FRESCOS DA "CASA DE VASCO DA GAMA" EM ÉVORA
Monstros das "Casas Pintadas": Maria Estela Guedes
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12-12-2007

Anjo2 Arcos3 Arcos4 Aves2 Basilisco Bicha1 Centaura3 Centauras Coelho2
Coelho3 Coelhos Faisao Fresco2 Fresco3 Fresco4 Fresco5 Galo Gamos-e-unicornio
Ganso2 Luta-de-galos Mammalia Mulher-ave Onca-pintada Pavo Raposa Sereia Unicornio
Unicornio-gamo-raposa anjo1 arcos5 aves chasseur fresco1 ganso1 menino mocho
 
Maria Estela Guedes
Monstros das "Casas Pintadas"

Considerados únicos no património artístico nacional, os frescos das "Casas Pintadas" merecem cuidado das entidades competentes para não se desfazerem no chão num monte de bocados de cal pintada, como partes da parede ameaçam, e os vazios de outras comprovam ter já diversas vezes acontecido. Eu, pessoalmente, nunca tinha visto nada igual, pelo menos em pintura mural. Foram uma surpresa, estes frescos vistos em Évora.

Por um folheto vendido no Forum ao lado da casa que nunca pertenceu a Vasco da Gama, mas tem essa fama, "Os frescos das Casas Pintadas - Évora", assinado por Joaquim Oliveira Caetano e José Alberto Seabra Carvalho, ficamos a saber que os painéis datam da primeira metade do século XVI. É evidente neles a presença de muitos elementos renascentistas, tal como a dos elementos paródicos, bem rabelaisianos, como assinalam os autores.

Os elementos acumulam-se na parede exterior voltada para um jardim plantado com pomar de espinho, e na capela adjacente, na qual uma mesa de altar cortou a cabeça a uma classe de figuras das mais interessantes, as centauras - centauros no feminino. Vi-as pela primeira vez, não tinha sequer conhecimento da existências de centauros-fêmea. Sobretudo nesta capela, a pintura de temática cristã também é de notar, caso de um painel com a Sagrada Família (foto ao lado).

O segundo painel cristão importante da capela, dos mais desgastados pelo tempo, é uma descida da cruz. Ocupa a parte mais elevada de uma das paredes. A ameaça que paira não é só a de as cores se irem esbatendo, mas também a de cair o seu suporte. Na imagem ao lado, vê-se bem que caiu parte da superfície da parede, com as pinturas que continha.

Na parede exterior, da varanda, combinam-se entre si as cenas, e combinam-se de forma híbrida.

O hibridismo é patente nas centauras, precisamente, formadas por uma parte humana e outra animal.

A origem dos elementos é muito diversa: uns parecem naturalistas, simples tradução de animais do bosque para a pintura; outros, mais elaborados, pressupõem conhecimento da literatura clássica, como acontece no pormenor ao lado, em que temos uma figura órfica a convocar para junto dela, não só os animais, como as plantas.

Orfeu, quando cantava, fazia mover dos seus lugares até os regatos e as pedras dos caminhos, para o ouvirem.

Na imagem, são as lebres, as aves e os tufos de plantas que ficam encantados ao ouvir Orfeu tocar a sua gaita de foles.

Muitas figuras e elementos ou já desapareceram ou estão a desaparecer, tornando difícil reconhecê-las. Os vegetais abundam mas não parece corresponderem a nenhum desejo de imitação dos reais.

Entre os monstros animais, além da serpente/dragão de sete cabeças, chamam a atenção um basilisco de que já quase resta só a cabeça, o unicórnio, com o corno também muito delido, as centauras, a sereia e a mulher-ave. Também vemos, num registo pictórico diferente, mais erudito, nus femininos a que apetece chamar "anjas". Creio que os anjos costumam ser só do género masculino. Os painéis pendem, nitidamente, para a glorificação do feminino .

As pinturas são muito diferentes umas das outras no estilo, há pelo menos dois vectores a considerar, o popular e o erudito. Elementos ingénuos como os coelhos, ou mais étnicos, como a bicha-das-sete-cabeças, não parecem ter sido pintados pela mesma mão que se deteve, langorosa, nas formas rechonchudas de alguns meninos e sobretudo de umas figuras algo equívocas e indecifráveis, com certo gosto fescenino, que se alongam além de umas nádegas com cauda de porco, mas que no extremo já não consigo precisar se continuam a ser porcinas, se são mais humanas, ou se retratam mamíferos marinhos.

É um conjunto de imagens de alto valor documental, artístico, e mesmo científico, dadas as informações relativas a essa primeira metade do século XVI que prestam sobre a fauna, eventualmente a flora, as espécies cinegéticas de Portugal, por um lado; por outro, a descoberta de espécies exóticas, caso da onça-pintada (Panthera onca), existente no Brasil.