EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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Outro arquipélago
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Um pouco diferente desta literatura de viagem, será a que radica numa experiência de maior permanência em terras distantes, sem considerarmos escritos oficiais como forais, doações, etc..

Recordo, p. ex., a correspondência trocada entre os colonos e os seus familiares ou amigos, que dá conta de pormenores do seu quotidiano marcado pelo tempo arrastado da vivência do desterro e do isolamento. Ou a correspondência desenvolvida pelos missionários, que vai das cartas mais pessoais às “gerais”, onde cada autor compilava informação recolhida junto dos companheiros de modo a fornecer uma visão mais completa da realidade que os rodeava, e aos “relatórios” centrados na obra conjunta do apostolado (1).

E não resisto a referir o Tratado (1585) de Luís Fróis, que viveu mais de trinta anos no Japão, onde morreu em 1597.

A simples leitura do Índice revela um trabalho de observação e descrição sistemáticas e aspirando à exaustividade: “Do que toca aos homens em suas pessoas e vestidos.”, “Do que toca às mulheres em suas pessoas e trajos.”, “Do que toca aos meninos em sua criação e costumes.”, “Do que toca aos bonzos que são seus religiosos.”, “Dos templos e cousas que tocam ao culto e religião.”, Do modo de comer dos japões e de seu beber.”, “Das armas e da guerra.”, “Dos médicos, mezinhas e modo que [ têm ] de se curar.”, “Dos livros e modo de escrever dos japões.”, “Do que toca às fábricas [ das casas ] , ruas e jardins.”, “Do que toca aos cavalos e seus dogus .”, “Das embarcações e seus costumes e dogus .”, “Dos autos, farças, danças, cantar e instrumentos de música.”, “Das cousas extraordinárias.” (2). Organizado tematicamente, portanto, o Tratado de Fróis desenvolve um permanente confronto entre o europeu e o oriental, reflectindo sobre o eu e o outro culturais e constituindo, assim, uma obra de antropologia cultural comparada, facto anunciado no próprio título:

“Tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças antre a gente de Europa e esta província de Japão./.../” (3).

Nesses textos, a ordem da viagem cede a um discurso retoricamente marcado pelo plural generalizador, pela diferenciação de casos que se inscrevem nessa generalização, pelo presente e por uma organização sistematizadora por temas que visam ir esboçando uma identidade social, cultural, histórica, etc..

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Notas

(1) Cf. Clara Vitorino. As primeiras cartas do Japão. Tradução e impressão. in Ana Paula Laborinho, Maria Alzira Seixo e Maria José Meira (org.). A Vertigem do Oriente. Modalidades discursivas no encontro de culturas. , Lisboa/Macau, Cosmos/Instituto Português do Oriente, 1999, pp. 95/116.

(2) Luís FRÓIS. Europa-Japão. Um diálogo civilizacional no século XVI , Lisboa, Comissão Nacional para os Descobrimentos Portugueses, 1993, p. 52/53.

(3) Luís FRÓIS. op. cit., p. 52.

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