DEUS É DEUS

– Menos, professor, menos! Que título! Heresia! Agora cê quer tocar no santo nome do altíssimo, assim, no diário do sem mais nem menos? Fernando Pessoa, ele-mesmo, e pensando no natal, escreveu: “Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade nem veio nem se foi: o Erro mudou. Temos agora uma outra Eternidade, e era sempre melhor o que passou. Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. Um novo deus é só uma palavra. Não procures nem creias: tudo é oculto”. Desse modo, dando destaque em maiúsculo às palavras. E, olha, Fernando Pessoa é Fernando Pessoa!

– O Portuga é dissimulado, fingidor..., vestiu máscaras para intrometer-se em demiurgo! E antes que cê me mande descer dos tamancos, tentaria responder: é porque ele, ele-mesmo, Deus, é único. Ele-mesmo... E, na sozinhez, Deus (e não o Pessoa, ou as pessoas) basta-se! Ele é real, o solitário e confraterno em si, na perenidade e plenitude de si. E, sendo único que só ele, o predicativo de si é sua imagem refletida. Por isto, Deus é... (e emprego o único adjetivo capaz de qualificar, absolutamente, alguma coisa): Deus. Deus é Deus.

Deus é gente em estado puro, da qual somos projeção em sucessivas semelhanças; é a infinitude nos seres e coisas finitas e, por isto mesmo, se fôssemos predestinados, faríamo-nos infinitos, na essencialidade de que é feita a alma. Ele é o desconhecido evidente, o ignoto fundamental em espessura física, que revive nas ecologias, puericulturas, futebóis, bancas de revistas e astrolábios, beijos do amor e da traição, estéticas e direitos dos patrícios e plebeus, velcros e fios dentais, nos campos de lírios e marcas registradas e sociedades anônimas, e revoluções e transformações, e na compaixão e na fé, na intolerância, e nos preconceitos, e nos desejos impossíveis, tão reais como a fagulha que chamuscou a pele, ou a pedra disposta na areia, e que dilacerou o pé. Deus é o que vive para além dele, na ignorância nossa de cada dia, ao sentirmo-nos semideuses, e não pessoas. É o submitente que não subjuga, e abre-se para a existência; é o quadro pintado com todas as luzes, é o que se deixa oferecer; é o livre-arbítrio de nós outros, os visigodos e vietnamitas, descendentes de Maomé e de Buda, de Tupã e o que vive o sacerdócio de todos os pajés, de John Wayne da Macedônia, de Sancho dos jardins suspensos, da costureira Madonna, Mao Tsetung das Américas, das Marias-vão-com-as-outras, e as cheias de graça e as nem tanto, e dos Esteves enrolados em metafísica, e Georginas lavradoras, nas horas renitentes.

Deus, como a ciência, sobrevoa o mito das horas, nos quatro estágios da vida e quatro membros do corpo, nos quatro elementos e quatro pontos cardeais, nas quatro fases da lua e quatro estações do ano, e o desejo navegando nos quatro braços do cruzeiro, lido e relido nos quatrocentos evangelistas. Desenhando fios eletrônicos que se entrecruzam, numa velocidade estonteante, a ciência tem o papel de responder às questões. E, mais que respondê-las, auxilia-nos a formular novas questões. E, quanto mais as formulamos, mais ela nos põe diante de Deus. O físico Bernard D’Espagnat, ao postular a “realidade velada”, afirma que a mecânica quântica introduz a não-separabilidade entre o observador e a coisa observada. Algo assim, como diria Camões: “transforma-se o amador na cousa amada”. Na audaz intuição do físico, para além dos fenômenos existiria uma “realidade última”, diante da qual a ciência permanece muda. Suplantando o realismo matemático de Einstein (que também pressupunha a existência do Ser absoluto), afirma D’Espagnat: “de fato, Deus joga os dados”. Neste sentido, Borges indagou sobre os mistérios de um jogo de xadrez, comparando-o à existência: “Tênue rei, oblíquo bispo, encarniçada / rainha, torre direita e peão ladino / sobre o negro e o branco caminho / buscam e livram sua batalha armada. / Não sabem que a mão assinalada / do jogador governa seu destino, / não sabem que um rigor adamantino / sujeita seu alvedrio e sua jornada. / Também o jogador é prisioneiro / (a sentença é de Omar) de outro tabuleiro / de negras noites e brancos dias. / Deus move o jogador, e este a peça. / Que Deus atrás de Deus começa a trama / de pó e tempo e sonho e agonias?”.

Em nome de Deus, cometemos crimes e trairagens, e, assim, foi escrita a História Universal da Infâmia. Debite-se à nossa pequenez, e ao desatino de empregar seu santo nome em vão, como no diário fútil e destilado desta crônica. Por isto, convenhamos, é melhor nem escrevê-la. Menos, professor, heresia! Delete estas linhas e olhe, apenas olhe, o deslumbrante e misterioso campo das estrelas.

_________________________

Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto –SP - Brasil.

PORTUGAL