EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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Apontamentos do “notável”
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“Homem velho no meio dos juncos – suspeita do poeta.
Põe-se a caminho do Norte – faz um livro com os olhos.
Escreve-se a si próprio na água – perdeu o mestre.
/.../
Por aqui passou o poeta na sua viagem /.../.”
“Talhavas do mundo uma imagem que tem o teu nome.
/.../
Vejam à borda de água o rasto do poeta
A caminho /.../. Vejam a água que o apaga,
O homem de chapéu que volta a inscrevê-lo,
Guardando água e pegada, parando cada vez o movimento passado,
Pelo que o desaparecido se mantém presente como algo que desapareceu.”
Cees Nooteboom

...

Antes de mais, as obras com a temática da viagem apresentam uma semelhança arquitectónica que lhes advém, não apenas do ciclo partida-regresso-escrita (ou sua conclusão), mas também de um certo número de peripécias que constituem os incidentes e os acidentes de viagem, variáveis em função do espaço e da época: refiro-me a tempestades, eventuais naufrágios, assaltos, encontros, permanências mais prolongadas, dificuldades diversas, perda de pessoas e de bens ou mantimentos, doenças, etc..

No caso dos relatos redigidos durante a viagem, em especial, eu destacaria um tipo de sequência textual muito interessante: a do encontro com indivíduos de raças e culturas diferentes. A descrição procura, aí, apreender a identidade do outro cultural a partir do aspecto exterior, passando por uma inquirição hipotético-dedutiva ao seu interior e ao seu comportamento para com os observadores. A representação do outro surge em construção, revelando-se complexa e dubitativa, exigindo do viajante todos os recursos. E a complexidade é tanto maior quanto, por vezes, há plena consciência de uma simetria cognoscente nesse contacto: o outro também está a tentar fazer o mesmo relativamente ao viajante. Nos relatos de escrita posterior, esse “retrato” do outro surge já na síntese tranquila a que a experiência permitiu chegar.

Além disso, se a viagem ao desconhecido é uma experiência individual, mesmo quando realizada em grupo, porquanto ela supõe uma incorporação de conhecimentos, uma assimilação de que o sujeito sairá, pelo menos, culturalmente transformado, escrever sobre ela pressupõe o desejo de partilhar com os outros essa experiência subjectiva, de lhes dar a dimensão subjectiva dessa experiência, e o conhecimento adquirido. Luís de Cadamosto exprime bem esse desejo:

“Tendo eu, Luís de Cadamosto, sido o primeiro da nossa cidade de Veneza que se resolveu a navegar o mar oceano para fora do estreito de Gibraltar, contra as partes do Meio-Dia, nas terras dos Negros da Baixa Etiópia, nem por memórias nem por escituras, nunca dantes navegado e, neste meu itinerário, havendo visto muitas coisas novas e dignas de alguma notícia, para que aqueles que de mim vierem a descender possam saber qual tenha sido o meu ânimo em haver-me posto a procurar diversas coisas em vários e novos lugares (pois, na verdade, o nosso viver e os nossos costumes e lugares em comparação com as coisas por mim vistas e sabidas outro mundo aqui se poderiam chamar) /.../.” (1)

O texto abre, assim, com uma tripla afirmação: a do sujeito como “o primeiro” da colectividade a fazer tal viagem e a conhecer tais lugares; a da novidade e da ‘notabilidade' do que viu no processo; a das razões da viagem e da escrita. Estatuto do sujeito, natureza do narrado e justificação da viagem e da escrita. Trata-se de esclarecer os alicerces do edifício ficcional para o legitimar, mas também como modo de excitar a curiosidade do leitor (estratégia de marketing, diríamos hoje), fórmula publicitária.

Ora, sendo esse desconhecido substancialmente diferente do território comum ao autor e aos seus leitores, falar sobre ele implicará opções retóricas que favoreçam essa socialização, que permitam tratar a diferença e torná-la compreensível aos outros. Vejamos, pois, como é que isso se concretiza nos textos que tenho vindo a referir, qual a estratégia e os recursos retóricos que assemelham uma produção tão heterogénea.

