NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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Híbridos pós-humanos:
A inteligência artificial implantada nos humanos como corpos expandidos
João Baptista Winck

5- A inteligência artificial ou o design de relações.

Ao longo da história política das representações, concebida como capacidade tecnológica de gerar, distribuir, fazer interagir e armazenar inteligência coletiva no repositório inconsciente, um design de relações teve mais êxito do que outros. A pintura, a música e a teatralidade são formas muito antigas de relação entre a natureza e a cultua. A escrita nunca superou as culturas oralmente transmitidas. Um étimo da pintura foi abstraído pela escrita. A caligrafia tornou o desenho mais abstrato e regular, como hábito de pintar as letras e a musicalidade nelas contida. O audiovisual incorporou a teatralidade à escrita ao torná-la ferramenta de narração no roteiro, recuperando a oralidade. O digital está na trajetória da convergência das tecnologias de representação, amalgamando todas as formas de expressão por meio da regularidade das matemáticas, cuja lógica se pode encontrar na pintura e assim sucessivamente, num hibridismo perpétuo de estratégias e técnicas culturais. Na cultura, como na natureza, nada se perde: tudo se transforma.

Se o hibridismo de estratégias e técnicas fosse puramente de caráter instrumental, teria condições de reversibilidade, o que não ocorre. A natureza da inteligência artificial, consubstanciada no projeto de relações sociais, agrega valor à tradição, inviabilizando o retorno às origens. A inteligência artificial é constituída somente de meios nos quais o início é um amálgama e o fim uma réplica tecnológica mutante: um híbrido pós-humano cuja identidade é um artifício.

O conceito de tecnologia aqui utilizado diz respeito à somatória das estratégias e ações concebidas como modos de produção e reprodução social do design de relações, associadas aos instrumentais e equipamentos, que são os meios para consubstanciar, informar e armazenar uma dada cosmovisão ou gnose. Quaisquer formas de representação - verbais e não-verbais - estão incluídas nesse conceito e se constituem, portanto, em ferramentas da inteligência artificial, também aplicado às máquinas e equipamentos, enquanto ambientes sintéticos.

Mais uma hipótese se faz necessária: a existência abstrata de uma fina película que separa a dimensão provável da inteligência, da categoria da comprovação da sua existência material a que ela é submetida constantemente. A este fino substrato que, ao mesmo tempo, separa e reúne os campos da inteligência factual (ou herança), da inteligência ficcional (ou retórica) da inteligência física (ou desígnio) chamamos de Design de Relações.

O design de ralações pode ser entendido como o sistema abstrato de interação (modelo de ralação entre homem e mulher, entre familiares, entre o adulto e a criança, nas relações de produção etc.) que opera como extensão dos sentidos humanos ou como instrumento tradutório ou mediador, configurado como tecnologia de informação, comunicação, translação e tele-presença, fazendo unir, por meio de uma ponte abstrata, o que está apartado fisicamente. Sem este aparelho de inter-relação o indivíduo fica apartado do grupo e imóvel nas suas relações existenciais com o entorno.

Enquanto tecnologia capaz de idealizar, narrar, expandir e armazenar a mente coletiva, o design de relações é uma extensão artificial do pensamento, tecnicamente articulado como narrativa, capaz de operacionalizar uma estratégia de organização do pensamento coletivo em linguagem no individuo, a qual se atualiza no primeiro meio de comunicação e interação disponível: o próprio corpo humano transmutado em canal de interconexão.

O conceito de design aqui empregado diz respeito ao projeto cordato de fazer interagir os modos de representação e os meios de produção aos veículos de distribuição e partilha, sejam eles materiais ou simbólicos. A inteligência artificial, portanto, são simultaneamente projetos estéticos, éticos e filosóficos subjacentes aos propósitos e as instituições sociais. O design de relações é o quê amalgama projeto, processo e produto no artifício, enquanto algo idealmente modificado.

Por exemplo, para fazer um indivíduo se relacionar com o clã é necessário dispor de um idioma comum, uma imagem de si mesmo semelhante a do outro (produto); ser reconhecido como semelhante no grupo partilhar algum tipo de parentesco ou acordo de merecimento (processo); aceitar a presença do Estado central que arbitre as relações de partilha e acreditar num sistema ético e moral de representações coletivas comum (projeto). Se forem retirados quaisquer destes elementos o indivíduo fica paralisado. Seja fisicamente, pela ausência do processo, seja mentalmente pela impossibilidade de identificação com projeto.

Do ponto de vista do projeto, a pintura, da mesma forma que a literatura, a música ou a dramaturgia são arquiteturas de ambientes sintéticos que amalgamam os indivíduos dispersos ao conjunto. Manifestações (ou produtos) que, à priori, não existiriam sem a presença da mente humana (ou processo). São expressões de um design de relações projetadas ao concreto da rede de conhecimentos e interações da práxis social (ou projeto). São idéias obsedadas à realidade material como aparelhos de interação.

