... o álcool apenas o adormecia, o tabaco o enfastiava; as drogas - além de lhe repugnarem numa sensação gordurosa - só o abatiam, sem o fazerem vibrar, nem sonhar, nem esvair...
O seu álcool, em verdade, era-se ele próprio - e o seu éter, a sua cocaína...
Mário de Sá-Carneiro, «Céu em Fogo»



(O LADO HORRÍVEL DO BELO)

Quem se dispõe a recolher elementos que permitam formar uma opinião sobre as peculiaridades de comportamento, ter a compreensão da vida psíquica, chegar ao esboço do retrato de um artista, pode deparar com inúmeros constrangimentos, perder-se num labirinto de contradições, sofrer até perturbações emocionais que dão sinal de si em gestos despropositados ou mesmo em distúrbios fisiológicos.

Numa ingénua disponibilidade com que em princípio se admite tudo o que outros fazem, são, ou lhes acontece, desde que à distância respeitável da História e da mitificação, por fim os factos tomam-se bastante próximos para os entendermos como dizendo-nos respeito directamente. Invade-nos uma trama de sentimentos que a fria lucidez nem sempre controla, julgamo-nos responsáveis por uma imagem que resulta mais da selecção operada pela sensibilidade do que da compilação objectiva de todas as informações disponíveis sobre o autor. Cria-se uma nova realidade com documentos do domínio público e testemunhos dos que antes reflectiram sobre eles. Essa nova realidade nem sempre nos agrada. Não por receio de a julgarmos errónea ou fantasista, uma vez que esses problemas são mais próprios do cientista que de um operador de estética, mas porque uma realidade infeliz e algo movediça é sempre difícil de assimilar. Digamos que causa incómodo.

Numa certa descentração da realidade, lemos o que os biógrafos escreveram. Tomamos por exagero a sensatez, por romance o que se não adapta ao quadro da nossa experiência, por crueldade o que não passa de verificação fria de um facto, por destempero o que resulta da legítima reacção emocional, num cepticismo próprio de quem sabe mas não conhece. O objecto de análise está fora de alcance ainda; protegido pelo nosso desconhecimento, permanece na zona mítica para onde remetemos aqueles cuja obra admiramos sem deles nos termos nunca aproximado o suficiente. E nem sempre ligamos à terra as obras, como se fossem fruto apenas do espírito, elas mesmas espíritos mais ou menos espirituosos.

Mas a realidade impõe-se gradualmente ou irrompe numa chicotada, a profanação lança na consciência as sementes de um saber confuso. Um artista, por mais alto que suba, reduz-se a proporções humanas; por mais longe que projecte o voo, carece de asas; por maior beleza que a obra atinja, nasce do que é feio; por experiente que pareça, é infantil; por muito à distância que se situe, fica ao alcance de julgamento.

Repostos os factos no lugar que lhes compete, perguntamos se vale a pena ir do ouro à pobre matéria originária. Num percurso inverso ao da transmutação. Achamos que sim. Achamos que maior mérito tem o ouro quando remata uma grande obra do que quando é motor de um processo de declínio. Outros o terão tido sem esforço nem martírio, e esse a nossos olhos perde valor. Neste caso, o de Mário de Sá-Carneiro, até atingir o metal precioso houve a inevitável série de fases negras que sempre o precedem.

Eis um paradoxo: Sá-Carneiro nasceu num berço de ouro, durante quase toda a vida foi menino rico, generoso e perdulário. A sua obra, porém, começa prosaicamente numa manjedoura de que só as palhinhas evocam os raios de sol. Na novelística estreia-se com «Princípio», seguindo-se «A Confissão de Lúcio» e «Céu em Fogo». São textos que denunciam a juvenilidade de quem escreve, quer de um ponto de vista intelectual quer propriamente literário. O estilo rebuscado, pesado de artifícios dramáticos, recamado de joalharias, materiais e metafísicas, está longe ainda do ouro alquímico da poesia:

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos de alquimia?

No entanto, Sá-Carneiro considera-se sobretudo um novelista. Os versos que desde a infância escreve não lhe merecem grande atenção. Só a partir de 1912, em Paris, se descobre poeta a sério, só então a poesia lhe surge de dentro numa grande revelação. Entre «Princípio» e «Indícios de Ouro», estabelece-se um percurso literário e humano de martírios; alcança a imortalidade da obra, mas o autor põe-lhe ponto final com o suicídio.

