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A.M. GALOPIM DE CARVALHO

"ONDE A TERRA SE ACABA E O MAR COMEÇA"
(O LITORAL PORTUGUÊS NOS ÚLTIMOS 18 000 ANOS)(fim)

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A interferência da civilização na paisagem física colide sempre, em maior ou menor escala, com o todo natural. A construção de barragens nas bacias hidrográficas dos nossos grandes rios, a partir dos anos 50 do século XX, reduziu, drasticamente, o volume de inertes fornecidos à deriva litoral e necessário à realimentação das praias. Em resultado desta deficiência, o litoral entre Aveiro e o Cabo Mondego, por exemplo, está a perder um volume de areias estimado em cerca de quatro milhões de toneladas por ano.

A generalidade dos estudos realizados em torno da morfodinâmica do litoral português mostram que a retenção de inertes pelas albufeiras das barragens hidroeléctricas e hidroagrícolas (que intersectam o curso normal dos rios ibéricos virados ao Atlântico) é responsável, só por si, por grande parte do recuo da nossa linha de costa. Por outro lado, a extracção industrial de areias no litoral, nos leitos dos rios e nos estuários e as dragagens para desassoreamento de portos e barras, na ordem dos milhões de toneladas/ano, são outras tantas causas dessa diminuição de abastecimento, com evidentes reflexos no equilíbrio do litoral. Uma outra causa de recuo da linha de costa, não controlável pelo Homem, está relacionada com a tendência actual de subida global do nível médio das águas do mar, estimado em cerca de 1,5 mm/ano, na costa portuguesa.

As obras de engenharia que estamos a fazer para remediar situações, tantas vezes dramáticas, criadas pela civilização e a que se tem chamado eufemisticamente "protecção do litoral", não passam afinal de intervenções para a protecção de bens aí instalados, a maior parte das vezes por incúria, puro oportunismo ou simples ignorância. A construção de molhes, de esporões e de outros enrocamentos procuram resolver situações locais, pontuais, mas criam sempre outras, transferindo o mesmo tipo de problemas para jusante e geralmente de forma agravada.

Após a construção do Molhe de Aveiro, nos anos 50, passaram a acumular-se, por ano, cerca de 2,5 milhões de toneladas de areia a norte deste enrocamento, na sequência do qual se registaram reflexos bastante negativos a sul, com um recuo médio da linha de costa estimado na ordem de 3m/ano. Para resolver este problema surgiu o campo de esporões na Costa Nova, com transferência para sul (Vagueira, Areão...) das consequências que uma tal intervenção desencadeou.

A continuar-se por esta via de soluções pouco racionais, em breve todo o nosso litoral nos oferecerá o espectáculo confrangedor que nos é dado ver em Ofir, Espinho ou em Quarteira. Só entre Cortegaça e Espinho (9 km), por exemplo, por cada 650 m de costa, foi implantado um esporão. Catorze ao todo. O recurso aos enrocamentos já mostrou que nem sempre resulta. Os seus inconvenientes são hoje visíveis. As alternativas não são fáceis na maioria dos casos. Quando, em ocasiões de temporal de SW e SSW, ocorre o que os pescadores designam por "desgaivar" ou "esgaivar" (termo vareiro), com intenso ataque ao areal da praia e às dunas, deixando a descoberto a zorra, cepos de antigas árvores ainda enraizadas, como testemunhos de terra emersa num passado recente. Há realizações que estão condenadas (barracas e pequenas casas de pescadores, vivendas, hotéis) para as quais pouco mais podemos fazer para além de esperar que as vagas as destruam. É só uma questão de tempo que até somos capazes de estimar. Não podemos é continuar a planear o litoral de costas viradas para o que a Ciência nos está a oferecer. Não podemos, ou pelo menos não deveremos ir atrás de soluções imediatistas ou em resultado de interesses tantas vezes duvidosos. Há que saber conviver com o mar, respeitar os seus códigos (o que aliás deve ser regra no nosso relacionamento com a natureza) que conhecemos com razoável pormenor. Temos de olhar o mar como um sistema complexo e dinâmico, alimentado por forças incomensuráveis que conhecemos mas não dominamos, cuja acção sobre o contorno das terras busca constantemente um equilíbrio de coexistência nunca alcançado. É uma evolução natural que temos de compreender e aceitar para com ela nos articularmos melhor. Foi esta atitude que esteve na base de um dos raros exemplos de intervenção racional, exemplificado pela realimentação da Praia da Rocha com areias do Arade.

Lisboa, 2004.05.21
António Marcos Galopim de Carvalho

 
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