Em primeiro lugar, como tentei demonstrar atrás, constato um trajecto discursivo que procura duplicar o itinerário da viagem, facto de que resulta uma progressão do conhecimento favorável à compreensão dos leitores: o doseamento informativo radicado na relação do viajante com o território percorrido, desde a percepção dos primeiros sinais até à sua inscrição convivial nele, naturaliza a quantidade, a qualidade e as etapas e os “gestos” de conhecimento (a busca da explicação, da tradução, da história de, etc.).

Um curioso exemplo disso acontece com a recém-publicada obra de Pedro Rosa Mendes, Baía dos Tigres (1999), totalmente disponível num site na Internet (www.baiados tigres.com), onde o leitor é forçado a seguir a experiência vivida pelo autor: num mapa de África, esboça-se o itinerário da travessia de Angola à Contracosta (duplicação ensaidada da de Capello e Ivens), ao longo do qual o leitor vai seleccionando sempre o lugar assinalado a seguir na sequência, lugar que lhe oferece o fragmento narrativo correspondente, e tendo apenas de optar entre continuar, retroceder e desistir, como terá acontecido ao próprio viajante-relator.

Em segundo lugar, o descritivo expande-se na narrativa, procurando dar conta da totalidade, da diversidade e da complexidade do visível e resolver o olhar curioso e maravilhado do viajante que deseja, por sua vez, deslumbrar. Às vezes, a enumeração apresentacional é uma forma de multiplicar informação com que se quer espantar o destinatário para garantir o ascendente sobre ele, mantendo-o suspenso do encanto do discurso, como acontece na ”Dedicatória” do Itinerário de Linschoten, numa passagem já citada acima:

“Sem dúvida, é digno de espanto que a árvore-triste (como é chamada pelos portugueses nas Índias Orientais) floresça a noite inteira e ao amanhecer deixe cair apressadamente a sua flor, de cheiro suavíssimo, começando pelo ano inteiro a florir de novo com o pôr do sol. Ou também (o que é mais raro) que, num certo lugar do reino Anhalt, a terra produza por si própria chavenas tão perfeitas como se fossem formadas na roda do oleiro e as asas colocadas à mão.” (2)

No corpo da narrativa, a descrição procurará obsessivamente substituir a realidade, alongando-se na multiplicação do pormenor, chegando a denunciar esse anseio de exaustividade em expressões como “E isto é tudo...” (3) ou equivalentes (4).

Dominante, o descritivo impõe-se ao narrativo informando-o de parataxe: a hierarquia discursiva organizada pela narração da viagem, esqueleto desse corpo de palavras, afrouxa-se a partir do momento em que a observação do visível monopoliza o viajante. Lateralizador, o discurso enumera, inventaria, especifica caso a caso, diz o movimento, a quantidade, o tamanho, a cor, a utilização, etc., elemento a elemento, minucioso, consciencioso, curioso, deslumbrado, diluindo os nexos sequenciais e consequenciais em benefício da imagem reconstituída que conforma na mente de quem o segue, onde se junta a outras com que vai formando um conjunto, à maneira de um puzzle imaginário.

Ao serviço da descrição, desenvolve-se outra informação, como acontece, p. ex., no Itinerário , quando Linschoten fala do rio Ganges: à descrição do seu aspecto, junta informação sobre a sua localização geográfica, os usos locais, a relação da comunidade com o rio, a lenda indiana sobre a sua nascente, as culturas nas suas margens, etc.. (5) E a descrição acaba por também convidar ao comentário do viajante, que recorda, compara, reflecte, etc..

Em suma, o discurso desdobra-se, revelando um exercício e uma metodologia de aquisição de conhecimento desenvolvidos pelo viajante. Isso torna-o eminentemente pedagógico e formativo, uma vez que ensina a conhecer com o seu exemplo, ao mesmo tempo que transmite informação, seguindo a ordem da sua aquisição. Além disso, ele demonstra-se também como um discurso compulsador de saberes diversos, da geografia, à botânica, à zoologia, à mineralogia, à sociologia, à história, etc., e, nas obras elaboradas no regresso de viagem, informado de erudição. Neste último caso, ele conta, por vezes, com a colaboração de especialistas da matéria, como acontece com o Itinerário de Linschoten, cujas notas de Paludanus interrompem sistematicamente o texto: essa voz off encena e institucionaliza o juízo da ciência no espaço literário, reforçando-lhe a componente documental, referencial, a fidedignidade.

