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CLAUDIO WILLER
Best-sellers e ocultismo: política e seitas secretas,
do Iluminismo até Dan Brown
Na edição de outubro de 2005 da revista Bravo saiu publicada, finalmente, a matéria que eu aguardava, da qual precisava para fazer afirmações sobre retrocesso cultural.

É a comparação de duas listas de livros mais vendidos no Brasil: uma de agora, outra de vinte anos atrás.

Transcrevo-as:

1985 : A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera; O Amante, Marguerite Duras; Se houver amanhã, Sidney Sheldon; Amar se Aprende Amando, Carlos Drummond de Andrade; A Ponte para o Sempre, Richard Bach; O Fogo Interior, Carlos Castañeda; O Siciliano, Mário Puzzo; A Faca de Dois Gumes, Mário Sabino; Concerto Carioca, Antonio Callado.

2005 : Memória de Minhas Putas Tristes, Gabriel García Márquez; O Código Da Vinci, Dan Brown; Fortaleza Digital, Dan Brown; Anjos e Demônios, Dan Brown; Assassinato na Academia Brasileira de Letras, Jô Soares; O Zahir, Paulo Coelho; As Cinco Pessoas que Você Encontra no Céu, Mitch Albom; O Guia do Mochileiro das Galáxias, Douglas Adams; Quando Nietzsche Chorou, Irvin D. Yalom; O Enigma do Quatro, Ian Caldwell e Dustin Thomason.

Já esteve pior, esta lista. Mas, confrontada com aquela de 1985, com a presença de Duras, Drummond e Callado, fundamenta uma espécie de argumentação platônico-gnóstico-pessimista de que tudo, na esfera mundana em geral e no Brasil em especial, pode piorar à medida que o tempo passa.

1985 foi uma espécie de fim de ciclo. Desde meados da década de 1970, coincidindo com a redemocratização do Brasil, houve um crescimento de qualidade nas listas de mais vendidos: nela também figuraram traduções de T. S. Eliot, Thomas Mann e Virginia Woolf; além de Drummond e Callado, outros bons contemporâneos brasileiros, como Lygia Fagundes Telles, Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Rubem Fonseca etc.; e títulos importantes de história, sociologia, filosofia e política. Paralelamente à resistência política, à crescente mobilização pelo fim do regime militar, havia sede de informação, uma busca da ampliação de horizontes culturais.

Claro que as listas de 1985 não poderiam ser tomadas como retrato de um passado idílico. Lembro-me, na época, do comentário de um adido cultural norte-americano, estranhando a evidência, em nossa mídia, de Sidney Sheldon, e observando que em seu país não davam tamanha atenção ao autor de Se houver amanhã.

A matéria da Bravo sobre listas de best-sellers, intitulada “1985-2005 – Vinte anos de revolução nas letras”, é do experiente jornalista e escritor Renato Pompeu. Sua interpretação dessa variação nas listas é completamente diferente da minha. Para ele, não se trata de rebaixamento da qualidade da leitura, porém de mudança dos paradigmas. Conforme resumido no subtítulo da matéria, “os leitores ficaram menos elitizados e mais próximos da cultura oriental”. Daí haver mais títulos relacionados a misticismo e religião, e menos de política e literatura de qualidade.

Pompeu parece achar que chegamos à Nova Era. Afirma que “esses últimos 20 anos foram os de uma grande transformação espiritual, a mais rápida da história da humanidade, de que são índices as mudanças nos hábitos de leitura”. Em conseqüência, “a política foi varrida para a lata de lixo com o fim das grandes utopias, e foi substituída pela religiosidade, que ressurgiu como promessa de redenção. Mas, num nível ainda mais profundo, nesses 20 anos se concentra toda uma evolução a partir de uma tradição milenar da cultura ocidental para uma nova concepção, liberta das peias da reconstrução da realidade externa, e bastante orientalizada.”

