MAR-POESIA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN:
POÉTICA DO ESPAÇO E DA VIAGEM - I
HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA

In: Revista Brotéria, Lisboa, Maio-Junho e Julho de 2002
(Agradecemos ao director da revista a autorização para publicar)


Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
Sophia de Mello Breyner Andresen


INTRODUÇÃO

Foi minha escolha meditar sobre a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Como se trata de mais um reencontro, permiti-me continuar a linha de investigação pessoal e meditação sobre o universo poético de Sophia de Mello Breyner, agora inserida em Mar – Poesia de Sophia M.B. Andresen – Poética do Espaço e da Viagem. Respeitando o pensamento de Sophia sobre a não necessidade de fazer opções no plano de uma teoria ou de uma estética (1), tentei sintonizar-me e compreender as suas opções e idiossincrasias da palavra poética, à qual tentei adequar a leitura.

Os textos de Sophia estudados no presente trabalho e a respectiva referência do número de página estão publicados na 3ª edição de Mar-Poesia, 2001; outros poemas e textos poéticos de Sophia mencionados, um deles brevemente lido, figuram na Obra Poética I, 1990; Obra Poética II, 1991 e Obra Poética III, 1991.

Embora não tenha recorrido a ensaios e teses para a elaboração deste trabalho, com o devido respeito pelos mesmos, a bibliografia passiva inclui uma triagem dos ensaios e teses sobre Sophia, de cuja crítica estarei mais próxima , em particular e por ordem cronológica, os textos de Eduardo Lourenço, na sua expressão da “positividade”, na obra poética de Sophia; de Silvina Rodrigues Lopes, no seu estudo da “poética da navegação”; e Carlos Ceia, no seu estudo sobre “ a via elemental” , na poesia de Sophia. Não desenvolvi bibliografia de carácter teórico, por razões óbvias, para além da que considerei essencial , já incorporada e interiorizada no conhecimento, escolhida por aproximação da poesia de Sophia, do assunto do presente trabalho e do caminho pessoal de leitura – Auden, Bachelard, para a poética da água e do espaço; Durand, para o imaginário; Merleau-Ponty, para o “olhar e o espírito”; Heidegger, para o qaumaston ou espanto ; Simone Weil, para “a espera de Deus” e a integração no ritmo cósmico; Manuel Antunes, para a crítica como discernimento; José Augusto Mourão, para a leitura como caminho.E ainda o caminho que, com Luís de Sousa Rebelo percorri, através de diálogos, no sentido da acribia e abertura crítica. As notas figuram no final do texto.

CAMINHO COM A POESIA DE SOPHIA

Quando, na minha adolescência, ouvi, em casa de amigos, pela primeira vez, a poesia de Sophia, dita por ela própria em disco, ainda não a tinha lido. Eram poemas dos seus primeiros livros. Fui de imediato tocada pela sua profunda vivência que se sintonizava com a minha própria vida e vivência. A sua poesia ritmava a força imanente do vivido e procurava de certo modo transcender-se numa dimensão muito ampla, límpida e luminosa, sem recusar a sombra e o medo. Emprestaram-me o disco que ouvia longa e repetidamente como uma dança interior profunda com a qual me sintonizava. Essa dança permaneceu no fundo de mim mesma toda a vida e à medida que fui lendo e meditando a sua obra poética, do primeiro verso Apesar das ruínas e da morte do livro Poesia (1944), até ao último poema publicado em 1997– Veneza-, no livro O Búzio de Cós e outros poema.

No momento de pensar em escrever sobre o seu universo poético, nos anos 70, lembro-me que compreendia o silêncio dos críticos, porque a obra de Sophia é muito liberta de adesão a correntes estéticas, teóricas e outras e porque exige subliminarmente do leitor uma qualquer procura profunda na passagem desta vida. Lembro-me que era no conhecimento por co-naturalidade e no discernimento que eu ia caminhando à medida que ia lendo e meditando a obra de Sophia. Quando lia as suas Artes Poéticas, era claro que não era necessário ler nenhum texto crítico ou teórico para ir ao encontro da sua poesia. Sentia-a próxima de Rilke, de Novalis, de Homero, dos líricos gregos e dos românticos ingleses e alemães, de Camões, de Dante, de Pessoa, Pascoais e Eugénio de Andrade. Quando estudei o Imagismo na poesia americana do século XX, há muitos muitos anos, também a sentia próxima.

