REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE
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ROMILDO SANT'ANNA

Apadrinhador e apadrinhados

          Padrinhos são amigos do peito escolhidos pela família nos sacramentos do batismo e do crisma. À parte os desnaturados, solidarizam-se com seus afilhados e assumem o compromisso de provê-los, material e espiritualmente, na falta dos pais. Em ampliação dos sentidos e sempre na órbita do bem, há padrinhos de casamento, de formatura e até de inaugurações, sendo esses também designados como paraninfos e patronos. Nos enlevos da vida, os padrinhos são fundamentais nos ritos de iniciação e simbolizam a incessante procura da felicidade.

Mas como o diabo sempre mete o dedo em tudo que bom e, manipulando a química das injúrias, fez surgir das trevas o apadrinhador. Com esse, a falange dos apadrinhados. Personagens desse enredo são frequentes. E comparecem em fases de degradação social, com resultados mesquinhos. Assim sucedeu quando o incestuoso e desvairado Calígula escolheu como apadrinhado seu cavalo Incitatus. Além de nomeá-lo senador romano, deu-lhe um palácio de presente.

Uns apadrinhadores são indissimuláveis e o aparelhamento do Estado se incha de barganhas espúrias e privilégios privados. Outros encenam ligeiro constrangimento e justificam seus apadrinhados (funcionais, vagabundos e “consigliere”) como fatores de governabilidade. Às vezes, num triz de lucidez, pressentem que seus pupilos encarnam corrosiva gosma na máquina estatal, são chupins instititucionais do erário e desbragados lúmpens do desgoverno. Apadrinhador e apadrinhados, de todos os modos, usufruem o patrimônio público como Cosa Nostra.

Diferentemente do padrinho benfazejo, o termo “padrinho”, no sentido de “apadrinhador”, aparece precedido do artigo “o” que o faz diferir dos outros padrinhos. Designa a forma medonha e detestável de “il padrino” ou “the godfather”: o chefe da máfia. Nessa organização tudo é “coisa nossa” (contanto que fique ao chefão a maior fatia). Assim, apadrinhador e apadrinhados instituem o sistema mafioso como tantos que se armam, rosnam, vilipendiam e saqueiam as conchinchinas do planeta.

O termo “máfia”, na dialética do apadrinhador e apadrinhados, deriva do adjetivo siciliano “mafiusu”, por sua vez herdado do árabe “marfud” (em tradução livre, o mandão temido, arrogante).  A encenação recente mais incisiva dessas “famiglie”, seus asceclas e métodos surge em “The Godfather” (1969), de Mario Puzo, romance que originou a esplêndida trilogia “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola.

No livro e no filme, alegorizam-se os germes do crime organizado e o chão sombrio donde brotam mandantes e capangas, apadrinhador e apadrinhados. Eles se alastram como epidemias em nações, cidades e vilas em que o medo e a parca educação apagam nos seres o senso de cidadania. A força da justiça se definha e murcha com ela a virtude da ética. O contexto social degradante abre cancha às nomeações de Incitatus equíneos e à corrupção endêmica, na incitação da política rasa, enquistada de desmandos. Avulta-se, como na tela de cinema, o império dos atrevimentos, vilania e desvergonha.

 

Romildo Sant’Anna, livre-docente, membro da

Academia Rio-pretense de Letras e Cultura

 
 

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.