Antes fosse. Estaríamos às vésperas de uma nova era romântica. Mas não: a variação nas listas, com menor presença da alta literatura e maior de obras de auto-ajuda, temas religiosos e narrativas banais, é mesmo um indicador de rebaixamento cultural, e não o triunfo da diversidade. Seria, se as pessoas lessem mais. Contudo, desde então, o já baixo índice de leitura de livros per capita no Brasil caiu mais ainda. E, de 1995 até 2005, a vendagem de livros em livrarias teve uma queda de 50%, segundo as pesquisas das entidades do setor. Em outras palavras: o brasileiro lê menos e lê pior.

A queda quantitativa e qualitativa deve ser associada, em primeira instância, ao declínio na qualidade do ensino e da crítica literária. Até aí, nada de novo, nada a acrescentar ao que disse cinco anos atrás em Agulha # 2, sob o título “ Um ensaio em tom de manifesto: crítica e criação, ensino e literatura”. E, três anos atrás, em Agulha # 25 , em outro ensaio, “Em defesa da literatura”.

Não quero me repetir, porém, tomando como pretexto a interpretação de Renato Pompeu, acrescentar algo sobre a literatura místico-religiosa, em geral; e sobre o best-seller da vez, O Código Da Vinci de Dan Brown, em particular.

E, ainda – saindo da constatação do óbvio e distanciando-me de qualquer diagnóstico catastrofista, ou daquilo que eu mesmo acabei de chamar de ‘argumentação platônico-gnóstico-pessimista’ – apresentar algumas evidências de que esse quadro pode mudar para melhor.

Indícios estão aí, nas mesmas listas de best-sellers. E não só por García Márquez haver passado à frente de Dan Brown. Na lista mais recente a meu alcance, publicada na revista Veja em sua edição de 9 de novembro de 2005, figura em primeiro lugar, na categoria não-ficção, Por Dentro do Governo Lula, da cientista política Lúcia Hipólito. O que isso significa? Que, diante das denúncias de corrupção no governo Lula, as pessoas resolveram se informar a respeito, assim comprometendo a hipótese de uma transferência ou deslocamento do interesse, da política para religião e misticismo. Talvez a relação entre a boa vendagem do livro de Lúcia Hipólito e o governo Lula seja a mesma de um sem-número de obras de crítica política e sociológica com o regime militar, precedendo sua queda…

E há mais, coisa melhor ainda na lista de Veja: teoria literária em uma relação de best-sellers! Sim, ninguém menos que Harold Bloom, crítico contundente dos relativismos sócio-culturais e da suposta pós-modernidade, com Onde Encontrar a Sabedoria, uma defesa da alta literatura como fonte de conhecimento. Discordo de seu cânone; discordo de sua teoria da influência; mas espero que seu modo de valorizar literatura encontre novos leitores e seguidores. Haverá mais assunto para diálogos, mais gente com quem se possa conversar.

Quando à literatura místico-religiosa, não há como Pompeu interpretar sua presença em listas de mais vendidos como indício de mudança. Onde ainda está Paulo Coelho, agora acompanhado por um tal de Albom e um Caldwell, antes estiveram Lobsang Rampa e seu terceiro olho nas décadas de 1950 e 60, e Gibran Khalil Gibran na de 1970. Sempre, desde que se constituiu o mercado editorial, final do século XVIII, houve divulgadores de temas ligados à religião, misticismo, esoterismo e ocultismo de plantão em listas de best-sellers. Mesma coisa para auto-ajuda: Dale Carnegie, com sua arte de fazer amigos e influenciar pessoas, vendeu milhões de exemplares ao longo de sucessivas décadas.

Por isso, não há razão para tomar como sintoma de mudança o prestígio de Paulo Coelho e, mais recentemente, de Dan Brown. Não são novidade. Representam, antes, uma continuidade. Inscrevem-se em uma tradição. Ou em duas: Coelho e Brown diferem bastante. Não pertencem à mesma família.