Na lógica interna da sua obra, Sophia incluiu, desde o início até ao último livro - Búzio de Cós e outros poemas-, textos “a maneira de” vários poetas clássicos, renascentistas, românticos e contemporâneos, cultivou a homenagem e a evocação de grandes poetas portugueses, muito em particular Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Rui Cinatti, este último da sua geração em torno dos Cadernos de Poesia; nos seus últimos livros revisita Byron, João Cabral de Melo Neto, entre outros.

Sempre procurei o rigor crítico fundamentado em estudo, meditação, e prática de discernimento. Sendo a poesia de Sophia obra do maior rigor, a nossa leitura tenta adequar-se ao seu rigor poético. É nessa procura de discernimento e de compreensão dos conteúdos e expressão do texto que continuo a situar-me, procurando sempre que a minha leitura se adeque ao texto. Ler um texto é caminhar com ele, com o distanciamento que a leitura adequada lhe pode proporcionar. As leituras reducionistas, ou feitas a partir de uma teoria e não deixando falar os textos, não fazem parte do meu itinerário. Procuro também que a leitura seja criativa e, sempre que possível, pluridimensional.

Continua a ser difícil ler a poesia de Sophia de Mello Breyner, pelo entrecruzamento de mundos que a povoam, como acontece a toda a poesia e literatura que não vive sobretudo de fulgurações, mas atinge o fundo do fundo ou o centro do centro do espírito e a travessia da vida. À medida que avança a vida, o honesto estudo / com longa experiência misturado, é cada vez mais claro que todos os grandes poetas escrevem sobre a vida nos seus meandros, travessias e enigmas, variando apenas a linguagem, o discurso poético, algumas circunstâncias espácio-temporais.

Escolhemos o texto Mar-Poesia que vamos considerar como um único texto. É sempre relevante o acto de um poeta escolher as suas próprias antologias. Sophia de Mello Breyner criou essa sua disciplina antológica desde 1968, ao publicar Antologia, em sucessivas edições, até 1985, ao fim da publicação dos seus oito primeiros livros de poesia- Poesia, Dia do Mar, Coral, No Tempo Dividido, Mar Novo, O Cristo Cigano, o Livro Sexto, Geografia. Dois anos depois, em 1970, publicou a antologia Grades que reunia poemas de resistência, e foi proibida pela censura. Em 2001, ao fim de cinquenta e sete anos de publicações, Maria Andresen de Sousa Tavares organizou a antologia Mar -Poesia, a pedido de Sophia; ambas afinaram, ao longo de diálogos, os critérios de escolha de textos sobre o mar (2). Era a antologia que todos esperávamos, pois reúne como nenhum outro livro o itinerário de um sujeito lírico para quem o mar, como a terra para Búzio do conto Homero, in Contos Exemplares, se identifica com o “seu destino e a sua vida”.

Optámos pela disciplina de não nos remetermos para textos afins de Sophia, a menos que se afigure indispensável, nem para textos de outros poetas, para não alongar o pendor analítico do nosso trabalho. Tentaremos, todavia, equilibrar análise e síntese. A antologia Mar-Poesia reúne e sintetiza grandes fulcros da poética do espaço e da viagem na poesia de Sophia, pela presença permanente do mar com todos os seus mundos, vivências, metaforizações e alegorizações, viagens, espantos e esperas. É um texto aglutinador que permite percorrer o que ousamos chamar idiossincrasias poéticas que atravessam a obra de Sophia de Mello Breyner.

Ao meditarmos sobre um plano para o presente trabalho, pareceu-nos adequado procurar eixos possíveis de leitura da obra de Sophia e elaborar um plano com encadeamento temático que tente acompanhar o ritmo e a sequência do livro Mar-Poesia, que, por sua vez, acompanha o ritmo e sequência da própria obra de Sophia, desde Poesia (1944) a Musa (1994, 4ª edição, 2001)

Tomando como eixos possíveis de leitura da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen o que está sintetizado no seu verso nunca se distingue bem o vivido do não vivido ( Elegia, in Musa); a sua multímoda procura da relação de equilíbrio com o real (3) , sintetizada na sua metáfora da Balança misteriosa (4), propomos a nossa leitura imanente de Mar-Poesia - poética do espaço e da viagem -, organizada em três núcleos temáticos afins que nos permitem percorrer algumas idiossincrasias poéticas da obra de Sophia de Mello Breyner, do Mar como Identidade, Liberdade e Reino; à Catábase Marinha do Sujeito Lírico; à Topologia Insular, Nostalgia da Epopeia e Poética da Viagem.

