José Augusto Mourão

José, o obscuro

1.                      1. Até à Idade Média, S. José era quase desconhecido. Adoptam-no os franciscanos (1399) e depois os dominicanos. José estava reduzido a ser “um abjecto homem velho que aparecia como um “cornudo” de Deus nas lendas medievais e no teatro. A sua festa só aparece no Breviário Romano em 1479 e nem para toda a Igreja Católica até 1621. Jean Gerson no Concílio de Constança (1416) bem tentou elevar José a um grau próximo de Maria, logo abaixo dos Apóstolos com uma festa universal das Bodas de Maria e de José, sem sucesso. A promoção do culto de José ficou ligado à sacralização da Família e reflectia as muitas dificuldades que a partir daí resultavam para pensar uma família comum. José ficou sempre na sombra da mulher.

2.                 2.   Dentro da tradição Católica Romana, José é o santo patrono de várias coisas e lugares. Pio IX proclama-o patrono da Igreja Universal em Dezembro de 1870. É o patrono não oficial contra a dúvida e a hesitação, bem como da luta contra o comunismo e a boa morte. Morrendo nos braços de Jesus e de Maria, é considerado o modelo do crente piedoso agraciado no momento da morte. Também é venerado como patrono dos trabalhadores a partir de Pio XII em 1955 para contrariar o 1º de Maio que fora uma criação dos socialistas. Que se sublinha? A sua paciência, persistência e trabalho duro como qualidades admiráveis que os crentes deveriam adoptar. Os Católicos Romanos acreditam que ele intercede pelas famílias, mulheres grávidas, imigrantes e viajantes, engenheiros, artesãos, vendedores de casas.

3.                   3.   José é a figura da discreção, do trabalho silencioso e obscuro da fé, do trabalho e da guarda familiar. S. Efrém descreve José a acariciar o filho como um bebé; a servi-lo como um Deus. David, o rei punha a coroa, eu sou de muito mais humilde condiçã0, não sou um rei mas um carpinteiro. Embora a coroa tenha chegado a mim porque no meu colo está o Senhor das coroas!

4.                   4.  Que pode dizer esta festa? É dentro de nós que devemos procurar a vida do espírito. Falar é sempre falar do que se revela em nós. A geração do Verbo na carne é a vida, que é sagrada. Porque haveríamos de definir a vida em relação como a sua fonte? A mulher que não “falada” pelo seu marido tem uma força negativa muito profunda. Toda a mulher que tem uma criança sabe muito bem que há uma maneira muito incestuosa de reduzir a si própria, ao que ela pensa, ou sente, toda a vida da criança. O homem não nasce apenas do cruzamento de gâmetas no coito dos seus pais, mas também de toda a palavra dos sujeitos desta aliança. Não apenas da boca de um pai que cada um tem, mas do Pai da Vida, dos que são como nós irmãos. Vivemos do que comemos e do que ouvimos. A anorexia e o autismo levam à morte.

5.                     5.  Para quem pensa possuir a vida, guardá-la nas suas caves, o dom é sentido como uma perda. O dom do amor aparece como uma perda. Ora, o dom é o real. A vida dá-se. A vida não pode gerar-se sem nos gerar ao real quando, morrendo para as nossas histórias, nascemos para o eterno Presente das nossas vidas.

6.                       6.  Estar em casa é estar na conjunção do ser da luz e da palavra. Porque há sombra e fragilidade (no olhar e na alegria). “A claridade coroa-se de cinza, eu sei:/ é sempre a tremer que levo o solo à boca” Daí o apelo a respirar o “sopro reticente do silêncio” que é rumor, ardor que morre.  

Quando o ser da luz for

o ser da palavra.

no seu centro arder

e subir com a chama

(ou a baixar à água)

então estarei em casa. (Eugénio de Andrade)

7.                  7. José é o justo que guardou na memória a palavra ouvida, o sonho que o esclareceu e não o confundiu. "Senhor, quem entrará na tua tenda? Quem habitará na tua santa montanha" (Sl 15,1)? E que se vai fazer à montanha e ao lugar santo senão para ouvir a Palavra, o Mandamento, ou a Cruz que, ao contrário da sabedoria e da idolatria, como a loucura, inquieta, fala?

8.                     8.  A verdade é o grande combate do justo. E o perjúrio é a síntese de todas as faltas. Aquele cujas mãos e cujo coração estão de acordo, aquele cuja palavra merece crédito, esse pode subir à montanha e ao lugar santo. Há no tempo cronológico algo que do interior o transforma. Jesus defendeu a honra de Maria contra a calúnia daqueles que a quiseram exterior à carne e ao mundo.

9.                     9. Estamos, como José, para perceber na obscuridade do presente a luz que nos procura. Perceber esta obscuridade não é uma forma de inércia ou de passividade, mas supõe uma actividade e uma capacidade particulares, que resultam neste caso na neutralização das luzes que encandeiam a época para nela descobrir as trevas, a obscuridade singular, nunca separável da sua claridade (Agamben).

10.                   10. Sejamos capazes de fixar o olhar na obscuridade da época, mas também de perceber nesta obscuridade uma luz que, dirigida a nós, de nós infinitamente se afasta.

11.                     11. É preciso alertar contra a “lenta/ e velha e turva baba/ da tristeza”. Daí a atenção aos passos no escuro. É preciso aprender o desejo de ser crianças e os sulcos da sede,

12.                      12.  José é o guardião da família que tinha até a função de defender a família diante dos juízes (Dt 22, 13-19).  A virgindade de Maria teve de ser escondida do príncipe deste mundo, dizia S. Basílio. Que S. José nos guarde do espírito do mundo que não conhece o dom, nem o mistério do que, escondidamente, nos gera.

José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.