Paulo Coelho talvez se situe em uma zona intermediária ou de sobreposição do autor ocultista e dos que ficcionalizaram o oculto. Partilha com antecessores não apenas os temas, mas a projeção pública. Magos como Éliphas Lévi, Madame Blavastky, Papus, Péladan e Stanislas de Guaïta foram celebridades. Recebiam visitantes do mundo todo. Seus livros atingiam vendagens expressivas. Equivaleram ao que hoje seriam best-sellers; seus autores, a personagens midiáticas. Basta um exemplo: em 1892, a estréia literária do Sâr Péladan aos 23 anos de idade, Vice Suprême, prefaciada por Barbey d’Aurevilly e saudada por Leon Bloy (o que não era pouca coisa, em matéria de endosso literário) teve vinte edições consecutivas, como relata André Billy, em seu L’Époque 1900, 1885-1905. O prestígio de líderes de seita como o Sâr Péladan era tamanho que permite afirmar que o esoterismo, originariamente uma cultura subterrânea, herética, à margem, acabou por criar seu próprio mercado. E mais: esse mercado favoreceu escritores, através das livrarias e editoras dos ocultistas, como L’Art Indépendant, que se tornaram veículos do simbolismo literário, publicando até mesmo Mallarmé.

Prova adicional desse prestígio dos magos foi o modo como repercutiu a simulação do desaparecimento de Aleister Crowley em Cascais, preparada com a ajuda de Fernando Pessoa em 1930. Se Crowley já não fosse famoso, a imprensa não teria dado atenção ao episódio.

Portanto, nada de novo na fama de Paulo Coelho, nem na popularidade da produção editorial movida por ciclos de interesse por gnomos, fadas, bruxas, anjos, astros, cristais, metais, magnetismo terrestre, práticas divinatórias e demais atualizações de mitos da Antiguidade e dos procedimentos da magia.

Contudo, em várias ocasiões – entre outras, em sua contribuição a uma coletânea de depoimentos de escritores (21 escritores brasileiros – uma viagem entre mitos e motes, de Suênio Campos de Lucena, Editoras Escrituras), ao ser indagado sobre sua qualidade literária pelo entrevistador, que cita Machado de Assis e Clarice Lispector como referência –, Coelho deixou claro que, para ele, obras como a de Machado e Clarice são outra coisa, uma modalidade de texto com características e finalidades distintas do seu. “Minha literatura não tem nada a ver com a deles. Não somos concorrentes. Esta discussão me parece algo como o sexo dos anjos. Se o sujeito quiser comprar Machado ou essa escritora, ele fará isso com ou sem Paulo Coelho”, afirmou o mago.

Mas o equivalente a Machado de Assis e a Clarice Lispector para Éliphas Lévi, Papus, Guaïta ou Péladan – os autores referenciais naquele momento, os Shakespeare, Goethe, Victor Hugo, Théophile Gautier – não eram outra coisa. Antes, eram a mesma coisa que para Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Huysmans. Éliphas Lévi procurou ser um estilista: queria que seu texto fosse conforme aos padrões da melhor literatura. Essa ambição também é evidente na copiosa produção ficcional e doutrinária do Sâr Péladan, em Crowley, que tinha em alta conta sua própria poesia, e tantos outros. Partilhar valores literários contribuiu para o diálogo entre magos e literatos.

Seriam os magos de hoje menos literários? E os literatos, menos ocultistas? Parece que sim. Escritores são homens de seu tempo: no caso dos autores do século XIX, um tempo de fascinação e encantamento pelo aparente abrir-se de portas para o mundo mágico, e de uma equivalente desconfiança com relação ao progresso científico e tecnológico e à sociedade fundamentada nesse progresso. Ou então, de uma fé na utópica conciliação dos dois mundos, mágico e científico, e dos dois modos de conhecer, através da razão e da revelação. Quanto aos magos de hoje, seu contexto é aquele de uma perda de prestígio da literatura na sociedade midiática, uma redução da importância que lhe era atribuída como fonte do conhecimento e como modelo para o uso da linguagem e a expressão do pensamento. Por isso, nos séculos XVIII, XIX, até mesmo na primeira metade do século XX, em matéria de valor literário e valorização da literatura, escritores e magos olhavam na mesma direção. Hoje, parecem voltar-se para direções distintas.