Por discrição, talvez, nunca ninguém analisou, que eu saiba, algumas implicações contidas na carta que José Araújo endereça a Fernando Pessoa, a seguir à morte de Sá-Carneiro, no Hotel de Nice. Publicada por Maria Aliete Galhoz, que a considera dos mais graves documentos sobre o poeta, é por ela que damos início ao estudo biográfico e literário deste homem do «Orpheu»:

Paris, 10 de Maio de 1916

Ex.mo Senhor Pessoa:

Recebi hoje sua carta, desculpe não lhe ter respondido como dizia no meu cartão, mas o Carlos Ferreira ficou de me dar o seu endereço, e como se tinha esquecido, ainda hoje estou esperando o mesmo. Já aqui tinha uma carta preparada para o meu amigo, carta que inutilizei pois preciso de ser um pouco mais extenso.

Vou pois contar-lhe minuciosamente (?) o triste fim do nosso pobre Sá-Carneiro; mas antes vou dizer-lhe em duas palavras como o conheci e como em tão pouco tempo, eu tive um dos meus melhores amigos, e com certeza o mais íntimo. Conheci-o há uns seis meses apresentado por Carlos Ferreira num dos restaurantes do Faubourg e desde esse dia, eu tive um bom amigo e vice-versa, não sei explicar-lhe como se deu este caso bem extraordinário de mais que eu não sendo um escritor nem poeta, mas pertencendo ao comércio, cousa bem material; não sei; um mês depois não se passava um dia sem que nós estivéssemos conversando em qualquer café, horas e horas, por aqui já o meu amigo deve calcular quanto desgosto tive com a sua morte, e como ele e mais ninguém me compreendia. Desculpe-me e a esta mal alinhavada carta mas sou nervoso, portanto não se admire de alguma falta. Foi no mês de Março pouco mais ou menos que Sá-Carneiro teve a infelicidade de encontrar num dos cafés de Montmartre uma rapariga por quem teve grande interesse, digo interesse porque ainda hoje não sei se era amor, simpatia, ou ódio, não sei; desde então Sá-Carneiro mudou bastante, vinha aqui ao escritório sempre apressado, havia mesmo semanas que só vinha aqui três vezes, e mais nada. Assim, chegava aqui e dizia-me: Araújo preciso falar-lhe venha comigo a um café; saíamos e então ele coitado, contava-me o que se passava: que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher; um mistério, um horror, e por aqui fora muito nervoso, e contava-me o que se tinha passado (antes tenho que lhe dizer que ele tomava estricnina em grande dose). Muitas vezes eu perguntava-lhe se ele realmente gostava dessa mulher, a sua resposta invariável era: Não gosto dessa mulher, juro-lhe que não gosto dessa mulher. Calcule o meu amigo o que eu podia fazer nesta situação:
Um dia, 26 entrou ele no meu escritório como costumava, depois de falarmos uns momentos disse-me - Araújo preciso que você vá hoje a minha casa ás 8 h, em ponto, sem falta. Assim fiz, quando entrei no quarto, notei que ele estava deitado, muito naturalmente perguntei se lhe doía a cabeça; foi então que ele disse - acabei agora de tomar cinco frascos de arseniato de estricnina, peço-Ihe que fique - corri logo abaixo a buscar um copo de leite, ao mesmo tempo dizia ao criado para subir com o mesmo, enquanto eu ia ao comissariado procurar um médico e ao mesmo tempo um automóvel para o conduzir a um hospital, tudo isto tinha sido feito rapidamente, quando subi com os dois agentes para o transportar ao automóvel, foi então que presenciei a cousa mais horrível que se pode imaginar. Sá-Carneiro agonizava, congestionado numa ânsia horrível, todo contorcido, as mãos enclavinhadas, momentos depois expirava; nada havia que o salvasse, eram 8 horas e 20 minutos, depois foi o quarto fechado por ordem dos agentes e eu fui ao comissariado prestar esclarecimentos. Às 11 horas entrámos novamente no quarto, o comissário dois agentes e eu. Sobre a mesa bem à vista estava uma carta para mim, mais atrás nova carta para o Pai, outra para o men amigo, e mais duas, uma para a tal rapariga, outra para Carlos Ferreira. Sobre o fogão uma folha de papel na qual escrito a lápis e em francês estava o seguinte. Declaro que mato voluntariamente peço p: assim (mim?) o cumulado (?), e para dar a cigarreira ao meu amigo Araújo como recordação, havia também espalhados sobre a mesa 5 frascos vazios de arseniato de estricnina, comprados em diversas farmácias. A rigidez cadavérica foi logo, momentos, digo uns 3/4 horas depois, estava vestido, penteado; horrível, os olhos muito fora das órbitas, a boca aberta, as mãos fechadas sobre o ventre, as pernas um pouco abertas, logo depois da morte tomou uma cor esverdeada que se acentuou pouco a pouco. Depois de revistado por um policia só foram encontradas duas moedas de 10 cêntimos no bolso do colete. Depois de todas estas coisas a que tive a coragem de assistir, foi a porta novamente fechada. No comisariado tomei a responsabilidade sobre o enterro pois o pobre amigo como sabe só aqui tinha eu e Carlos Ferreira como mais fntimos. Fui a casa de Carlos Ferreira e dei-lhe conta do sucedido eram meja-noite ou 1 hora não me recordo.