Nunca se distingue bem o vivido do não-vivido porque vivência no espaço e no tempo, vivência interior e vivência poética convergem e não sabemos, por exemplo, onde nos poemas Ítaca, O Minotauro ou Delphica se situa a fronteira entre o vivido, no espaço exterior e interior do sujeito lírico e o não-vivido aproximável do que é metaforizado. É também lógico o primado do vivido, no acto de escrever o poema – “escrever um poema...../ Sem que nada separe o homem do vivido” (in Homero, O Búzio de Cós e outros poemas), porque no poema conflui a vivência espácio-temporal- Sophia viajou no Mediterrâneo, no Atlântico, escreveu alguns poemas no próprio espaço do Mediterrâneo, particularmente em Delfos- ; a vivência interior e a vivência poético-metaforizante. Daí a complexidade e meticulosidade da procura de uma relação de equilíbrio entre o ser espácio-temporal e interiorizado e o que Sophia chama “o real”, “o pássaro do real”, “ a realidade” (5), equilíbrio metaforizado na “Balança misteriosa”(6), um misto de procura e de insondável , enquanto o poema, segundo Sophia, é escuta, é a procura do poema imanente (7) , exigindo, em nosso entender, do leitor, uma leitura imanente que é caminho com o poema imanente que se vai escrevendo e lendo.

Situaremos este nosso trabalho no horizonte de expectativa do leitor culto e vivenciado do século XX. Tentaremos a acribia crítica possível, o discernimento possível perante um texto de uma obra muito profunda, de expressão a um tempo contemporânea e intemporal.


MAR-POESIA: POÉTICA DO ESPAÇO E DA VIAGEM

1. MAR, IDENTIDADE, LIBERDADE E REINO

1.1. Mar, Identidade e identificação do sujeito lírico

MAR-POESIA abre com uma epígrafe poética detonadora da identidade da alma do sujeitop lírico:

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
Atlântico, p. 9

A expressão prima pela economia de palavra que povoa o texto poético de Sophia: um verso ao qual não foi necessário acrescentar outros que igualmente o povoam; nem com eles fazer montagens, como se o poema fosse um filme, segundo o que Sophia de Mello Breyner explica com a maior clareza numa das suas Artes Poéticas (8). Um verso que define uma idiossincrasia da sua alma poética, como se a maresia pudesse a um tempo constituir metade da essência da sua alma e eventualmente cobrir, pelo seu elemento etéreo – o cheiro vindo do mar que penetra no ar -, a outra metade da sua alma.

A essência da sua alma poética vive da cumplicidade da maresia e da sua identidade como respiração da brisa marinha, numa harmonia perfeita de ritmo vital anímico e espiritual em que confluem as metáforas vividas do mar, do ar e da brisa ou vento suave, ritmo da própria respiração vital do sujeito lírico que, por sua vez, faz parte do universo do próprio mar, o qual dá pela ausência do sujeito lírico quando ele se aparta de uma praia e por ele vai esperando, no esplendor da maré vasa:

Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vasa
Há muito, p. 48

Relacionaremos as esperas com os espantos e a nostalgia da epopeia, ao longo do presente trabalho. Neste início, concentramo-nos sobre a espera na sua relação com a identidade poética do sujeito lírico. A poesia de Sophia vive muito de caminhadas, partidas e reencontros solitários, sendo a praia espaço de caminho, partida, reencontro, contemplação, renovação, até de esperança de regresso do post mortem para recuperar o não- vivido em plenitude e convertê-lo em vivido, na vida misteriosa liberta do peso da caducidade e da morte; ou para integrar toda a sua alma poética, identificada com toda a sua vida vivida junto do mar, em todos os instantes, e do instante para a eternidade, como libertação das contingências do tempo:


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
Inscrição, p. 40

Na poesia de Sophia, é relevante a identificação e identidade do sujeito lírico que se procura e encontra o seu próprio nome, relacionado com o acto de nomear pela palavra a essência do ser, a essencialidade do real, o “nome das coisas”. No poema “No mar passa”(p.26), o seu nome como essência do seu ser mais recôndito e identificado com o mar tem a expressâo “o meu nome fantástico e secreto”, perpassa e ecoa no mar e é apenas reconhecido pelo espírito, pelas metáforas do espírito – “os anjos do vento”- que sopra onde e como quer, em movimentos de sopro que se aproxima, e repentinamente se afasta do sujeito lírico que exprime o encontro e a perda dos “anjos do vento”. No universo poético de Sophia é importante o acto de reconhecer e ser reconhecido como exactidão de actos que é a justiça, muito em particular no plano ontológico. Na sua poesia, onde tudo se move com a maior liberdade, numa expressão contida, rigorosa, próxima do cinema e do bailado, consideramos que o vento é, por vezes, a um tempo o sopro do ar e do espírito. A expressão “anjos do vento”, no mesmo poema, sintetiza a ideia de seres espirituais ou “puros espíritos”, de seres alados que se aproximam semanticamente de aves e pássaros que povoam a poesia de Sophia, em suma, a metáfora do voo do vento conciliável com o voo do espírito (vide metáfora do voo da “ave do espírito” no poema São Tiago , in Ilhas) (9); sintetiza ainda uma forma de dança do vento, integrada no que ousamos designar como dança cósmica, movimento contínuo da natureza integrada no cosmos que povoa a poesia de Sophia, com a qual o sujeito lírico se encontra e da qual por vezes se perde, num ritmo natural, como veremos ao longo do presente trabalho (10):

No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente
No mar passa , p. 26


1. 2. O Mar, como espaço de liberdade

No poema Dia do mar no ar (p.20), e em particular nos seus primeiros livros de poesia, é clara a dualidade do espaço fechado (quarto) – espaço de liberdade (mar) que se reflecte na dualidade dos gestos ou movimentos do sujeito lírico, quer na comparação com as medusas - monstros marinhos com cabeça redonda, coberta de serpentes, asas longas, olhos potencialmente petrificadores dos seres que olham -,monstros como metáfora do inesperado, do confuso, no movimento humano - que deslizam “entre o animal e a flor”-, no espaço- quarto- cubo; quer na metáfora das gaivotas, como liberdade plena de voar e de se perder, fundindo-se no cosmos das ondas e das nuvens:

Dia do mar do meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
Dia do mar no ar, p. 20


O mar é também “espaço arfado” que se identifica com as origens e a renovação da vida do sujeito lírico, num processo que não está imbuído da fatalidade do eterno retorno das cosmologias pre-socráticas, mas insere-se no rito de passagem que impregna as viagens para o desconhecido e renova o sentido profundo, quase etimológico da aventura, ou seja, o caminho para o futuro, como se ao mesmo tempo se tratasse de um “rito do espanto e do começo”:


O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
Inicial, p. 47

Neste texto perpassa ainda o mito de Afrodite anadiómena, nas metáforas do “arfado espaço”, sal, espuma e concha, da “praia inicial da minha vida”, como se o sujeito lírico tivesse nascido, como Afrodite, da união do Céu e da Terra, da espuma de Urano, caída no mar. Um sujeito lírico que aspira à união cósmica e à sua impregnação pelo mar e o amor, na solidão e na espera, na praia, desde os primeiros livros de poemas.

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Mar, p. 10

A união cósmica do sujeito lírico com o “mar, o vento e a lua” passa de aspiração a acto, neste poema, pelo espaço de êxtase e nudez da praia, sintonizando-se com a dança e harmonia cósmicas que perpassa no universo poético de Sophia de Mello Breyner, sintonizando-se também, na expressão de outro poema, com o “secreto bailar do meu sonho” que o som humanizado do mar- “a tua voz”- segue:

Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Mar Sonoro, p. 16

Neste mesmo poema, como no poema “ As ondas quebravam uma à uma”((p. 15), é clara a relação directa da solidão do sujeito com a solidão do próprio mar que, por sua vez, na sensibilidade do sujeito lírico, parece não seguir com a voz mas atingir o acto puro do canto apenas para ele-sujeito. A solidão do sujeito valoriza a beleza e o som do mar cujo espectáculo admirável – “milagre”- parece ser um dom apenas para o sujeito que o contempla. Donde o significado possível de que a contemplação como estado elevado de espírito do olhar do sujeito valoriza a beleza do elemento marinho e hiperbolicamente o reduz como objecto de um único contemplador que é o próprio sujeito, como se se tratasse de um olhar unitivo de absoluta cumplicidade, como unitivo e cúmplice é o canto do mar ou da espuma do mar:

