TRANSBRASILIANAS

Muitos artistas, no estradão da história, penetraram naquela parte do coração onde pulsa o “jeitinho” e a malandragem brasileira. Refiro-me ao órgão pulsante do peito porque, o mais pobre dos leigos, não vejo a origem desse comportamento num dos hemisférios da cachola, a emitir ondas cerebrais que misturam as tintas dessa identidade tão banal. Se há um substrato étnico da malandragem, livre-se desde já o brasileiro ancestral, em respeito à profecia de Vaz de Caminha: o indígena é inocente. Mas, se até índio, hoje em dia, tem caído em comedidas malandragens, cabe a indagação: 𠇍iga-me com quem andaste?”. E a resposta vem de chofre: portugas e afro-brasileiros. Malandragem e “jeitinho” coexistiam no além-mar de Bocage e Gil Vicente, e por aqui reverberaram no quintal de Zeca Pagodinho, compartilhado, entre outros convivas, por Noel Rosa, Gregório de Matos, Lima Barreto e Manuel Antônio de Almeida. Antônio Cândido foi fundo na “Dialética da Malandragem”, metendo-se na vida de Leonardo Pataca, o filho; Sérgio Buarque de Hollanda anteviu na densa mixórdia passional uma pitada de catolicismo brasileiro, de fato mesclado de fervores e almas africanas, tudo arrematado por dois Robertos: o Gomes, em “Crítica da Razão Tupiniquim”, e o DaMatta em “Carnavais, Malandros e Heróis”.

O desenhista Jimmy Scott, que é chileno, com nome gringo, e brasileiro pra chuchu, produziu instigante ilustração para o livro “O que faz o Brasil, Brasil?” de DaMatta. Vê-se um carro parado ao lado de uma placa de estacionamento proibido. Na situação, um majestoso triângulo humano, ocasionalmente afro-descendente: o guarda de trânsito vai aplicar a multa, mas o chofer, indignado, aponta a barriga gestante de sua mulher. Diante de tão perturbadora e implícita alegação, o bom policial, apurado, confabula com a caneta enfiada na boca, a matutar: “É proibido, claro, mas a madama está grávida! Que é que eu faço, Deus meu?”.

Há um impasse que une o mundo dos alguéns fidalgos ao mundo dos alguéns que são ninguéns. Ele se resolve no aclamado “jeitinho”. A malandragem impõe à ética nacional um imbróglio entre o cumprimento da lei, a situação em que ela se aplica e as pessoas nela implicadas, com vantagem aos alguéns fidalgos. Mas o mesmo pode acontecer, na dimensão reles dos mortais. Ilustremos com dois exemplos na rodovia Transbrasiliana, ambos operados com a interferência misteriosa do Além. O amigo vinha à toda e foi brecado pelo guarda que pediu os documentos. No sufoco da procura – diz a sabedoria popular –, o aconselhável é rogar a S. Longuinho (que pouca gente sabe quem foi), ou ir logo pras cabeças, e rezar “Salve Rainha” até o “mostrai-nos”. E, nessa receita infalível, lá foi o camarada vasculhando bolsos e porta-luvas, e declamando pra si, rápido e atrapalhado: “Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei! E depois deste desterro, mostrai-nos.” A intervenção se lhe mostrou evidente. Misturada na bolsa, uma Carteira Nacional de Habilitação novinha em folha, não a sua, mas a do cunhado que, convenhamos, não é a mesma coisa, mas quase. Foi um vale de lágrimas e lamúrias. No fim, o militar complacente o perdoou.

Outro amigo, no leito da Transbrasiliana, ia a 130, e o vigilante rodoviário o pegou. Instaurou-se uma situação pra lá de horrível, apreensão do veículo, não sei quantos pontos na carteira, e ida em algemas e viaturas à delegacia mais próxima. O amigo, que é versado em línguas clássicas, sacou do bolso um rosário e, de costas para o guarda, recitou alto, em latim desesperado: “Salve Regina, Mater misericordiae, vita, dulcedo et spes nostra, salve... A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas...” A autoridade pressentiu que o infrator falava no idioma do Senhor, invocava diretamente a Redentora e, nas entrelinhas, perguntava, humilde, ao intrépido homem da lei: “Por acaso cê sabe com quem está falando?” O soldado, perplexo, ficou a perguntar-se: “Se eu multo, na certa contrario uma querência da Compadecida, e de seu Filho altíssimo, e de todos os santos do além”. Na dúvida, dobrou cuidadosamente a papelada e as devolveu, com votos de boa viagem e recomendações, ainda que terrenas, de muito cuidado na esburacada estrada dessa vida. Outra vez, ninguém fomos multados, nem xingados, ou vimos o sol nascer quadrado. Tudo na paz do Senhor, na concórdia dos homens de bom coração, e graças à intercessão da Virgem sempre aparecida em boa hora. Tudo na legitimidade bem brasileira de maravilhosos e retumbantes axés, saravás e carnavais! Amém.
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Romildo Sant’Anna, escritor, recebeu o prêmio Casa das Américas – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto – SP - Brasil.

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