José Augusto Mourão

Veni foras

(Ez 37, 12-14; Rom 8, 8-11; Jo 11, 1-45)

1. Ler é deixar cair o olhar que se inclina sobre a palavra até esta re-luzir. Ler é acender o texto e deixar que o corpo seja afectado pelo que se lê. Ler é ressuscitar a letra que dorme e fazê-la vibrar, acordá-la para o “mais-ver”, para a “mais-paisagem. Ora, que mais luz hoje nestes textos? O mesmo de sempre: a vida e a morte, a luta nunca inacabada entre a carne e o espírito, a aventura do exílio e da promessa. A vida e a morte são incompatíveis, como o são os desejos da carne e os desejos do espírito. Até ao fim, nunca sabemos o que de facto se vai tecendo em nós e o que vamos sendo. Puxados nos dois sentidos, somos a resultante de duas linhas, duas forças e duas energias. Vivemos divididos entre a carne e o Espírito. Entre o que trabalha em virtude do adquirido e o que trabalha para aquilo que será, sobre o modo da promessa, do desejo, da herança e do fim.

2. Aquilo a que a mística chama “carne” é uma espécie de tecido entre as pulsões e a rede indecidível das ligações humanas, ligações significantes que o suieito não controla. Merleau-Ponty fala da “carne” como da carne da pessoa, carne do mundo. A carne, pelo menos no quarto evangelho, e pelo facto de o Verbo se ter feito carne, está em posição intermediária e provisória. Como se fosse o lugar em que desaparece uma coisa e se anuncia uma outra coisa. O Verbo que se fez carne vem carregado dessa função paradoxal de articulação impossível entre aquilo que está diante dele e daquilo que deve vir depois dele, em benefício da multidão. É nesse entre-dois que a lança do centurião toca, abrindo ao discípulo a perspectiva do que vem.

3. Velhas pechas, más memórias: o corpo foi muito tempo designado como “carne”: i.e. como sede de inumeráveis fluxos pulsionais e de inesgotáveis fontes de prazer. A partir do século XVI o interrogatório do confessor concentra-se sobre o corpo do penitente: os seus gestos, os seus sentidos, pensamentos e desejos. Como uma anatomia do prazer. O corpo com as suas diferentes sensações e prazeres torna-se o código carnal. A confissão desenha uma espécie de cartografia pecaminosa do corpo. A forma primeira do pecado contra a carne é ter tido contacto consigo mesmo porque o pecado da carne habita no interior do próprio corpo.

4. Há, na carta aos Romanos uma oposição entre a carne a razão. Mas não podemos solidificar esta oposição. A carne, na carta aos Gálatas, em vez de ser o “humano” em nós e a sua face obscura, atesta a “humanidade” na sua irreversível desaparição. Não há nada na carne que se confunda com o instinto nem com uma qualquer má tendência Para Paulo a carne é o pedagogo, o guarda da filiação. É a carne que tem de se haver com o espírito, como adversários e sócios. O erro é opor radicalmente a carne e o espírito: é esquecer o versículo 16 do capítulo 5 que liga os dois movimentos. O que Paulo afirma é a tendência que tem o primeiro a passar sem o segundo, a autonomizar-se. O espírito não suprime a carne, estão em competição (v. 17) directa e permanente. A entrada na vida sob a lei do Espírito muda tudo: o Espírito converte a inércia que marca a lei, e a impotência da razão para dobrar a carne à regra. Com vista à nossa justificação, Cristo desactivou o pecado na carne da nossa carne, reduzindo-a ao nada (sem condenar a carne!),

5. Para Jeremias, Isaías, Ezequiel o exílio é coextensivo à própria condição do povo da Aliança. É mesmo o resultado da sua ruína justificada. Este povo infiel será expulso da terra e dispersado (Dt 28, 63-68). O cristianismo dolorista veio exaltar a culpabilidade que ressoa no duo exílio/falta da ameaça profética. Mas não há só desgraça na boca dos mensageiros de Javé. A esperança é a outra face do exílio e a sua realidade é a escuta. O texto de Ezequiel (37, 12-14) é um texto de consolação, não de aniquilação. Se a ressurreição é algo que está continuamente a vir, as viagens da vida não têm fim. Infeliz quem se fixa numa terra morta e impede o esforço infinito para a viagem sempre recomeçada que Deus pede àqueles que o escutam, para que as ossadas possam reviver. Infeliz é quem sucumbe aos acenos de um nicho apaziguador. O regresso é uma promessa com a condição que se leia no conjunto do trajecto da viagem: êxodo, exílio, regresso – nunca um fim em si. O regresso é um segundo êxodo, prelúdio de um outro exílio e outro regresso. O regresso é uma conversão, como épistrophê (um regresso á origem) ou como métanoia – um renascimento graças a um desapego do pecado e da idolatria operada pelo arrependimento.

6.Como pensar a relação entre a vida e a morte e entre as acepções que Jo 11, 1-44 propõe, qual escolher para acreditar na ressurreição? A ressurreição de Lázaro arrasta a condenação de Jesus. Se Jesus continua a fazer sinais todos vão acreditar nele e os Romanos vão destruir a cidade e a nação – assim pensa o Conselho e assim pensa Caifás. A cura dum cego era pensável, a abertura dum túmulo não – a separação entre os vivos e os mortos é absoluta.