Só no dia 28 às 8 h. é que foi metido num caixão e isto por grandes reclamações, de contrário ainda estaria no dia 29 em cima da cama. Quando entrei no quarto recuei apavorado, durante a noite o cadáver inchara duma maneira tal que todo o fato tinha rebentado, da boca, do nariz, olhos, ouvidos saía um sangue preto e junto a tudo isto um cheiro insuportável de decomposição. Mandei entrar os homens que traziam o caixão mas não servia era pequeno, note o meu amigo que ninguém se tinha enganado, mas ninguém contara que aumentaria tanto, veio pois um outro caixão (o maior que havia) mesmo assim ainda custou, antes tinha pedido à dona do hotel para me dar um lençol que serviria de mortalha, assim fez. Com grande trabalho foi colocado no caixão, não imagina o meu amigo, estava completamente negro cheio de sangue assim foi envolto na mortalha aparafusado o caixão, foram-lhe passadas umas correias, com receio que rebentasse durante a noite.

No outro dia (29) foi o enterro, modesto, mas decente, não se disse nada, pois não o podíamos mesmo fazer; e assim foi enterrado no cemitério de Pantin, assisti a tudo e só depois de a última pá de terra cair é que me vim embora. Tenho a dizer-lhe que está em coval separado que aluguei por cinco anos. Aqui findo a minha triste narrativa e peço mais uma vez me perdoe a maneira como está feita.

Todos os papéis que encontrei e cartas, tudo está fechado numa mala, o mesmo também com fatos e roupas brancas, chapéus, escovas, tudo inclusive os mais insignificantes objectos (1).

Sobre o que o meu amigo pede os papéis não os posso mandar já pela seguinte razão, Sá-Carneiro devia ao hotel uma conta de 200 e tal francos, de maneira que como eu não posso pagar essa quantia espero que qualquer parente me envie essa importância, mesmo porque eu não disponho aqui de muito dinheiro.

Junto lhe envio diversos papéis e uma carta que ele me deixou espero que me possa dizer alguma coisa sobre este assunto.

Pedindo-lhe mais uma vez desculpa de minha mal acabada carta. Creia-me seu amigo muito obrigado

JOSÉ ARAÚJO

P. S. Não foi encontrado um sobretudo novo, um par de botas também novo e o relógio. Julgam que foram vendidos por ele. Não fui ao cônsul pedir dinheiro nenhum.


Meu caro Senhor e amigo:

Junto-lhe aqui mais uma folha pois preciso dizer-lhe mais umas cousas. Tenho indagado por diversos lados como é que Sá-Carneiro se dava com a tal rapariga, dela tenho as piores informações, ela tinha sobre o nosso pobre amigo uma grande influência. Já ouvi mesmo dizer que ela lhe fazia barbaridades, entre outras a de o obrigar a tomar éter.

Sá-Carneiro gastava com ela quantias enormes em dois meses 3 500 francos e tem ainda aqui umas pequenas dívidas que eu não pude pagar pois como lhe disse na minha carta não disponho dessa quantia.
Vou hoje enviar ao pai uma carta dele que ainda aqui tenho, mas não lhe mando nenhuma conta pois não seria talvez muito correcto. Aqui lhe envio todos os papéis e peço-lhe o favor de me dizer o que poderei fazer, pois as próprias despesas que paguei foi um rapaz amigo que me emprestou esse dinheiro.

Pela carta que o Sá-Carneiro me deixou a mim verá que paguei uns 50 francos à tal rapariga conforme recibo.

Se o pai quiser trasladá-lo para Lx. alguns desses papéis serão precisos aqui visto que a sepultura está em meu nome assim como o registo, etc. Será necessário que eu passe uma procuração ou qualquer cousa parecida.

Como não conheço ninguém de família é favor dizer o que devo fazer. Mais uma vez obrigado e seu muito amigo José Araújo.

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NOTAS

(1) Mais tarde, tendo recuperado a mala, o pai do poeta declarou não haver nela mais do que roupa traçada. Veja João G. Simões, «O mistério da poesia», e Dieter Woll. João Pinto de Figueiredo aventa a hipótese de o próprio José Araújo ter ficado com os papéis, ao contrário do que afirma na carta. O que importa, entretanto, é que o espólio de Sá-Carneiro desapareceu. Dele faziam parte as cartas de Fernando Pessoa.