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ROMILDO SANT'ANNA
É Tudo Verdade
a Carmen e Galib Jorge Tannuri
 

A diferença do historiador e o cronista é que, enquanto aquele faz o possível pra contar a história no traço dos fatos, este cozinha os fatos no pulsar das emoções. Previno: não é o que se verá neste escrito, que se pretendia uma crônica, pois, rigorosamente, é tudo verdade. Há pouco assistimos aos horários políticos da televisão. Na propaganda dos que se lançaram à escolha de prefeito, os cenários límpidos, palavras medidas e um halo de épico lirismo a imputar-lhes a clave de sol imaculada, em proximidade com o divino. Na vez dos vereadores, o embaralhado opaco de aparições mau-costuradas, um palavrório estourado tingindo a cortina tosca de comédia. Desde modo, perpetua-se a idéia do alcaide como o patriarca que ordena; ele é a estrela e a guia, no mandamento dos velhos pergaminhos. Quanta injustiça aos vereadores! Como testemunham histórias recentes, formam egrégias cortes de abnegados, arautos impolutos do decoro, atentos defensores do interesse coletivo. Enfim, a casta que faz ouvir do povo heróico, o brado retumbante da dignidade e da fé. Ou não?

Luís Carlos Mendonça, o Caluta, meu conhecido, tem mania de colecionar, colados em cadernos, “santinhos” de postulantes a vereador. E os separa por períodos eleitorais, regiões e cidades. Apresentou-me surrada brochura onde se estampam infindáveis fotos, frases e nomes de candidatos. Chamo atenção a que tais pretendentes legislativos não habitam cantões e grotões de Bruzundangas, tampouco os arredores de Macondo, mas uma influente estância a Sudeste do país. Ao findar crônica, presumo, alguns leitores poderão alevantar-me a espada da reprovação. E argumentar que, na interessante coleção, esboça-se o legítimo e libertário painel de nosso povo. Mesmo penitenciado, o cronista se pergunta: que cidadãos nos representam? Eis um dos cadernos de Caluta, folheado a esmo, à vera e crua nomeação de candidatos.

Uns atendem por simplórios apelidos ao patriótico chamamento à política. É o Marreta, o Vena, o Batata, o Tetão, Ditinho Muleta, Bidu, Zé Veneno, Bolachinha, Geladeira, Tião Rumbudo, Bacana, Teia, Bigonga, o Peludo, Barriga, Ferrinho, Boca, João Foguinho, P20, Breguedé, Moleza, o Jesus Butina, Ciborgue, Bico Doce e Tiririca. Outros se identificam por predicados zoológicos. É Zé Gatão, Minhoca, Fernando do Boi, Fera, Tatu, Pirainha, Maritaca, Pitu, João Bizorro, Canário, Zé Calango e Fiote. E, numa chapa com Rato – o pleiteante ao cargo executivo –, Porquinho, Cartucheira, Piriá e Ratinho. Muitos se mostram por alusões a lugares e etnias: João do Mangue, Mineiro, Zé do Japão, Damião Baiano, Espanhol, Escurinho, Índio, Iraque, Turcão, Paraíba, Chino, Mato Grosso, Negreto e Alemão.

Certos candidatos, realçando o apanágio do trabalho, se localizam no nicho de seus afazeres. É o Vado Barbeiro, a Sheila do Posto, Tonho do Gás, o João do Correio, Claudião do Limão, Cidinha do Lanche, Preto Enfermeiro, Demazinho Eletricista, Carneiro da Santa Casa, Mário do Açougue, Cinomar da Farmácia, Beto Tropeiro, Silvana do Sindicato, Jorge Bilheteiro, Paulo da Água, Milton Retratista, João Bucheiro, Xuxa Moto Táxi, Pedro Carrinheiro, Malvina da Dengue, Mané Peixeiro e Pimpão que, na galhofa de si e da política, afirma-se um palhaço de verdade. Há os que se agregam ao cônjuge ou em nome do pai, e se pretendem em dinastias e linhagens: É a Neuza do Zé do Bucho, o Cidinho do Doriquinho, a Tereza do Zé Preto, a Hilda do Octacílio, o Walter do Zé Branco, a Rose do Daniel, a Leda, filha do Chiquinho Corinthiano, e o Guedo, filho varão de Pereba, e que se almeja imitando o avô, Tião Medonho: “ganhar e lutar sempre pelos direitos do povo”. Eis o estandarte do tempo – a crônica –, nas figurinhas da história. Adeus.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.