NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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Híbridos pós-humanos:
A inteligência artificial implantada nos humanos como corpos expandidos
João Baptista Winck

6- Autômato biológico: tecnologias implantadas em humanos

Seguindo nesta linha de argumentação, a cultura pode ser entendida como uma estratégia de design de relações, articulado como tecnologia narrativa e implantado no indivíduo porvir como hábito de representação mental de si próprio, do outro e do entorno abstrato. Este design vai sendo transplantado de indivíduo para indivíduo do mesmo grupo, garantindo a identidade subjetiva do clã, ao longo do tempo e do espaço.

Mais uma hipótese cabe neste momento: quando alguém inventa, organiza e registra algo e o expande para outrem, é do vetor desta expansão que advém a separação entre narrador como sujeito, num flanco, e o narrado como objeto, no seu lado oposto complementar.

Deste vetor também derivam os pressupostos acerca das técnicas, aparelhos e estratégias de mediação e interação cultural, o gerenciamento da informação, sua reprodução assistida e a difusão das idéias, das vontades e dos valores culturais. É por meio das tecnologias narrativas, concebidas como maquinação abstrata fundamental para a explicação coerente de mundo, é que se estabelecem as estratégias para a manutenção da divisão entre sujeito e objeto.


A capacidade estratégica de gerenciamento das visões de mundo, plasmada na tecnologia narrativa e implantada no indivíduo, depende tanto dos meios retóricos que lhe dão suporte quanto da ideologia que lhe anima. Dito de outra forma, este design é um sutil amálgama entre a coerência interna do narrador e da narrativa voltada para formulação de um discurso mais "completo", ou mais "universal" sobre a natureza, em detrimento do discurso caótico da própria natureza. Esta coerência desenha a natureza da performance dos detentores dos meios retóricos de persuasão.

Entretanto, quando os sujeitos fabricam um objeto de comunicação eles têm uma relativa consciência de que suas mensagens falham porque é da própria natureza do inconsciente coletivo fazer existir um campo além da interpretação, que permite a existência de outras interpretações, abrindo espaço abstrato ao conjunto das interpretações possíveis. Algo na inteligência artificial, contudo, faz com que uma resposta seja mais plausível do que todas as outras possíveis interpretações. Os detentores do poder retórico fazem com que esta resposta seja, artificialmente, mais verdadeira do que as demais. Enquanto alguém credita, outro alguém acredita, ainda que se constate incrível.

Nesse complexo jogo de criação de sentido e de crenças, as instâncias produtoras e difusoras de informação estabelecem uma diferença qualitativa de supremacia entre a produção e a recepção. Quem detém a tecnologia narrativa ocupa a posição de sujeito e quem ainda não a detém ocupa a posição de objeto no qual será transplantada a tecnologia. Este design foi amplamente utilizado como estratégia de colonização entre os povos, é a base epistemológica, de certa forma, utilizada na educação das crianças. Acredita-se, por tradição, que a prole é propriedade dos adultos e a eles compete a tarefa de transmissão da herança simbólica. Este design vem sendo aplicado no desenvolvimento da informática, cuja herança simbólica é transferida para a memória dos computadores.

Em última análise observa-se que este design estabelece uma pirâmide nas relações de partilha simbólica: no topo da pirâmide estão os "autores", responsáveis pelo "progresso" da ciência, da tecnologia e da "alta cultura". Suas mensagens dirigem-se ao público letrado, alojados nos níveis intermediários da pirâmide. Estes, por sua vez, "ensinam" a massa de iletrados ou analfabetos na base do sistema. Essa diferença entre emissão e recepção ainda hoje reflete a divisão social do trabalho entre produtores e consumidores de informação, a divisão entre sujeito e objeto do conhecimento e, por conseguinte, a relação de uma mente privada sobre a inteligência coletiva. Reflete, também, a divisão entre a moral dos sujeitos e ética dos sujeitados que reforça o desequilíbrio entre humanos que pensam e humanos que são pensados. Esta segunda classe tende a comporta-se como máquinas biológicas de repetição da informação cultural que lhes foi implantada como memória...

