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CLAUDIO WILLER
GNOSE, GNOSTICISMO, A POESIA DE HILDA HILST
8. Também Breton

Também Breton, em seu comentário sobre gnosticismo na poesia romântica e moderna (no já citado Flagrant délit ), supôs que houvesse sincronia entre os antigos gnósticos e os poetas modernos: Será preciso admitir que os poetas sorvem, sem o saber, em um fundo comum a todos os homens, singular pântano cheio de vida onde fermentam e se recompõem sem parar os destroços e os restos das cosmogonias antigas, sem que os progressos da ciência lhes provoquem uma mudança apreciável?

Diante da reaparição de traços de uma doutrina arcaica, Breton sugeriu, com belas metáforas, [...] um poder de absorção de ordem osmótica e para-sonambúlica dessas concepções tidas, ao olhar racional, por aberrantes . [...] Nessa floresta virgem do espírito, que margeia por todos os lados a região onde o homem conseguiu erguer seus marcos indicadores, continuam a rondar os animais e os monstros, apenas menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico. São os mesmos animais e monstros que circulam pelas páginas de Hilda Hilst, que criou um bestiário pessoal e inconfundível (e o realizou, com sua matilha de cães na Casa do Sol).

Também Jorge Luis Borges observou essa sincronia, em Novas Inquirições : Há, na história da filosofia, doutrinas, provavelmente falsas, que exerceram um obscuro encanto sobre a imaginação dos homens. A doutrina platônica e pitagórica do trânsito da alma por vários corpos, a doutrina gnóstica segundo a qual o mundo é obra de um deus hostil e rudimentar. Repare-se na finura de estilo de Borges, ao falar em doutrinas provavelmente falsas - ou seja, que poderiam ser verdadeiras.

Poetas não são ideólogos e doutrinadores, repito. Assim como é possível mostrar na poesia de Hilda Hilst as referências ao Demiurgo e o dualismo gnóstico, também se pode recortar trechos que demonstrariam o contrário: um monismo, a síntese, não pela anulação do mundo e transcendência através do conhecimento, como quer o gnosticismo, porém pela via da realização amorosa. Diversos comentaristas (dos mais recentes, José Carlos A. Brito, em E ros e psique no encontro de si mesmo na poesia de Hilda Hilst , em Agulha 45, e, no já citado Cadernos do IMS, o ensaio de Nelly Novaes Coelho) já se detiveram na Hilda lírica e apaixonada, que, em um misticismo do corpo, vê a união amorosa, e não o ascetismo, como via para a transcendência. Entre inúmeros outros lugares da sua obra, isso transparece nos versos que encerram o aqui já citado Cantares .

Poeira, cinzas

Ainda assim

Amorosa de ti

Hei de ser eu inteira

[...]

Amorosa de ti

Vida é o meu nome. E poeta

Sem morte no sobrenome.

O modo como lirismo e obscenidade se alternam na obra de Hilda Hilst - a obscenidade, de modo mais evidente na prosa, inclusive a que ela declarou ser "pornográfica", e o elevado lirismo em boa parte de sua poesia - corresponde a dois movimentos, não antagônicos, porém complementares, sinérgicos e simultâneos: foi sublime em Cantares , e ao mesmo tempo escatológica em A obscena Senhora D, ambos do início da década de 1980. Pode-se ligá-la a um ramo do gnosticismo, o famoso gnosticismo dissoluto ou licencioso, que tem semelhanças com o tantrismo oriental. É a doutrina segundo a qual, para superar a roda do Carma, a sucessão de reencarnações, é preciso viver plenamente a vida, em todos os seus aspectos e possibilidades. Para esclarecer sobre gnosticismo dissoluto, esta passagem de Jules Monnerot, em La poésie moderne et le sacré (Gallimard, 1945):

Essas confrarias [dos antigos gnósticos] levam tão longe quanto possível a transgressão dos mandamentos cristãos prescrevendo castidade e continência. Chegariam com freqüência até a transformar as transgressões em outras tantas obrigações rituais. Que o misticismo não exclui por natureza a sensualidade, os mais antigos mistérios o testemunharam irrecusavelmente, não sendo de espantar que uma época na qual floresceu o materialismo mágico lhes demande ensinamentos, nem que uma especulação filosófica desembaraçada de todo contrapeso celeste se alie de maneira tão humana ao deboche ritualizado .

Portanto, o encratismo, ascetismo, abstenção total, e a licenciosidade seriam faces da mesma moeda. Ambos, expressões da vontade de tomar o contrapé da criação, como diz Monnerot, contrariando o Demiurgo e suas leis.