O FOCA

A foca é animal simpático das águas salgadas, e faz festa nos aquários turísticos e sessões da tarde em geral. Dizem que é inteligente e faceira, mas nunca entendi o porquê daquela carinha de alegria: tem os membros ou barbatanas curtas e achatadas, e se locomove contorcendo o ventre. Desprovida de orelhas, a foca tem o orifício auditivo descoberto, e focinho arrebitado de lulu. Feiamente simpática, parece um desses bichos em eterna transição anatômica, meio pré-histórica, meio futurista. Esse termo, usado como substantivo dos dois gêneros, e suas derivações sexológicas de hoje em dia, designa também o/a jornalista em começo de carreira, baseado nas redações dos jornais. Nenhum dos dois mamíferos e vertebrados teriam interesse nesta crônica, não fosse “o foca” a redenção viva do jornalismo.

Tenho em geral simpatia pelo foca. Invariavelmente se incumbe das matérias mais chatas (o verdadeiro foca é sempre eclético), e é depreciado e fofocado entre os outros jornalistas. Eu mesmo fui um foca, nos idos de 68. O Antônio Higa, repórter velho de guerra, hoje no Estadão, pautou-me matéria no cadeião, com enfoque para a repressão aos detentos, naqueles tempos da ditadura. E lá fui eu, três sábados seguidos, em plenas 4 da tarde, com roupas de coroinha, ajudar na missa que o padre que um padre italiano rezava, no interior do presídio. Não me lembro se consegui alguma informação de interesse, mas voltava com um balde de correspondências que os presos me confiavam, driblando a censura da chefia. Quando os envelopes estavam abertos, e baseado no medo, lia aquelas cartas, por curiosidade irresistível. O foca é um eterno curioso, e essa é uma de suas qualidades mais fecundas.

O livro “Bluff Your Way in Journalism”, de Nigel Foster, sobre as maiores besteiras dos jornais, jornalismo e jornalistas (cito o título em inglês pra fingir que li no original; os que já foram foca têm recaídas e constantes surtos de foca!)... Como dizia, o tal livro afirma que o foca-homem sofre sempre de acne terminal, o que parece verdade e suscita anedotas. Mas, por maldade, discriminação e machismo, narra que a foca-mulher está sempre atenta contra o assédio sexual e, em muitos casos, fica frustrada quando isto não lhe acontece. Deus me livre, como esse livro é maldoso!

Uma característica agregada ao temperamento do foca é seu espírito aguçado para o blefe, arrogância e presunção. Quando atende ao telefone, é sempre curto e grosso, e transmite ares de enfado; seja lá qual for o assunto, dá sinais de entendido, um expert na matéria. No meio da conversa, manifesta profundos silêncios, como que a dissecar as segundas intenções de sua fonte. Sendo pautado para entrevistar alguém, o foca olha sua vítima com suspeitas, colocando-a na posição defensiva. Quando redige a matéria, dá ênfase e registra entre aspas os tropeços e escorregões do entrevistado. Neste ponto, há que lhe acrescentar mais um toque de personalidade: o foca é quase sempre do contra. Se, nas férias de alguém, é elevado a uma editoria, ou a uma sub-qualquer-coisa da redação, gosta de mostrar serviço: corta o texto dos outros, muda títulos, substitui palavras, faz o diabo! Exerce à todo vapor o autoritarismo ingênuo dos novatos.

O foca, mas foca mesmo, adora basear-se no glossário da comunicação social. Usa jargões jornalísticos como “hard news” e “soft news”, graduando a importância da notícia; emprega “lead”, “on”, “off”, nariz-de-cera, “pool”, barriga, “press release”, gancho e “briefing”. O foca é bandeiroso como a foca dos mares; talvez esta seja a chave para entendê-los. Mas o foca, foca mesmo, com os atributos que parecem negativos, é o que vai tornar-se o repórter que se preza, o jornalista de honra. Os demais são focas falsificados: fogem da raia, choram na rampa, se vendem por tostão furado, não têm verve no coração. O foca faz de si a base da experiência e o motor da responsabilidade, que só germinam na ação guerrilheira da juventude. Foca é o que não ganha carona para o bar, às onze e meia; é o que se atrasa para o comentário de sua gafe: auto-retrato do Jornalista, em botão. Poupa-se de ouvir a última piada: o protagonista é o tal do foca, nariz arrebitado de lulu, baseado e baseado no aquário da redação.

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Romildo Sant’Anna, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.

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