Dan Brown é de outra espécie de autores, distinta daquela que tem Paulo Coelho como expoente. Escreve narrativas de ação, meio de horror, meio de espionagem ou de detetive, usando temas do esoterismo, devidamente romanceados. Igual a um Robert Ludlum ou Ian Fleming cruzado com ocultismo. Isso também é antigo, como atesta o sucesso, em meados do século XIX, de Zanoni de Bulwer Litton, uma narrativa folhetinesca de aventuras cujo herói é um decalque da figura do Conde de Saint-Germain ou do mito da própria imortalidade que esse mago criou. Ou, já no século XX, de O Mágico, de Somerseth Maughan, declaradamente sobre Aleister Crowley, com tratamento de narrativa de horror e ao mesmo tempo de sátira do mago e de sua magia.

Nessa família, obviamente há de tudo, do melhor ao pior. Zanoni teve impacto, exerceu influência, mas é ruim, seja como desenvolvimento da narrativa, seja como apropriação de temas do esoterismo. Là-bas, a narrativa sobre bruxaria e missas negras de J.-K. Huysmans, teve impacto maior ainda (Somerseth Maughan reconheceu que escreveu O Mágico, alías bem fraco, muito aquém de O Fio da Navalha ou Chuva, influenciado por Huysmans): mas é um livro extraordinário, substancioso, complexo (já escrevi a respeito aqui: Là-bas , de J.-K. Huysmans: notas de leitura em Agulha # 21).

Vamos deixar claro: não sou elitista; não acho que livro com boa vendagem seja sinônimo de livro ruim. Stephen King vende torrencialmente, e é bom em seu gênero, sabe construir tramas. Mas O Código Da Vinci é pobre. Dan Brown o escreveu de olho em uma tela de cinema, e não nas páginas de outros livros. É um decalque de filmes e não de obras literárias. As perseguições penas ruas de Paris estão em Ronin, estrelado por Robert de Niro, entre outros sucedâneos. Do mesmo filme, o truque narrativo do amigo rico, morando em um castelo, que aparece no meio da história para ajudar a resolver a confusão em que o protagonista se meteu. O assassino monstruoso é cópia daqueles dos filmes de James Bond, como o gigante dos dentes metálicos. E onde na série Bond se lê Spectre, a organização de conspiradores que querem controlar o mundo combatida por 007, leia-se Opus Dei em O Código Da Vinci. Já o delegado francês trapalhão podia ser da série Pantera Cor-de-Rosa, de Peter Sellers. E por aí afora: o enredo de O Código Da Vinci é uma montagem de cenas e personagens de filmes, à espera da sua própria adaptação cinematográfica, que vem aí estrelada por Tom Hanks.

Em uma trama até que articulada, bem menos estrambótica e sanguinolenta que a de seu livro anterior, Anjos e Demônios, e que mantém o interesse do leitor pela sedução da decifração de enigmas (sustentar enredos em decifrações, Edgar Poe já sabia que isso funcionava), Brown vai misturando informação correta, lendas e mitos “reais”, no sentido de haverem circulado, existido historicamente, e incorreções grosseiras. Por isso, suscitou uma indústria editorial de livros contestando-o ou discutindo-o, além de uma polêmica com a Igreja Católica que, obviamente, impulsionou suas vendas.

Interpretações do triângulo na Santa Ceia de Leonardo são possíveis. Havia simbologia hermética em obras da Renascença. Frances A. Yates, por exemplo, mostrou – no importante Giordano Bruno e a Tradição Hermética [Ed. Cultrix] – que figuras em quadros de Boticelli reproduzem decanatos do hermetismo de Alexandria. Outra coisa plausível – e um tema sempre atraente – é a hierogamia, sexo ritual. Acontecia (ou acontece, quem sabe) em modalidades dos antigos cultos de mistério, e nas iniciações em sociedades tribais (conforme expôs Mircea Eliade, entre outros).

