, dita antrópica, em especial a partir do Séc. XIX, logo que se começou a fazer sentir a pressão da sociedade humana (grandemente transformada pela Revolução Industrial) sobre a orla costeira, nos portos, nas barras, nos areais.

No que se refere à configuração do nosso litoral, em tempos históricos mais antigos, por volta do Séc. XIV, data a partir da qual dispomos de documentos com algum significado, e por comparação com os mapas de então (portulanos) ficamos a saber, por exemplo, que algumas das actuais pequenas lagunas conhecidas por lagoas de Santo André, Melides, Albufeira ou Óbidos, eram nessa altura pequenas reentrâncias da costa, abertas ao mar. Os cordões de areia que actualmente as fecham não existiam. No lugar da Ria de Aveiro, em vez da laguna que hoje é, de facto, havia um golfo, com cerca de 75 km de extensão e algumas ilhas de areia. O Baleal e Peniche, hoje pequenas penínsulas, não estavam ainda unidas a terra pelos seus ístmos arenosos. A Ria Formosa, ou Ria de Faro, outro sistema lagunar da nossa costa, tinha outra configuração e o Guadiana desaguava através de um amplo estuário actualmente inexistente devido a assoreamento, etc..

Bastam estes exemplos para nos darmos conta, mesmo à escala do tempo histórico, de quão instável é a linha de costa na dependência que mantém face às condições naturais locais nos séculos e séculos de pouca e nenhuma intervenção da tecnologia própria da sociedade moderna.
 
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(1) A água doce congela a uma temperatura mais elevada do que a água do mar, salgada.