Se, de um lado, os humanos observam o mundo por meio do pensamento abstrato e projetam uma interpretação plausível sobre a superfície visível do fenômeno, por meio das ideologias e tecnologias veiculadas pelos seus aparelhos e instrumento de representar, de outro lado, a cultura tem arquitetado uma segunda classe de humanos - os receptores - alheios a esta capacidade.

A aqui cabe uma pergunta que não deve calar: o quê faz uma resposta ser mais viável do que as demais respostas possíveis? Qual a ética destas experimentações com humanos, considerando a hipótese de que a divisão moral da informação está criando uma divisão antropológica radical entre os que projetam as tecnologias narrativas e os que a reproduzem?

Uma resposta possível está na observação da capacidade estratégica de observar e compreender os hábitos como padrões repetitivos na natureza que, desde o início, provavelmente tenha sido o divisor de águas para a garantia da sobrevivência numa cadeia ecológica competitiva. O padrão alimentar onívoro deve ter acelerado a capacidade estratégica de adaptar-se a novos padrões alimentares, num ambiente agreste em constantes alterações. Esse salto antropológico, provavelmente, foi seguido de outro: o desenvolvimento da função narrativa, isto é, a capacidade de relatar, de maneira artificialmente organizada estes padrões repetitivos da informação circundante.

Provavelmente o rito de passagem à civilização, isto é, a aquisição da capacidade de organização, registro e transmissão dos padrões repetitivos da natureza foi o desenvolvimento das estratégias de preservação de um corpo narrativo permanente sobre o corpo perecível das linguagens, das coisas e das pessoas. Essa capacidade marcou o salto da condição animalesca para a condição humana, entretanto nos descolou da natureza e nos alojou num mundo artificial em franca expansão.

A cultura, por meio das suas tecnologias narrativas, desde a origem, tem sido o constante exercício da ficção, fricção e fixação dos processos de observação dos padrões repetitivos da informação, traduzido em padrões repetitivos de comunicação e translação da memória humana de indivíduo para indivíduo, por meio dos artifícios retóricos da narração.

O desenvolvimento da inteligência artificial, consubstanciada na mente coletiva das tecnologias narrativas, seus desdobramentos em ferramentas de interação e as noções de divisão social do trabalho, vem, ao longo da saga humana, transformando a natureza em cenário e os seres humanos em criaturas cada vez mais deslocados da sua condição animal: viraram atores sociais.

Nossa diferença estratégica com relação aos outros animais foi à passagem do corpo informacional bruto, sistematizado pelo instinto, para os sistemas artificiais sofisticados da inteligência, coordenados pela promoção de regras e condutas culturais da produção de objetos e signos. A vida inteligente e a memória, portanto, são preservadas pela narratividade destes padrões artificiais de conduta própria da natureza humana.

Hoje se pode constatar que, em algumas circunstâncias, a memória genética está em conflito com a memória cultural. Deste conflito surgem a moral, a ética e a estética das relações artificiais, impostas como padrão de conduta ao indivíduo.

Surge um design de relações para administrar o artificial sobre o design da natureza. A vitória deste artifício simbólico da memória coletiva sobre determinados processos físicos da memória genética revela o projeto, processos e produtos culturais neles embutidos: a preservação da matriz narrativa (a moral, a religião, a ciência, as políticas etc.) que organiza a interpretação do fato sobre a desordem da natureza circundante, de onde a informação se origina como padrão repetitivo em conflito com a informação cultural que se repete.

Um bom exemplo disto é a descoberta do gene da obesidade. No processo de evolução biológica, o desenvolvimento de um padrão repetitivo de conservação da energia foi determinante como estratégia de sobrevivência num ambiente onde a carência de alimentos era dominante. Esta estratégia genética de preservação da espécie se repete até hoje no corpo humano, mas fracassa em ambientes culturais onde haja disponibilidade e abundância de alimentos, como é o caso das grandes cidades.