Agora, dizer, como à pg. 223 da edição brasileira de O Código Da Vinci, que o cristianismo tornou-se patriarcal, excluindo a mulher e declarando herética a humanidade de Cristo, depois da sua adoção por Constatino como religião oficial do Império Romano (entre 313 e 381 d.C.), isso não, de modo algum. É desinformar, difundindo erros grosseiros. O patriarcalismo cristão já estava declarado e acentuado nas recomendações e preceitos de Paulo em Coríntios 7, Colossenses 3, Timóteos 2, relativos à submissão e subordinação da mulher – lembrando que, cronologicamente, Paulo é o primeiro autor de escrituras cristãs, por volta de 60 d. C: os evangelhos sinóticos seriam posteriores; o ultimo, de João, é de 110 d. C. (essa cronologia parece consensual entre historiadores e está, inclusive, em edições católicas da Bíblia). Ortodoxia versus heresia é um confronto que precede a oficialização, a adoção imperial: seguindo Paulo, entre 100 e 150 d. C Tertuliano, Irineu e outros Pais da Igreja já puseram a casa em ordem, doutrinariamente.

Menos ainda, é possível afirmar, sugerir ou até insinuar que os gnósticos seriam guardiões do segredo de uma descendência de Jesus Cristo e Maria Madalena. No gnosticismo cristão (entendo que houve gnoses cristãs, mas que o gnosticismo foi uma doutrina religiosa autônoma, nisso discordando de alguns de seus estudiosos, como Pagels e Layton, e concordando com outros, como Doresse, Puech e Alexandrian) predominou o ebionismo, a crença em Jesus Cristo como manifestação puramente espiritual, e não carnal. Isso, por coerência com o seu dualismo: por negar o mundo material, o gnosticismo jamais aceitaria a encarnação de um avatar. Portanto, nunca poderia haver casamento e procriação do mensageiro ou emanação de Deus: ambos, casamento e procriação, inteiramente rejeitados pelos gnósticos, por perpetuarem a vida material (nisso, todos os especialistas que citei são unânimes).

Quanto aos Templários (que também teriam protegido descendentes de Cristo e Maria Madalena em O Código da Vinci), têm levado a culpa de tudo. Podem ter acumulado informação, e não só dinheiro (de um modo que provocou a destruição daquela ordem no século XIV). Mas não há uma reconstituição mítica de origens de seitas e grupos iniciáticos que deixe de citar os comandados por Jacques de Mollay como seus antecedentes. E quanto à lista de chefes do Priorado do Sião que termina em personagens de Brown, ela junta pessoas que jogavam em times opostos, dos platônicos e aristotélicos, dos magos – como Fludd – e dos cientistas – como Boyle e Newton, por mais que estes também respeitassem a alquimia. Victor Hugo não podia ter sido seu grão-mestre de 1844 até 1885. Tinha mais o que fazer: basta consultar alguma biografia relatando sua vida acidentada. Nesse período, 1844 a 1885, passou de monarquista a republicano socializante, de católico a espírita: é muita revisão para um líder de seita.

Foi apontado (por Walnice Galvão em um artigo no suplemento Mais da Folha de S. Paulo) que O Código Da Vinci se inscreve na moda do politicamente correto: em vez de anticomunismo e elogio da CIA, um ataque à Opus Dei, ao Vaticano, à ortodoxia. Tem razão. Mas, para compensar, no livro anterior, Anjos e Demônios, Brown recorre ao mais reacionário dos chavões: o da conspiração de sociedades secretas, no caso, os “iluminados” ou “illuminatti”. Umberto Eco já demonstrou, em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, que o anti-semitismo dos pogroms e do nazismo, com a tese da conspiração judaica, nada mais é que a transposição, culpando os judeus, de material (romanceado por Dumas Pai) sobre uma conspiração de rosa-cruzes para controlar o mundo.