Procurando dar conta do visível, o discurso confronta-se, naturalmente, com uma dupla dificuldade: a nomeação e o tratamento do exótico.

Quanto à nomeação, necessária para a referência ao objecto (no mesmo relato, em relatos diferentes, etc.), o viajante tende a ultrapassar a dificuldade de dizer o inteiramente novo, grosso modo, de três maneiras.

Uma delas é atribuir um nome descritivo do aspecto, como acontece, por exemplo, com a avestruz quando designada “pássaro-camelo” (6). Se a nomeação for bem aceite, expressiva, poderá ser adoptada por outros, mas o círculo tenderá a permanecer restrito.

Outra hipótese é adoptar um nome já atribuído, p. ex., “a árvore-triste (como é chamada pelos portugueses nas Índias Orientais)” (7). Se, às vezes, a estranheza do nome justifica a sua explicação, rigorosa ou fantasiosa (8), em geral, essa nomeação obriga a um esclarecimento detalhado sobre o uso do objecto (se é o caso) para que o leitor perceba o que está em causa. Quando tal é possível, o nome é acompanhado da sua tradução ou equivalência, eventualmente com mais alguma explicação (9). O esclarecimento, por vezes, estende-se longamente e complexifica-se também mais do que o necessário, denunciando o desejo de ostentar conhecimento e de se fazer admirar por isso.

A terceira hipótese de resolver tal dificuldade é exemplarmente ilustrada pela obra Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (Teatro das Coisas Naturais do Brasil) (1664) (10) cujo título exprime bem a preocupação científica: procurando inventariar em diferentes secções o mundo vivo do espaço brasileiro com base em fontes e materiais de autoria diversa, o médico Christian Mentzel optou por fazer acompanhar cada desenho dos diferentes nomes que essas fontes lhes atribuíam, identificando-as.

Relativamente à dificuldade de dizer o exótico ou o estranho, o discurso resolve-a ou ultrapassa-a através da imagem , seja a retórica, seja a visual.

A nível da retórica, a figura privilegiada é a comparação e o termo de referência, o conhecido do europeu, do quadro de referência comum: a comparação consagra e estabiliza o gesto cognoscente como aproximação intelectiva entre dois mundos, assinalando a distância, a possibilidade de equivalências e colocando lado a lado, sem se decidir por um em detrimento do outro, evitando a rasura da metáfora no plano da imaginação (11).

Não resisto a recordar alguns passos do Tratado de Luís Fróis, perfeito exemplo desse procedimento, onde a observação se desenvolve em paralelismo sistemático:

“Pola maior parte os homens de Europa são altos
de corpo e boa estatura;
Os Japões pola maior parte mais baixos de corpo
E estatura que nós.
/.../
A honra e primor que a gente de Europa tem posta
na barba;
os Japões a põem no cabelinho que trazem atado detrás
do toutiço.” (11)

“Antre nós se comem todas as frutas maduras,
e somente os pepinos verdes;
os Japões todas as frutas verdes, e os pepinos
somente muito amarelos e maduros.

Nós cortamos o melão ao comprido;
os Japões o cortam ao través.

Nós cheiramos o melão pola cabeça;
eles polo pé.

Nós o comemos, e depois lhe deitamos a casca fora;
eles o aparam e lhe tiram primeiro a casca fora
que o comam.” (12)

Se aqui a comparação estrutura sistematicamente a observação e tende à exaustividade, fazendo desta obra um caso algo singular, a verdade é que a leitura de qualquer texto da literatura de viagens nos confronta com frequência com expressões como “uma espécie de”, “...como..., embora o não fosse”, “como se”, “como quer que”, “pareciam”, “parece”, “me parece que” (13), etc.. E o confronto pode, também, ser critério de organização do material, permitindo classificar os elementos que o constituem por semelhança e dissemelhança, como acontece no Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (Teatro das Coisas Naturais do Brasil) .

Mesmo assim, o viajante pode sentir as limitações da linguagem para fazer o leitor visualizar o elemento estranho e recorrer, como complemento, a imagens desenhadas ou pintadas com que ilustra o seu trabalho.

