ROMILDO
SANT'ANNA

Sertão na Cidade

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Houve o tempo que o país decidiu viajar pra uma cidade. A fazendeirada veio vindo, desacorçoada com a nova era dos pretos livres. Ademais, raleava a fartura do algodão, da cana, do ouro e o café com leite. Ser da roça era tosco, descabelado pelos ventos do além-mar. A caboclada quis ver o mundo por cima, arranhando céus, na eletricidade de imigrantes chispando sorridentes com roupas de domingo, bondes-coriscos da belle époque. O romantismo de campos e lavouras peitou a aspereza do estrangeiro que também viera. Moldou carcamanos, galegos e a turcaiada à elegância dos que cresceram na lida com a terra e tiveram no compadrismo o mourão da esperança. Na matula em pó dos que chegaram da roça só restou o nó da perda e saudade, sopro ancestral de pertencimento ao chão. Era o timbre solene de ser tão honesto e delicado, sacramentado em singelos cantares e nostálgicas canções. Urbanizado, nosso Catulo consagrou a paixão de seu tempo, no hino aos que viemos: “Oh, que saudade do luar da minha terra / lá na serra branquejando folhas secas pelo chão. / Esse luar, cá da cidade tão escuro não tem aquela saudade do luar do meu sertão” (1913).

Na cidade, os menestréis cantavam em tenor, como na missa. No padecer sonhado, tão sertão no coração, Sílvio Caldas era um caboclinho querido. Francisco Alves, Chico Viola no afeto, chorava a saudade brejeira, sumo da terra: “Cabocla é o Brasil bem brasileiro / Brasil verde, hospitaleiro / que descubro em você” (Ary e Burle,1933). Em arrabaldes batucavam tímidos Mano Décio e Paulinho, também linhagens da viola. Como aroeiras fincadas à beira do banhado, Sá Pereira e Ari Pavão clamavam à moça que mudou pra longe: “Deixa a cidade, formosa morena / linda pequena e volta ao sertão / beber a água da fonte que canta / e que levanta do meio do chão...” (1925). Talvez à donzela da mesma travessia, Joubert e Formenti imploraram: “Maringá, Maringá, / volta aqui pro meu sertão, / pra de novo o coração / de um caboclo assussegá!” (1931).

Retratando a solidão cabocla, Lamartine e Ary escreveram: “No rancho fundo / bem pra lá do fim do mundo / onde a dor e a saudade / contam coisas da cidade...” (1931). Encarnando o matuto arredio diante da amada seduzida pelo transitório das calçadas, Leonel e Cascata compuseram: “Cabocla, não lhe dou meu coração / você hoje me quer muito / amanhã não quer mais não!” (1936). E René Bittencourt era só enlevo de um amante a sonhar: “Sertaneja, se eu pudesse, se papai do céu me desse o espaço pra voar, / eu corria a natureza, acabava com a tristeza só pra não te ver chorar”. (1939).

Há o mês tradicional de festas. Ano a ano, nos barrancos dos subúrbios também reaparecem as flores de São João. E sua chama alaranjada acende um banzo, uma saudade, desejo irresistível de voar dali: “Quando eu era pequenino de pé no chão / eu cortava papel fino pra fazer balão” (Lamartine, 1933). Com semelhante querência, Braguinha e Ribeiro poetizaram: “E o balão vai subindo, vem caindo a garoa / o céu é tão lindo e a noite é tão boa. / São João, São João, acende a fogueira no meu coração!” (1933). Em asas da imaginação, outro caboclo se recorda: “Foi numa noite de São João, junto à fogueira, / que eu conheci a cabocla mais bela do sertão. / Seus olhos negros me olhavam de tal maneira / que não mais teve sossego o meu pobre coração!” (Leonel e Cascata, 1936). Em Vila Izabel, outro Rosa lamentou num último desejo: “Nosso amor, que eu não esqueço e que teve seu começo numa festa de São João, / morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar e sem violão...” (1937). Nos anos 40, quando mais cruelmente se fez debandada ao asfalto, Capiba se despejaria em romantismo: “Maria Betânia, te lembras ainda daquele São João? / As minhas palavras caíram bem dentro do teu coração! / Tu me olhavas com emoção / e, sem querer, pus minha mão em tua mão”.

São vozes donde ressoam raízes de uma nação predestinada. Revivem folhas de diários plangentes que se desfazem, como reclames colados nos muros. Melancolicamente urbanos, derretendo em bocas-de-lobo. Cidade a sós, comandada por vozes vorazes e frívolas. Nação baldia, distante e à pequena distância de canções e poesia, ajoelhada ao evangelho de estranhos capitais. Multidões do êxodo, destituídas de ser tão em si. Eia, trem da vida vai Brasil, solavanco itinerante, longe-perto do sertão!

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.