Há um colossal volume de obras pseudo-históricas, alimentando teorias conspiratórias que atribuem, alternada ou simultaneamente, a Revolução Francesa, a expansão do capitalismo, as restaurações monárquicas, os socialismos, o nazismo, os fascismos, o liberalismo, o mercado financeiro, etc., à atuação de sociedades secretas. Uma associação ser iniciática, secreta, de fato supõe que haja algo não revelado; por conseguinte, um vácuo de informação que atraiu toda a sorte de especulação. Algo dessa caudalosa produção foi bem analisado por Umberto Eco, no modo ficcional em O Pêndulo de Foucault, e no modo ensaístico em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. Mas está claramente estabelecido que os rosa-cruzes, a maçonaria (ou, antes, as maçonarias, pela diversidade de correntes sob essa denominação), os martinistas, “iluminados” e o correspondente interesse por magia e disciplinas herméticas a partir do século XVII representaram uma resposta política em favor da tolerância religiosa. Essas seitas, grupos e confrarias tiveram, portanto, atuação progressista, naquele contexto. Como bem expôs Frances A. Yates (especialmente em O Iluminismo Rosa-cruz), fizeram frente à ortodoxia da Contra-Reforma e à intolerância que resultou em um crescimento das perseguições, dos autos-da-fé e das caças às bruxas.

Trata-se de uma influência cujas conseqüências perdurariam, no modo como a visão de mundo hermética e a crítica social se encontram em William Blake, e, mais ainda, em Charles Fourier e o nascimento do socialismo utópico. Isso, além da posição de uma multiplicidade de lojas e organizações maçônicas em favor de ideais republicanos, ou, ao menos, anti-absolutistas. Por isso, a maçonaria chegou a ser explicitamente acusada de provocar a Revolução Francesa; e, já no século XX, maçons receberam atenção e tratamento por parte de regimes como os de Franco e Salazar equivalente àquelas dispensadas à militância de esquerda, como bem lembra Maria Estela Guedes em Lápis de Carvão (Apenas Livros, Lisboa, ou em www.triplov.com). É a paranóia política, da qual uma expressão já clássica é O Despertar dos Magos, de Pauwels e Bergier. Benjamin Franklin foi maçom (conforme Daniel Béresniak em Franc-Maçonnerie et Romantisme, entre outras fontes); contudo, maçons serem a favor da República não significa que eles fizeram os regimes republicanos, na mesma medida que nazistas terem tido ligações com as ordens de Thule e do Vril não significa que essas ordens fossem a causa do nazismo.

Por serem objeto de perseguição política, correntes da maçonaria adotaram códigos cifrados, equivalentes aos dos herméticos: são as marcas maçônicas, que podem estar presentes também nos textos científicos e literários. Como observa Maria Estela Guedes, “o discurso maçônico infiltrado no científico, ou num poema, tem por conseqüência excluir os profanos do acesso à informação. […] Se assim procedem, é por serem maçons que desejam vir a ser reconhecidos pelos seus confrades, não só coevos, como futuros.” O motivo é que “o texto se inscreve num contexto de censura e repressão,” já que “os pedreiros-livres atacavam a Igreja com o anti-clericalismo e com a filosofia do naturalismo; e atacavam as monarquias com o tríplice programa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.” Na mesma medida, os inimigos desse tríplice programa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, os integristas da TFP e adeptos de outros reacionarismos, sempre atribuíram as piores coisas, desde comer criancinhas até controlar as finanças globais, aos maçons e organizações afins.

Por isso, mobilizar esses recursos narrativos – códigos cifrados e sociedades secretas – a serviço do relato de uma conspiração para explodir o Vaticano é reincidir no pior da paranóia política e na versão mais doentia do reacionarismo, mesmo com o truque, ao final, do culpado ser outro – mas Brown em momento algum desautoriza a idéia da conspiração de seitas. Anjos e Demônios é, mais que vulgar, repugnante. Quanto ao bom aproveitamento ficcional de seitas e códigos, literatura de qualidade não falta: um espécime recente é o já citado O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco: seu êxito editorial é mais um argumento para redimir listas de best-sellers. E quanto à informação histórica de qualidade, acho que há mais sugestões de leitura entre as obras que acabei de citar ou mencionar. Que delas façam bom proveito os que quiserem saber mais sobre enigmas e mistérios que já excitaram tantas imaginações. Quem sabe, algumas subirão ou retornarão às listas de mais vendidos.

 
Claudio Willer é um dos editores da Agulha. Contato: cjwiller@uol.com.br. Ensaio publicado originalmente na Agulha # 48 (novembro de 2005).