ROMILDO
SANT'ANNA

 

Crônica de Parafusos

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A palavra-parafuso tem origem obscura, não se sabe donde veio, se do grego, aramaico ou do latim. A coisa-parafuso existe pra andar à roda de si, na procura do profundo, descendentemente, tal como o tempo pontiagudo escavando a eternidade. Metálico, o parafuso vem sulcado pela fenda funda na cabeça, estigmatizando-lhe o sinal de subtração ou de adição. Depende de quem lhe tem a chave. Viver na lua é ter o parafuso de menos, ou de mais – quem sabe? –, girante aqui na terra. Gente baratinada é que entrou em parafuso, no obscuro dos pensamentos, palavras e avinagrados vinhos da vida. Parafusos, coisas, tempos e palavras são quintessências do giro contínuo. Não se sabe onde vai dar. Como alguém, desparafusado, a escrever a crônica de parafusos.

Todo dia, toda santa hora, os humanos raciocinam, parafusam idéias por meio de palavras. Não há outro jeito de pensar, senão com palavras! Não há outro modo de existir, senão com palavras! Como se diria, se penso ou parafuso, logo existo. E, parafusando, é assim que, num enlevo, a criança põe-se a pensar sem saber que está pensando. Para o cronista, porém, atarraxado em palavras, o descobrimento de si e do mundo é que o colocou à anteporta da loucura. Loucura – confessa – donde, poucas vezes, conseguiu sair. Infante, em estado de sílaba dispersa, mas sentindo-se existir, ficou pra sempre aluado, a meditar sobre coisas pífias: grilos, formigas... Parafusos. Foi quando – faz questão de acrescentar –, tempo inteiro pôs-se a girar e girar na profusão dos conceitos, conjeturando significados, entrado que se sentia na rota de gentes velhas do velho mundo, irremediavelmente entre palavras, e chaves de fendas que esmagam, e parafusos que penetram.

Perguntava-se: “Hoje, segunda-feira, segundo dia da semana... Por quê?”. Sinceramente – presume –, a segunda deveria ser primeira-feira. Até se diz, cordialmente: “bom fim de semana!”. E o camarada, depois da oficina, vai pra casa descansar. Também com o Altíssimo parece que assim se deu. Pra livrar-se da solidão descomunal de que nem Ele se isentou, fez a lida insana de criar o mundo, parafusando cada coisa em seu lugar. Após seis dias de jornada, porque ninguém é de ferro, descansou. Sucede que, sendo o Senhor o “dominus”, e tendo a prerrogativa de mandar, criou o dia de si: o louvado domingo. Ora, se até na lógica divina extensiva à humana o dia do Senhor representa o fim, como pode ser princípio? Definitivamente, a segundona brava seria a primeira-feira, cê não acha? – indaga-me. Em vã consciência, nem lhe pude responder.

Frente a frente da sua meninice, outra coisa lhe esquentava os parafusos: “Os nomes que dão aos meses, que absurdo!” Alguém lhe ensinara que novembro, que lembra nove, é o mês onze; dezembro, que lembra dez, é o mês doze; setembro, que lembra sete, é o mês nove. Não saiu da rota em parafuso até que soubesse, por meio de outras palavras, que os anos do circo romano começavam no mês de março. Júlio César alterou o calendário e, numa ajeitada, o Papa Gregório o reformou. Então, fevereiro, no passado, seria pra nós dezembro, fim de ano. E, só assim, na singela infância do cronista, novembro seria de fato nove. Cristo nasceria em 25 de fevereiro e ele, que é de outubro, receberia agrados em 28/8. Contudo, inda mais intrigado, me pergunta sem almejo de resposta: “Se resolveram mexer na contagem e ciclo dos anos, por que mantiveram aos meses antigas palavras? Foi preguiça, covardia ou frouxidão de parafuso?”. Como é claro – acrescentou –, o erro não reside em palavras, mas nas gentes que as criaram. Porém, se as inventaram para os pensamentos, e se parafusam idéias com palavras, por que usam palavras tortas pra pensamentos corretos? De qualquer forma, e só assim, setembro seria mesmo sete, porque o ano se abriria em março.

Porém – volta a me questionar –, se nos tempos do velho Império o calendário começava em março e, ademais, se abril significava “abrir”, por que março não teve o nome de abril? Por que ele, em substância, em vez da medonha guerra homenageando Marte, não herdou o viço calmo, exuberante e chuvoso dum abril? Nesse ponto, desvanecido, se lhe perdeu a rosca. Girou fundo, disperso, como rolha banhada em vinho, flutuando no obscuro da botija. Tive receios de lhe pôr à crônica o ponto final. E, deixando-o no murmúrio de palavras e de coisas, dei-lhe o Vallium. Adormecemos.

 
 
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Romildo Sant'Anna, escritor, livre-docente, é autor do livro “Liberdade é Azul – Crônicas da Vida, da Morte e da Arte” (2003).