As ondas quebravam uma à uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só p’ra mim
p.15

A mesma hipérbole do “milagre só para mim” que é um modo de exprimir essa via unitiva directa do sujeito lírico com o mar, prolonga-se no silêncio da “casa branca” em frente do mar, no seu jardim de flores marinhas, no silêncio onde permanecem a memória e o inconsciente adormecido da maravilha – “ o milagre”- interior, identificável com o “secreto bailar” interior:


Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em quem dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
Casa Branca, p. 13

O devir do mar é um espectáculo exterior, fonte de contemplação e união do sujeito lírico, um espectáculo de luz - nos poemas Meio-Dia (p. 11) e Alto Mar (p. 14) – onde ninguém, para além do sujeito lírico, parece verdadeiramente espraiar-se, abrir-se, avançar na liberdade, em oposição ao gesto livre da água que “não modula o sonho de ninguém”, marca da vivência colectiva de agonia e repressão que Sophia desenvolveu em poemas de resistência de grande densidade e de profunda consciência cívica, reunidos por ela própria na acima referida antologia Grades (1971):

Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.
No Alto Mar, p. 14

O som do mar ouvido pelo sujeito lírico, para além da “voz” e do “canto”, é o som de quem “ parece bater palmas”, na festa e eco que esta expressão sugere, no espectáculo de luz e movimento puros, sem necessidade de efabulação, imaginação ou fantástico, na solidão da própria praia:


Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.


Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso, solitário e antigo,
Parece bater palmas.
Meio-Dia, p. 11

O sol no seu fulgor cósmico apaga ou neutraliza o esplendor mítico, como se o real fosse uma força superior à da fabula poética:

O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
Meio-Dia, 2-3,p. 11

A luz inunda a planície do mar, mas ninguém cria gestos luminosos:

O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.
No Alto Mar, 6-8, p. 14


Noutros poemas, é o som sugerido pelo movimento das ondas como braços que tombam de bruços – Praia, p. 27 -, o movimento das vagas e ondas não raro comparadas ao arremesso de toiro – A Vaga, 1, p. 37; Praia,9,p. 23-, a mulheres deitadas na areia ou a uma bailarina – A Vaga, 7-10, p. 37 -. O movimento do sacudir das crinas do cavalo é uma metáfora que atravessa a poesia de Sophia , no mar – A Vaga,2-3, p. 37; Onda, 4, p. 71 – ; no vento – “ os quatro cavalos do Vento sacodem as suas crinas” in Marinheiro sem Mar, in Mar Novo -. O poema Ondas (p.71) que fecha esta antologia por pertencer ao livro Musa, sintetiza a rara beleza das ondas como os “mais belos cavalos”, a “mais bela crina sacudida”, o movimento erótico e erotizante do mar:

Onde mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia
Ondas, p.71

Do erotismo do mar ao erotismo feminino e à liberdade, alguns poemas de Sophia, e em particular os que integram Mar-Poesia, exprimem a liberdade através de metáforas de movimentos de braços femininos à beira-mar, em gestos de liberdade com expressão hiperbólica - “lançam os braços pela praia fora e a brancura/ dos seus pulsos penetra nas espumas”-, integrados e confundidos com a dança do mar e do vento – “Confundindo os seus cabelos com os cabelos/ do vento” - ou prolongando e tocando o movimento do ar, do vento, do mar,- “aspiram longamente/a virgindade de um mundo que nasceu", de um mundo novo de união ao que chamamos dança cósmica, um novo mundo de liberdade -, no poema Mulheres à Beira-Mar (p.22), inspirado num quadro de Picasso.

Nesta mesma antologia, encontramos também o crescendo do que vimos atrás como puro som, pura luz no mar, abarcando a metáfora do “puro espaço e lúcida unidade” do mar, apenas ritmado pelas ondas, no poema Liberdade (p.28).Espaço onde o tempo que, na poesia de Sophia é indissociável da divisão, associado à cidade, às “ruas”, como metáfora da civilização que afasta o Homem da sua unidade; “ puro espaço” onde o tempo “dividido”, na expressão tópica de Sophia, ao longo da sua obra poética, encontra a sua liberdade, deixando de ser “dividido”, sobretudo como realidade e metáfora, no plano profundo e ontológico do Homem contemporâneo, para se tornar livre e implicitamente uno ou unificado, no “puro espaço e lúcida unidade” da praia e das ondas ritmadas. Trata-se de uma mudança dentro do universo das mudanças e fracturas do tempo, mais que uma mudança, uma conversão do tempo dividido em tempo uno e implicitamente lúcido, como intuição do sujeito lírico ao contemplar meditando o espaço de uma praia, como aspiração sua a um mundo novo sem divisões nem insanidade, metaforizado no “puro espaço e lúcida unidade”:

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Liberdade, p. 28


1.3. O mar como Reino

Tendo percorrido sucintamente, no presente trabalho, a partir de textos da antologia Mar-Poesia, metaforizações do mar como identidade, união e espera solitária do sujeito lírico, a sua contemplação do mar que agudiza o seu olhar do devir do mar, a sua consciência crítica sobre a importância da positividade da renovação interior do sujeito, do espanto, da dança cósmica do real, da luz que neutraliza a efabulação mítica, os fantasmas, o imaginário; da liberdade humana e do próprio tempo; toda essa procura e vivência poética vem corroborar a parte final do presente núcleo temático que incide sobre a lógica da positividade das metáforas das personagens que enfrentam e atravessam o mar, no quotidiano e nas viagens, a positividade do mar como reino. Reino onde convergem, no silêncio e na luz, as metáforas-geometrias perfeitas da “coluna de sal “ ou “eixo onde todos os equilíbrios são possíveis”; o “círculo de luz”, na sua irradiação; a medida exacta da “Balança misteriosa” da relação justa do homem com o cosmos, esta última a desenvolver no texto As Grutas (pp.38-39), no núcleo temático seguinte sobre a catábase marinha do sujeito lírico.

Vejamos a síntese poética da positividade do mar como Reino:

Reino de medusas e água lisa
Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa
Reino, p. 35

Para além das metáforas do eixo-“coluna de sal”, do “círculo de luz” e da “Balança misteriosa” que vimos acima, o mar apresenta ainda o equilíbrio entre a água lisa e a inevitável presença do monstro - as medusas, monstros marinhos, metáfora do desconhecido e do inesperado, como atrás comentámos; a metáfora do espanto que atravessa, em variadas modulações, a poesia de Sophia, na expressão “Habitação das formas espantosas”. O espanto do mar, “o rito do espanto e do recomeço”, o espanto das navegações que, como veremos, irá ultrapassar o imaginário, o imaginado, a expectativa do viajante. O espanto sem o qual não existe poesia e, sem o qual, segundo Heidegger, no ensaio Was ist das die Philosophie, não existe filosofia. A capacidade de se espantar, de sentir o espanto - qaumaston - perante o mundo, o cosmos e o novo é comum ao filósofo, está presente na poesia de Camões e de Fernando Pessoa.

1.4. O Pescador, o Marinheiro Real e o Pirata

As metáforas do Pescador e do Marinheiro Real e a alegoria do Pirata sintetizam a coadunação dos que trabalham no mar com a excelência do Reino e a sua relação profunda com esse mesmo Reino. O Pescador (p. 33), tem uma relação de fraternidade com “as coisas”, supera as emoções, tem o que Sophia designa ao longo da sua obra poética como “inteireza do ser” (11), integra o mar e o céu na sua realidade ontológica, mantém a sua atenção e abertura ao mundo com “serena lucidez”, o saber a um tempo experimentado e distanciado, próximo da sabedoria.

O Marinheiro Real (p.29) é o verdadeiro marinheiro da realidade do mar que se opõe, na poesia de Sophia, ao atrás referido Marinheiro sem mar, in Mar Novo, que se “afastou do que era eterno”, “porque o mar secou”, “porque o destino apagou o seu nome dos astros” e caminha “nas obscuras ruas da cidade sem piedade” (12). O Marinheiro Real vive em paz, integra-se no ritmo do cosmos, cultiva essa mesma “inteireza”, atinge a perfeição, desconhece a cidade – “as ruas”:

Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.
Marinheiro Real, p. 29

O Pirata (p.25) conjuga o gosto de estar só no seu barco com o gosto de se identificar com os mastros, de “uivar” com eles, de ser livre, na brisa, de integrar a suavidade do regresso. Não se identifica nem admira o mar, mas, como o herói bélico que mede as suas forças e cultiva o auto-domínio e o controlo das emoções e sentimentos profundos, o pirata exprime a sua força de auto-domínio sobre os perigos de estar sozinho no barco (13) , através do que chama “desprezo sobre o mar”. Tenta neutralizar a ideia de monstro identificável com o desconhecido ou o inimigo potencial que o poderá inesperadamente surpreender nas viagens (14), nas metáforas dos “monstros que não falam” (tigres e ursos) que amarrou aos remos e que à partida não o paralisam e ele sabe dominar . O Pirata é a alegoria do homem intrépido, viajante solitário, que à partida vence tudo o que é impeditivo ou destrutivo, como que uma aspiração ou realidade de todo o ser humano que nasce, percorre solitário a vida. O que apenas tenta definir na sua errância, com a maior beleza e dignidade, é a sua ligação ao vento, às flores e às aves, identificadas respectivamente com a pátria, a amada e o seu desejo, no final do poema, como um sonho/vigília permanente:

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que fica das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Pirata, p. 25

Esta sua identificação corrobora a solidão do sujeito lírico da poesia de Sophia, a sua relação com a metáfora do vento que atrás explicámos, neste caso, com a ideia de que a pátria é onde sopra o vento cósmico e o vento do espírito; o amor é metáfora de árvores de flores – rosas, as preferidas, em toda a poesia de amor- a florirem; o desejo identifica-se com a ave, o rastro da ave, associada implicitamente à metáfora do voo do espírito (recorde-se ainda a “ave do espírito” do poema São Tiago, in Ilhas, que atrás referimos) (15) e/ou à liberdade das aves. É possível que, neste caso, a interpretação mais funda esteja relacionada com a liberdade das aves, dos piratas a que o sujeito lírico e os seres vivos aspiram, muito em particular na poesia de Sophia de Mello Breyner.

1.5. Breve síntese

Analisámos algumas metáforas e idiossincrasias poéticas dos itinerários de solidão do sujeito lírico, de questões da sua identidade e identificação com o mar, a sua procura de renovação, de ritmo interior, em união com o ritmo da natureza, do mar, sensível à dança cósmica, consciente do “ bailar secreto” dos sonhos e vigílias, combinando o inconsciente do sono e a sua ausência em estados prolongados de vigília e atenção, atenta e unida ao devir do mar como espectáculo de luz e movimento sonoro, cantante e erotizante, ao milagre do mar e ao silêncio dos seus milagres interiores; ao mar como reino de círculo de luz, coluna de sal e misteriosa Balança que equilibra a relação do sujeito lírico com o cosmos; ao mar como metáfora de liberdade para o “tempo dividido”, para as mulheres; nas metáforas do pescador e do marinheiro real, na alegoria do pirata; mar onde a positividade da luz, da liberdade e do real pode neutralizar a necessidade da fabula da presença dos deuses, dos “fantasmas” e “almas”. Donde é clara a ambivalência da efabulação que, na poesia de Sophia, não é apenas retórica, mas com presença vivificante, em momentos de luz e de nostalgia, aproximável do discurso poético do Renascimento, embora liberto de estruturas poéticas e códigos literários como no século XVI.

Na antologia Mar-Poesia que percorre toda a sua obra, a fabula dos deuses em particular “os deuses fantásticos do mar” é neutralizada ou corroborada em momentos de luz e reaparece em momentos de nostalgia, de melancolia, de morte, na expressão “os deuses”. Veremos, na terceira parte do presente trabalho, a decepção do que no mistério de Apolo se relaciona com a comunicação com o divino, através da Sibila de Delfos, transposta para a ausência de comunicação com o divino, a própria ausência de divino e sagrado , no mundo actual. As esferas apolíneas de luz, na antologia Mar-Poesia poderão estar implícitas na expressão do real como divino, como veremos na terceira parte deste trabalho, intitulada Topologia Insular, nostalgia da epopeia e poética da viagem

O corpus de textos que escolhemos para o presente trabalho não nos permite tecer argumentos logicamente articulados sobre a funcionalidade dos deuses e mitos, o percurso de espaços de origem da civilização grega que atravessam a obra de Sophia. Permite-nos, todavia, detectar algumas das suas principais modulações no estudo da poética do espaço cósmico, espaço-mar, espaço-mediterrânico, em aspectos da topologia insular, na poética da viagem do sujeito lírico e das navegações portuguesas, começando, no capítulo seguinte, pela catábase marinha do sujeito lírico, com a metáfora da companhia de Dioniso, como força de vida e de busca de si próprio e das suas energias.



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PORTUGAL-SETEMBRO DE 2002