Linschoten fá-lo quando descreve, por exemplo, as mulheres indianas e os seus hábitos, remetendo para as figuras desenhadas “para um melhor entendimento” e comentando-as uma a uma na sequência discursiva com os indicadores “Aqui se encontra...” e equivalentes (14). Isso cria uma descontinuidade no modo de leitura: se, até aí, o leitor seguia o discurso procurando representá-lo mentalmente, esses indicadores suspendem-lhe o funcionamento da imaginação, substituindo-a pela observação que estimulam e orientam. Um discurso sobre outro discurso (neste caso, pictórico), ambos reconhecendo as suas limitações, ambos conjugando-se para melhor representar o real, interpenetrando-se, mas sendo sempre o linguístico a apreender o pictórico, a percorrê-lo (“Aqui se encontra..., e também..., e também..., assim como..., ou...” (15), a destacar-lhe elementos, a ponderá-los e, por fim, a decidir regressar à sua modalidade anterior, apelando de novo à representação imaginativa.

Também La Galerie Agréable du Monde (1690), obra monumental em 66 volumes, integra numerosas estampas que Pierr Vander, de Leiden, o editor, garante terem sido desenhadas nos locais. A imagem esclarece, assim, a informação, conferindo à obra eventual dimensão artística, mas também lhe garante fidedignidade: elaborada no local, torna-se prova da veracidade das afirmações. Daí uma maior cumplicidade na leitura: vemos o que e como o viajante viu e no momento em que ele revê e aponta (16).

E poderíamos referir ainda os casos em que, em vez das simples representações, se enviam originais: são as amostras da flora, da fauna, dos objectos e, até, das gentes. Amostras para serem vistas, para serem organizadas e representadas, mas também melhor ponderadas cientificamente, apesar de já classificadas, descritas e representadas nas notas da viagem ou apresentadas pelos escritos que as acompanhavam ou precediam. Amostras que acabaram por favorecer a prática de trocas miscigenadora.

Em geral, isso acontecia com expedições ao serviço das autoridades, promovidas, subsidiadas e apoiadas por elas, como a de Pedro Álvares Cabral ou a de Alexandre Rodrigues Ferreira.

Há, apesar de tudo, casos individuais de recolha e colecção que ficaram famosos. Refira-se, p. ex., Berent ten Broecke (1550-1633), o Bernardus Paludanus que colaborou com Linschoten, cientista que conseguiu constituir uma riquíssima colecção-museu visitada pelos seus contemporâneos e tão importante que chegou a justificar uma cláusula do contrato proposto pela Universidade de Leida: punha-se como condição que ele fixasse residência nessa cidade “com todas as raridades coleccionadas, tanto de ervas, frutos, rebentos, animais, criaturas, minerais, terras, peçonhas, pedras, mármores, corais, como outras” (17).

A imagem visual pode, aliás, consagrar também o desconhecido enquanto tal, como acontece com certos mapas que cartografam o território conhecido, assinalando como que as costas, o litoral, do que está por descobrir (18).

Quando a ilustração é realizada independentemente do autor, a problemática é mais complexa: ela desenvolve-se como comentário e interpretação, mas também como criação a partir dele, dando conta da perspectiva que o ilustrador tem desse espaço distante. Entre imagem e palavra, poderá observar-se, pois, um jogo de aproximação e distanciamento que confirma a independência de uma relativamente à outra e que denuncia a leitura, a recepção (poderíamos, mesmo, fazer uma história da leitura de uma obra com base no modo como vai sendo ilustrada através dos tempos) (19).

Num discurso que assim convoca a imagem, ela tende a impor-se, a evidenciar-se, aspirando a protagonismo. Isso confere ao discurso uma dimensão cénica, teatral. Como sob o efeito de um jogo de luz e de sombras, a imagem recorta-se no texto emoldurada pela palavra comum, ao mesmo tempo que fixa na sua visualização a imaginação do leitor, suspendendo-lhe o movimento por segundos: ele torna-se duplamente espectador, do que lê e do que imagina. A estranheza destaca-se e cresce para nós, leitores, faz-se ponderar: a nível linguístico, mas também a nível da imaginação reclamada e estimulada pela palavra. E eis-nos expectantes também, suspensos da estranheza seguinte. Esta atitude de espectador expectante a que o discurso pode conduzir o leitor terá sido intuída por Christian Mentzel na introdução ao Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (Teatro das Coisas Naturais do Brasil), quando se dirige sistematicamente ao “Leitor e Espectador”, apesar de serem as imagens o motivo da designação.

