CABO VERDE / O desafio aos deuses
Germano Almeida (textos) e José António Salvador (fotos)
03-01-2004
Ilhéu Editora, Cabo Verde e Editorial Caminho, Lisboa
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Foto: Pedra Badejo
O desafio aos deuses


Seja como for, não se deve estranhar o que estou a dizer, não somos a primeira nação do mundo a socorrer-se dos mitos para justificar o seu aparecimento na História. Basta lembrarmo-nos dos romanos e da sua loba, ou mesmo dos portugueses e do seu milagre de Ourique, sem já falar do Sertório, aquele que na cerva fingiu espírito divino. E no nosso caso, por maioria de razão bem precisados somos de mitos, forçoso é vermo-nos como obra de algum descuido do Criador, de contrário de que argumentos nos serviríamos para perdoar a Deus a injustiça de nos ter instalado numa terra tão pobre?

Claro que também se poderia culpar os portugueses. De facto, ou eles desconheciam, ou então foi de propósito que desobedeceram ao comando divino de as ilhas ficarem para sempre ermas e vazias de gente viva. Aliás, quando se lê acerca de todas as chatices e canseiras que tiveram que enfrentar e suportar até minimamente povoar as nove ilhas habitadas, acabando desesperados, após algumas tentativas, por abandonar Santa Luzia à má sorte de ficar deserta, se calhar para sempre (embora seja verdade que já nos anos vinte deste século tivesse havido quem aventasse a perversa hipótese de a transformar numa colónia penal), temos que concluir que o próprio Deus terá com obstinação tentado opor-se a essa lusa insubordinação através do envio de castigos diversos, tais como pragas malignas em forma de secas prolongadas e mortíferas, ou então chuvas destemperadas que tudo levavam na enxurrada, sem já falar de doenças particularmente funestas. Porém, não lhe serviu de nada e terá mesmo chegado à conclusão de que estava a perder o seu tempo, aprendido que quando alguma coisa se mete na cabeça do homem, não há na Natureza ser mais teimoso e poderoso. E assim, os portugueses não só às ilhas aportaram, como também porfiaram na ideia de as aproveitar para alguma coisa.

Evidentemente que há muitas razões históricas a justificar esse desafio. Entre elas e principal, o facto de no ano em que o infante D. Henrique armou Luís de Cadamosto para essa viagem Portugal estar em grandes confusões e desavenças com a poderosa Castela. Tudo por causa da divisão do mundo entre as duas, cada uma querendo ficar com o maior e melhor bocado. Inclusivamente Portugal, melhor dizendo, o infante, já tinha sido obrigado, depois de um complicado processo de dá e toma, a definitivamente abrir mão das ilhas Canárias a favor da rival, o que decerto lhe ficou atravessado e o deixou ansioso de também ter o seu próprio arquipélago. De modo que quando Cadamosto regressou ao Reino com a notícia de que tinha achado umas ilhas ao lado do cabo Verde, o infante não esperou por mais para se declarar seu proprietário e logo providenciar o povoamento de Santiago.