Do ponto de vista do processo, cada nova tecnologia de representação da inteligência artificial, se comparada a sua antecessora, representa um verdadeiro esforço civilizatório para perpetuar a cultura e suas tecnologias de representação.

Semelhante ao gene, as estratégias de inteligência artificial se articulam na perspectiva de sofisticar seus ambientes sintéticos, suas formas de representação e as maneiras de interação e partilha. Não significa superação de uma por outra. Ao contrário, significa amalgamar inteligências passadas e presentes visando ao futuro, numa teleologia do caos dos intercâmbios que constitui a rede de informações na qual os humanos transitam.

Do ponto de vista do produto, enquanto dezenas de escribas escreveram a história, centenas de escritores reescreveram os escribas, acrescentando-lhes novos conteúdos e formas; milhares de gráficos recuperaram os calígrafos, ampliando ainda mais o espectro da inteligência coletiva. Os cineastas adaptaram a cultura letrada à linguagem audiovisual, da mesma forma que os monges e cientistas traduziram as culturas antigas aos modernos. Hoje uma multidão de digitadores se ocupa em digitalizar os acervos gráficos e audiovisuais sob a nova forma de expressão: a inteligência eletrônica em rede informáticas, cujo ambiente sintético promove a interação homem-máquina-homem, à distância, apartados no tempo e no espaço por meio das telecomunicações.

A inteligência coletiva vem atuando como design de relações em redes de conhecimentos, translação e interação ao longo de toda história das tecnologias e técnicas idealizadas como artifício. Neste aspecto, poderíamos narrar a história humana através do desenvolvimento das suas tecnologias da inteligência como as formas de cooperação e de experimentações, nas quais a contingência predomina sobre a seqüencialidade. A memória, neste sentido, seria um ininterrupto fluxo contínuo de remissões e re-elaborações, em que qualquer pensamento pode remeter ao conjunto virtual do banco de dados do labirinto do mega-sistema cultural. Entretanto, a memória narrada é artificialmente implantada no indivíduo. A memória in natura é herdada à revelia. As grandes migrações comprovam isso. Os desterrados, ao longo de um processo, muito embora continuem fisicamente semelhantes vão se distanciando do design de relações dos antepassados e reinventando novas formas de relação.

O design de relações, portanto, é uma tecnologia narrativa considerada como gnose aplicada. É uma estratégia capaz de, sob determinadas condições táticas e operacionais, proceder a presságios, prognósticos e anúncios acerca dos fenômenos interiores e exteriores ao observador e narrá-los de forma coerente.

Na inteligência biológica os fatos se apresentam tais como são, embora em grade parte misteriosos e caóticos. Na inteligência artificial os fatos são montados propositalmente numa dada ordem e num certo sentido, de acordo com a vontade dos narradores. A inteligência biológica dialoga e interage. A inteligência artificial discursa e separa o sujeito do objeto do discurso. Esta ordem visa atribuir o valor da coerência à interação entre sujeito-objeto-sujeito e ao desenvolvimento desta inter-relação. Articula e arbitra uma seqüência de fatos aparentemente coesos, envolvendo intuição, situação e razão, numa cronologia progressiva e teleológica, crivada de interesses.

O design de relações como estratégia matriz, possibilita a redução do ato de inventar, ordenar e narrar todas as contingências possíveis num único clichê narrativo: o clã como célula organizadora da tele-presença (mente) por meio de avatares (identidade) em ambientes sintéticos (ego). Como tática de expressão e operação de auto-reprodução de uma organização social, o design de relações traduz a realidade caótica em reconhecimento do formato narrativo articulado e partilhado socialmente.

Esta tecnologia narrativa entendida como conjunto de meios, recursos, métodos, disciplinas e instituições voltadas para o desenvolvimento das relações humanas reconstitui o estar humano à deriva num argumento coerente acerca da sua identidade. O individuo, contudo, se manifesta através do erro e da ignorância no interior deste design. O contínuo aprendizado desta estrutura narrativa significa aceitação e inclusão no clã.

Este design impõe, subliminarmente, uma única rota de compreensão de si próprio e do entorno estabelecendo, entre os diferentes agentes sociais, um padrão comportamental a partir de um imaginário unitário acerca do modo de vida. O imaginário, entrementes, é dependente da decisão derradeira da comunidade dos que decidem sobre ele. Neste design de relações, portanto, a reprodutibilidade da informação é traduzida em narrativas fixas, cuja organização interna inclui autor, mídia e interlocutor numa única e complexa entidade comunicacional: o discurso visando autorizar a funcionalidade do aparelho.

No entanto, a consciência deste modo de vida só ocorrerá num estágio ideal de informação completa, o que não se efetivará, dado que a realidade está em perpétuo movimento de reprodução e translação, isto é, a aposta no desenvolvimento de novas lógicas e equipamentos, progressivamente alteráveis ao sabor do próximo acordo entre os pares que dominam as linguagens.

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