A expectativa convicta da estranheza evidente , sinal e prova de um mundo outro , quer no viajante que observa e que, depois, relata, quer no leitor que o “acompanha”, revela-se uma fonte inesgotável. Fixa olhar (ou suspeita) e imaginação num real que deforma sistematicamente, conformando o monstro, a maravilha, o prodígio. Trata-se de uma percepção eminentemente transfiguradora: detém-se num elemento ou julga vê-lo e estranhece-o, decompondo-o numa descrição que o redimensiona desproporcionalmente (hipertrofiando-o e hipotrofiando-o), que lhe bestializa e/ou lhe personifica partes, etc., de modo a vinculá-lo a uma ideia de mundo ao contrário (contra-natura) ou de um mundo demoníaco. A imagem suspende a narração e faz-se ponderar alheada de qualquer contiguidade, obriga a um frente a frente maravilhado, conquista tempo, espaço e atenção à viagem de que nos distrai.

Viajante, narrador e leitor movimentam-se, pois, oscilando entre a imagem familiarizadora , gerada na observação rigorosa e racional e firmemente ancorada na consequencialidade narrativa, e a imagem prodigiosa, conformada pelo olhar mitificador, que interrompe o fio narrativo para monopolizar imaginação e emoção. A escrita de viagens revela-se, assim, tensionada entre duas forças antagónicas: a que a desenvolve numa representação totalizadora e a que a fragmenta na exibição da maravilha. Dizendo de outro modo: a literatura de viagens é território onde se confrontam e, às vezes, se aliam, discurso naturalizador e crise da narração, realismo representativo e fantástico... (20).

Voltemos, porém, à questão das dificuldades levantadas pela estranheza. O exótico não ‘resiste' apenas a ser dito : ‘resiste' igualmente a ser compreendido.

Por isso, a observação quer-se dedutiva, até mesmo especulativa, mas está consciente das suas limitações, procurando perceber no que vê o que não vê, mas que admite, calcula, facto denunciado em expressões do tipo de “Disto tiro ser...” ou “Isto me faz presumir...” (21). O mesmo acontece na comunicação entre o viajante e o habitante das terras que aquele atravessa: o gesto estabelece a ponte, ponte instável, oscilante entre a convicção da comunicação e a desconfiança sobre a sua fiabilidade, como muito bem comenta Margarida Garcez Ventura no estudo de apresentação. No seu relato, Pero Vaz de Caminha dá conta disso a propósito de uma ocorrência, revelando ainda consciência da influência que as expectativas ou o interesse podem ter no processo:

“Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque não lhos havíamos de dar.” (21).

Um discurso que assim multiplica a estranheza, seja explicada, seja como objecto de especulação, parece ao leitor algo museológico , mas de grande dinâmica pedagógica: icónico (gr. eikonikós, “pintado do natural”) e compulsador dos saberes mais diversos, registando também o gesto cognoscente e a lacuna informativa. Dupla conquista territorial, a desse discurso, além da que lhe está na génese: a heterogeneidade informativa garante-lhe mais leitores; a sua iconicidade expande, nesse público, a margem da credibilidade. É o curso possível sobre o outro cultural, curso cuja lição escritores, investigadores e pedagogos souberam colher...

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Notas

(1) Cit. por Orlando Ribeiro em op. cit., p. 61.

(2) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 63.

(3) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 147.

