ROMILDO
SANT'ANNA

A Foreign Sound

Sempre almejei que Caetano estivesse a produzir, ano a ano, um disco de sua autoria e outro de outros compositores. Seria dádiva! Como intérprete, e desde os alicerces da tropicália, desenvolve refinada elaboração estética, senso etnocultural e sensibilidade para mediar e extrair o elã essencial de outros criadores. Assim se deu com o sarcástico “Cambalache”, passando pela tragédia de “Coração Materno” (encantada pela dramaturgia melódica, arranjos e regência de Rogério Duprat). É Caetano quem, valorizando o regionalismo de “Asa Branca”, restitui ao baião rasgado sua dimensão universal latente; é o que baixa o tom de “Help”, extinguindo a fugacidade pop dos Beatles para realçar a agonia de um sussurrado pedido de socorro. Atrevido, gravou até “Um Tapinha não Dói”, e nem doeu! O encontro com o violoncelista e arranjador Jaques Morelenbaum gerou gravações que reluzem da toada dos grotões a Augusto de Campos, de Gardel a Michael Jackson. As canções de “Fina Estampa” concretizam momentos culminantes do cancioneiro hispano-americano. Valorizando a face latina, presa ao primitivismo radical do continente, valoriza a substância humana em sua dimensão afetiva e mítica. Caetano Veloso, velho-novo, se distingue como o músico mundial do Brasil, e o mais hispânico do mundo.

Contudo. No encarte de “A Foreign Sound” (Som Estrangeiro, 2004) o artista escreve: “Por todo o mundo há pessoas que gostariam de achar um meio de agradecer à música popular americana por ter enriquecido e embelezado suas vidas. Muitos tentam. É o que faço aqui”. Não só assim o faz, polêmico, como contesta desafiador a atual corrente antiamericanista. Na tensão do enfrentamento e louvação, realiza um disco que almeja interpretações intimistas, e, talvez, esvaídas de consagradas interpretações. Porém, mostra-se “totalmente demais” até mesmo no vacilo. Seu disco com tantas canções memoráveis parece espalhar-se como sonoridade displicente e fundo musical. Estrangeiro sem “mátria e frátria” e lugar no mundo. Falta-lhe o que lhe sobra: a recusa à monotonia, o impacto da novidade, o relevo empolgante, desempenho e espessura cultural com que se exibe em todos os discos. Fica-lhe o tom apologético e subjetivo, expresso em opiniões do tipo “os americanos representam grande parte da alegria existente neste mundo”, lida em “Circuladô” (1992).

Ao abrir-se o disco, a versão dada a “The Carioca” resume a conjetura do todo. Insinua a anedótica visão norte-americana sobre o Brasil, expressa em filmes musicais de baixa categoria: uma nação de cucarachos pretos, servis em sorrisos, camisas listradas de marinheiro, a cantar mambos em portunhol à entrada do Copacabana Palace. E, em “ritmo tropical”, reprisa a pronúncia ridícula “quériôuca” (“you dream of a new Quériôuca”). E, desenrolando-se nesse pórtico, cantarola autores desconexos como Gershwin, Bob Dylan, Cole Porter, Jerome Kern, Paul Anka, Duke Ellington, Stevie Wonder e Kurt Cobain.

Interpreta “Smoke Gets in Your Eyes” com arranjos de metais imitando Glenn Miller. Mas – com todo o respeito –, quem poderia esquecer o piano suave e estilo aconchegante de Nat King Cole? Quem se olvidaria da técnica e improvisos de Dinah Washington? E o toque jazzístico da diva Sarah Vaughan? Sobretudo, quem ficaria impassível diante da nostalgia com fumaça nos olhos dos The Platters? Caetano tenta reinventar “Summertime”, apenas ao violão. Mas, e Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, na orquestração de Russel Garcia, em “Porgy and Bess”? E virtuosismo arrebatador de Janis Joplin, no concerto com os Big Brother & The Holding Co.? O “Nature Boy”, com acordes sincopados de guitarra, fica outra vez à sombra do “rei” Cole; “Body and Soul” é intromissão light ante Billy Holiday. E “Love Me Tender”, na impostação grave de Elvis, vira cantiga de ninar em baixo relevo, no falsete de Caetano.

Dou este mostruário e me calo. Custa-me referir assim ao artista e seu “clareamento” da música americana. Também porque a gravação de “Detached”, com arranjos decalcados em cenas de Hitchcock, é extraordinária. E, nestes dias – podes crer! –, nem Caetano iria ao fronte em desafio: “gosto de ver minha língua roçar a língua de Luiz de Cam... do Bush”. E, sobretudo, porque o prefiro enraizado, irrequieto e cantando assim brejeiro: enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu.

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.