“Só”, só duas letrinhas: um ruído sibilante e uma vogal aberta. Pode ser adjetivo, advérbio e substantivo, ou exprimir exclamação, quando a moçada se harmoniza em concordância: “Só, bicho, só!”. Há certo tom de gravidade existencial e filosofia, certa infusão perturbadora nessa expressão, cê não acha? O “só”, mesmo que negando alguma coisa, é sempre afirmativo, lacônico, arrebatador, esgota-se em si mesmo. Em certas situações, é o dizer não dizendo, numa espécie de contorcionismo verbal. Diz a mocinha seduzida e ingênua ao conquistador velhaco: “Cê casa comigo?” Ao que ele responde: “Só!”.

Parece que, na espessura significativa do irrisório vocábulo, há um lastro de restrição, de desamparo, ironia, solidão e desajuda. É o camarada “sozinho”; é sicrano “apenas”; é o Zé-ninguém “isolado”; é fulano “em desamparo”; é o companheiro “único”; é o beltrano “somente”; é o presidiário “solitário e indefeso”. Tal palavra agrega-se a outras, gerando a idéia de alguém em êxtase místico, como numa romaria de Renato Teixeira: “é de sonho e de pó / o destino de um só”. Às vezes o “só” se pluraliza para restringir a dois a sozinhez: “falar a sós”. Outras vezes, pluralizando-se, atravessa na consciência de quem fala e ouve um ar indefinido de dor e deserção: “ele habita a sós no seu mundo”. Existe tragédia maior? Há ocasiões ainda em que o “só” funciona em noções comparativas, tão depressivas que a pessoa comparada reflete em si mesma: “ela é linda que só ela”. E assim, por demais graciosa e delicada, ficou só, como uma flor que ninguém viu, e murchou.

Diz a galera que um gol é “só alegria”. E, sendo só uma coisa, e por causa disto não podendo ser outra, torna a existência enfadonha, repetitiva. Gol, ou qualquer gozo, que é “só alegria”, traz a sensação de quero mais, de fome não-saciada, repetidamente. Com o passar do tempo, deixa na gente “só tristeza” e melancolia, como dizem os versos de “Chega de Saudade” de Tom e Vinícius. A agonia de ficar “só” é mesmo a sina dos amores mais contentes. O “só” é o “demais” mentiroso, superlativo irônico da alegria ou da tristeza: “ele ganha só um milhão por mês!” que, entre nós, coloca o milionário nos muros de si mesmo, na competição consigo de ganhar mais. Antônio Nobre, poeta simbolista português, definhou na construção de seu único livro: “Só”. Fez para si uma imaginária e narcisista Torre de Anto (talvez o mergulho sem volta ao interior de seu próprio livro) e lá, “só”, no encantamento patético de suas palavras, vivenciou a morte até morrer.

Isto posto, requisita-se que o “só” deve ser banido do dicionário de virtudes. Carrega sensação de tragédia, tem parentesco com a morte, que é o “só” mais solitário e deprimente de todos. Tempos atrás cumpriu-se o julgamento de Ubiratan Guimarães, comandante da invasão ao Carandiru, e do massacre aos 111 detentos. Apresentando-se em juízo, afirmou o coronel que “se minha intenção fosse matar, teriam morrido os outros 2.000 do pavilhão 9, e não só (sic) os 111”. Atenção ao que só transparece: a pretensão de defesa tem ares de confissão de culpa. Um “só” que congrega sentimento de rejeição e desprezo àqueles que, nalguns casos, tinham “só” Deus, e os outros miseráveis detentos, em solidária testemunha.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto –SP - Brasil

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