(4) Note-se que este desejo de exaustividade tem uma longuíssima tradição de obras que procuram “descrever o mundo” (desígnio expresso por títulos como História Natural, de Plínio o Velho, Universo (c.859), de Raban Maur, Imagem do Mundo (c.1150), de Honorius de Ratisbonne, Espelho da Natureza (1258), de Vincent de Beauvais). Na lógica do pensamento cristão, tal desejo explicava-se pela necessidade de recensear, na sua totalidade e na sua diversidade, as provas da existência de Deus, quer para fazer admirar a sua criação, quer para deplorar o que o homem (o pecado original) teria feito dela. Daí uma tradição de “descrição do mundo” assumindo-se como tarefa acumuladora de saber, reprodutora do já dito e actualizadora da informação. Com Marco Polo, em especial, esse tipo de trabalho cede à descrição radicada na ordem, sequência e (reivindicada) experiência da viagem, protagonizada, sem pretensão à anterior completude. São as “Imagens do mundo” onde a ordem simbólica tende a fantasmizar-se na ordem pragmática e subjectiva.

(5) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 108/9.

(6) Orlando Ribeiro. op. cit., p. 99.

(7) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 63.

(8) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 140/144.

(9) Já agora, recordo uma passagem exemplar de Linschoten:

“Chegando agora ao significado ou sentido dos nomes destes referidos reis ou senhores, deve saber-se que quando o rei repartiu estas terras por estes capitães e governadores lhes deu títulos honrados, o que é costume entre eles quando se quer honrar alguém. Deve notar-se que não são nomes próprios, mas unicamente certos nomes e títulos de honra, que eles e a sua progenitura depois mantiveram. Assim, o nome Idalcão ou Adil Khan quer dizer “rei da justiça”, pois “adil” na língua persa, é justiça e “khan” rei. “Maluco” quer dizer reino e “niza” é lança ou dardo, pelo que Niza-Maluco quer dizer “lança do reino”. /.../ alguns são da opinião que estes “malucos” devem ser chamados “meliques”, o que quer dizer “reizinhos.” (op. cit., p. 143)

(11) Cristina Ferrão e José Paulo Monteiro Soares (eds.). Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Brasil-Holandês (2 vols.), Rio de Janeiro, Editora Index, 1993.

(12) Curiosamente, Linschoten, quando descreve Goa, compara-a sistematicamente a Lisboa (“...tal como Lisboa”, op. cit., p. 146) e quando se refere ao sistema judicial diz que “é como em Portugal” (op. cit., p. 147), confronto que, apesar de não ser totalmente claro para os seus conterrâneos, se explica pelo facto de esse território estar sob domínio português.

(13) Luís FRÓIS. op. cit., p. 56.

(14) Luís FRÓIS. op. cit., p. 105.

(15) Joaquim Veríssimo Serrão (pref.), Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura (ests.e transcr.). op. cit., pp. 61/63 e 69/70.

(16) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 159.

(17) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., pp. 159/160.

(18) Só para dar um exemplo, recordo Linschoten:

“E para melhor se perceber as figuras dos seus ídolos diabólicos, juntei o retrato destes, como se encontram publicamente nos caminhos, montes, rochedos, e antros, com uma vaca ou vitelo de pedra a seu lado, assim como do templo a que chamam mesquita , dos maometanos e mouros que vivem entre os malabares, com o tanque de água onde se lavam ao lado.” (Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 193)

“As figuras destas podem ser vistas andando atrás do palanquim onde é levada a mulher, como costumam levar a criança a pé, tudo retratado como na vida real.” (idem, p. 160)

(19) Arie Pos e Rui Manuel Loureiro (ed. e ests.). op. cit., p. 15.

(20) Orlando Ribeiro. op. cit., 11 e 12/13.

(21) Cf., p. ex., Philippe Ménard. L'illustration du Devisement du Monde de Marco Polo. Étude d'iconographie comparée in François Moureau (org.) Op. cit. , pp. 17/31.

(22) Bastaria observar o modo como ambos coexistem, embora com predomínio do fabuloso, nas ilustrações de obras significativamente intituladas De Monstris (Amstelodami, 1665), de Fortunius Licetus, Theatrum Universale Omnium Animalium ... (Amstelodami, 1718), de Henrici Ruysch , Prodigiorum ac Ostentorum Chronicon (Basiliæ, 1557), de Conradum Lycosthenem , etc.. Cf. algumas reproduções em Fernando Cristóvão (coord.). op. cit..

(23) Joaquim Veríssimo Serrão (pref.), Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura (ests.e transcr.). op. cit., p. 68.

(24) Joaquim Veríssimo Serrão (pref.), Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura (ests.e transcr.). op. cit., p.62.

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