FORMIGAS

Já reportei a estridência dos grilos, e seria injusto fazer silêncio à loucura das formigas e seu livro de lições. Enquanto azucrinam desmesurados e são percebidos pelos gritos insistentes, exércitos de formigas, quase sempre à surdina, vão corroendo invisíveis os subterrâneos do mundo. Sem que as percebamos, e pelas caladas obscuras, minam o por debaixo de nossos pés, no concerto sinistro de uma sina.

Na mostra de história natural, o reality show das formigas. Numa caixa com terra, cortada por um vidro transparente, viam-se o movimento organizado em sociedade e a industriosa colônia matriarcal do formigueiro. Uma lupa permitia ampliá-las. Pareciam tratores eriçados de espinhos e antenas que se dobram ao meio, faróis negros e baços pela cara, partes bucais insinuantes, e mandíbulas ameaçadoras. O corpo, arquitetura de tórax e abdome, liga-se à cabeçorra por conduto igualmente envernizado. Saíam-lhes as lanças em riste, e a locomoção das patas esqueléticas, em relampejos de pressa. Vinham pelotões obstinados, em distúrbio emocional, e davam mostras de se comunicar pelo contato, pelo cheiro, ou a neura de algum signo. Do outro lado da lente, parece que futricavam entre si, descrentes de nós e do mundo cá fora, descrevendo-nos patéticos, arredios, refletidamente bestas.

O instrutor, não sei por que razão moral, ou mentalidade política, ensinou que as formigas vivem numa sociedade perfeita, ideal em organização, disciplina e competência. Na maioria das espécies, as fêmeas são estéreis; só uma procria, para, em identidade com os humanos, ser rainha da colônia. As demais, divididas em castas obreiras (outro atributo copiado de gente), trabalham desesperadas nas predações agrárias, domiciliares e caçadas carnívoras, e coletas de bens e alimentos. Legionárias operárias, escavam a terra, constroem galerias, atulham depósitos, cuidam mal-e-mal das larvas e pupas, e adulam a soberana, lambendo-lhe o ventre, e enchendo-lhe a pança de comida. Esta, uma tataravó bizarra e torpe, calada e repleta, e num ninho de cheiro ácido, passa horas de eternidade pondo ovos e ovos, de formigas meninas e meninos, adestrados pra viver como formigas, em desalmados e intumescidos túneis. Os machos adultos têm asas de libertação mas, na compulsão ritual do formigueiro, vagam pelas encostas de veias e valas sombrias, e vivem pra morrer na celebração de um dia chuvoso lá fora, colorido e cantarolante de pardais e cigarras, no vôo funesto de acasalamento. Ironia: aos machos, fecundar a vida é um implacável corredor da morte.

A fábula de La Fontaine educa-nos pra que sigamos de acordo com estranhas normas. Reis ladinos e operários submissos, eis a receita do sistema: de um lado, a servidão e pobreza; de outro, a tirania, o apego aos bens materiais, egoísmo e avareza, como se a vida se consumasse num teatro de uns poucos ricos, acalentados pela imensidão servil. Na fábula, o canto libertário e criativo, os prazeres do mundo, o livre-arbítrio pertencem às cigarras, vilãs tripudiadas da história.

Há uma variedade enorme de espécies de formigas, de doidas lava-pés às tanajuras. Nas “Viagens à Província de São Paulo”, Saint-Hilaire constatou: “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúda acaba com o Brasil”. Virou ditado, e foi esse o brado de Macunaíma. O próprio Mário de Andrade arremedou: “pouca saúde e muita saúva, / os males do Brasil são”. Com infinitas variações como “ou o Brasil acaba com a ladroagem (a falta de ética, a degradação moral, as jurisprudências prepotentes do poder, o salário aviltante, etc.), ou a ladroagem... acaba com o Brasil”.

Há tanta gente que se faz, como formigas de La Fontaine. Solitárias, devoram os próprios membros, na ânsia obstinada da acumulação. São senhorios das prisões de si, decerto com formigas farejando as paredes e frestas. Cegos nas trevas de seus porões, nem lhes sobra tempo pra admirar estrelas, o canto das cigarras e os lírios do campo. E morrem espichados em irônica pobreza porque, já nesse estado, de nada lhes vale o que chamaram os “bens” do mundo. Indivíduos, insetos ou não, se definem pelas escolhas que fazem. E descabelam-se no mundo, pondo-o às avessas, na falta do religare fraterno, na ansiedade de possuir, e no fetiche obsceno dos negócios. Assim, desfibrados de enlevo, desfilam a alegoria de uma procissão ultrajante, no carnaval de todo dia. Ah, e o que chamam destino! Pouco atinamos do mundo dentro do mundo – o formigueiro –, e seu livro, um bestiário de lições: “Da Vida Patética, Insólita e Discreta das Formigas”.
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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto –SP - Brasil