7.  Que é preciso pensar da vida e da morte para crer na ressurreição? João não conta apenas a ressurreição factual de Lázaro (de que não dá qualquer descrição): ele põe em questão as categorias de vida e de morte. Como conceber a ressurreição para que não apareça como a restauração da vida anterior nem escamoteamento da morte, sem esquecer a eventualidade que Lázaro venha a morrer ulteriormente após a sua ressurreição? A posição de Jesus diante da morte não é de resignação nem revolta, mas afrontamento. São elas que estorvam a sua ida ao espaço da morte: “Já cheira”. Marta crê na ressurreição que para Maria é impossível e para os judeus é inimaginável. Jesus rompe essa barreira que cela os mortos na sua morada de pedra. Lázaro está morto e é um “morto” que sairá do túmulo – o que contesta qualquer ideia de interpenetração da vida e da morte. Há uma pedra que se fecha e se abre: a pedra aberta deixa livre a entrada da palavra no interior do túmulo – o que permite redefinir o estatuto dos mortos: um estado tal que a voz possa acordar-vos. Afinal Lázaro não estava morto: ele ouviu a voz que o chamou de fora: “veni foras!” e saíu do túmulo com as ligaduras em que o ataram.

8.  Que inverte Jesus? O modelo binário da vida e da morte. O estatuto do ressuscitado: literalmente entre a vida e a morte. Sair da alternativa vida vs morte para a alternância do viver e do morrer em função dum terceiro nível: o acordar, ter a capacidade de ouvir a palavra. Assim se redefine a morte. Podemos viver fiados na palavra e morrer. É possível morrer não morrendo para a eternidade: é a palavra a crer que muda a necessidade da morte em “sono” e a factitividade da vida em “acordar” que permite viver e morrer de outro modo para a vida eterna. Questões não faltam: se Jesus amava Lázaro porque não o impediu de morrer? Amor e vida, indiferença e morte fazem um par. A sua amizade por Lázaro é compatível com a sua descida ao túmulo – atestam-no a ausência provisória e as lágrimas.
 
9. Lázaro sai do túmulo de uma forma não representável: e nele as marcas; sai mas como não entrou. A personagem preparada para assumir a fé do discípulo é Marta, que não é o protótipo do crente mas da tradição. Crer é um assentimento dado à promessa dita. Marta e Maria são duas figuras inacabadas do crer. “Se estivesses lá, meu irmão não teria morrido”, diz Marta. Marta anuncia a morte dum irmão, Maria a morte do irmão. Marta verbaliza, Maria somatiza: cai aos pés de Jesus. É então que Jesus estremece e chora. O comportamento de Jesus não se confunde com nenhuma das duas irmãs. Para Maria a morte de Lázaro é um facto de real. Mas Lázaro não foi devorado pela morte como pensa Maria: a vida está escondida na promessa. É no lugar do corpo que a palavra deverá suscitar o acreditar. Lázaro não foi prometido à imortalidade e nem o será, ao contrário do que pensa Marta.
 
10. Quando Lázaro ressuscita, que diz Jesus? “Desatai-o e deixai-o ir.” Basta que o homem seja desatado daquilo que o fecha em si mesmo para viva de Deus. Lázaro conheceu a corrupção: um pecador. A salvação é o perdão do vivo, a vida que volta a ser dada na carne que se corrompe e que a perdeu. As ataduras que o envolvem são postas para conter e ligar as carnes que se decompõem. Só aquele que é o caminho, a verdade e a vida pode dar essa ordem: “Desatai-o e deixai-o ir”.” O que nos aproxima do que Jesus diz à mulher adúltera: “via em paz e não voltes a pecar”!” Quando Jesus ressuscitar os panos que servem para esconder a decomposição da carne não terão servido de nada. Estão dobrados, ao lado.
 
11. Lázaro somos nós, mortos-vivos que vivem nos seus sonhos de criança-rei. Não estamos nós fechados num “túmulo”, numa “pedra” que obstrui a saída, atados de pés e mãos? A palavra de Jesus separa em nós o dia da noite (como o faz o Génese, com vista à criação). Nós acreditamos na morte – esse é o nosso pecado. E não acreditamos na “Vida”. A morte tem sobre nós um mau cheiro, um odor de cadáver. Para Jesus qualquer morte é já pressentimento de vida. Antes de tomar a palavra nomeia o Pai – é nele que se inscreve a lei da separação. A questão que coloca o episódio da “reanimação” de Lázaro não é que tenha ganho mais dez anos de vida ou tenha voltado do além, mas acreditar que Jesus é capaz de dar vida aos mortos.
 
12. Este é um episódio que prefigura a Páscoa. Vivo é o que mexe, morto o que se mobiliza. O movimento é a expressão da fé: viver é pôr-se em movimento, acreditar. Se a fé implica o movimento, a vida inclui a morte. “À fonte vou que vem da cruz/, vou lavar meus olhos/ de lá caminha o meu Senhor/de lá vem a Páscoa”. É para lá que vamos. Que o Espírito solte o nosso coração daquilo que nos impede de acreditar e de ver e nos volta para Deus que está em nós. Que o Espírito faça essa passagem da vida adquirida pela morte de Cristo; passagem do Amor de Deus derramado nos nossos corações. Que a ressurreição da carne de  Cristo nos solte das ataduras e do lençol em que o nosso corpo corrompido pelo pecado se esconde. Porque só a ressurreição diz bem alto o perdão de Deus que se dá sem condição “à vida e à morte” como nós dizíamos quando éramos crianças quando selávamos uma aliança com um amigo.

José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.