O corpo cultural desenvolveu padrões de produção de alimentos tão sofisticados e eficientes que acabou entrando em conflito com o corpo biológico. Os padrões alimentares genéticos informam ao corpo para conservar energia. Isso não correspondem, em alguns casos, à repetição dos padrões culturais de alimentação, que informam ao corpo sobre a abundância de alimentos, o que resulta na complexidade dos processos de obesidade.

A garantia da sobrevivência física ficou subordinada à garantia da capacidade estratégica de inventar maneiras possíveis de sobrevivência no coletivo, por meio da preservação dessas conquistas numa tecnologia narrativa. A precedência do inventor sobre o fazedor persistiu desde então como padrão repetitivo da inteligência artificial.

Se o corpo bruto perece, o corpo artificial se estabelece como padrão de mediação da mente sobre a natureza bruta, a complexidade das mediações como padrões de informação, comunicação e interação - ou o design de relações entre as espécies e as coisas - é garantida pela existência destes corpos expandidos: as tecnologias narrativas.

Entrementes, a experimentação deste design com humanos torna-se mais perturbadora quando se observam alguns dos resultados destas investidas, em especial as mentalidades totalitárias, autofágicas e iconoclastas. O nazismo e suas derivações, por exemplo, podem ser consideradas as expressões mais acabadas deste design de relações. É quando o discurso da verdade absoluta passa a se alimentar dos olhos de quem vê esta verdade como tecnologia.

A autofagia social é levada às últimas conseqüências pela aplicação sistemática de tecnologias narrativas implantadas nos cérebros dos humanos. Na medida em que a "identidade" depende cada vez mais de imagens, as réplicas seriais e repetitivas de identidade (individuais, corporativas, institucionais e políticas) passam a ser uma possibilidade e um problema bem reais: os humanos estão migrando para a condição de pura imagem de si mesmos!

Os receptores destas imagens precárias, tomadas como modelo de humanidade, acabam se transformando em criaturas pós-humanas ou algo como organismos biológicos inteligentes programados como máquinas para repetir apenas o permitido no programa político que lhes foi implantado no cérebro.

No universo contemporâneo de representação, as tecnologias narrativas dão conta sequer de conjuntos de fragmentos de discurso, informações precárias, índices imagéticos inconclusos, pontos de vista recortados pelos observadores privilegiados, distribuídos à distância em várias direções e sentidos, como lances de um jogo de significar, fazendo uso de múltiplas estratégias para implantar seu modo de vida e seu ideário no receptor, que deverá se identificar e se comportar tal qual prega o pregador.

Na medida em que os humanos vão perdendo a capacidade de observar os mistérios da natureza, a curiosidade em relação ao desconhecido, o espanto frente às diferenças e a sutileza de aprender novos hábitos por meio da observação, isso lhes condena à condição pós-humana.

Podemos observar estas criaturas pós-humanas agindo no campo da política, da cultura e, especialmente, no campo da educação, onde os fabricantes de imagens de si mesmos e dos outros, por meio das tecnologias narrativas, assumem um papel extremamente poderoso na moldagem das identidades sociais e dos objetos que as portam.

A manipulação dos processos de autogênese de imagens e a interação coletiva à distância com protótipos sem referente na realidade já são teoricamente possíveis no âmbito da ciência contemporânea. Porém, a capacidade de agir sem reagir, de acreditar que fenômeno e representação pertencem à mesma realidade, talvez seja a mais complicada questão ética que se deva investigar num mundo onde "original" e "cópia" parecem ter perdido totalmente o sentido.

Se as tecnologias narrativas foram articuladas em torno do conceito de ordem como síntese universal de um ponto fixo de análise, replicado a perder de vista, o modo de vida contemporâneo assiste à problemática destes jogos de linguagem nos quais assistimos ao trágico espetáculo de um sem-fim de replicantes copiando a imagem patética de criaturas plastificadas nas telas dos meios de comunicação de massa. Criador e criatura, juntos, estão migrando para a condição pós-humana!

 

 
 
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