Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 02|Novembro de 2009

 

NÚMERO 02

NOVEMBRO 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NICOLAU SAIÃO

 

DOIS VIVOS E UM MORTO (VIVO)

1. Henrik Edstrom e a reconversão do universo

Todo o verdadeiro pintor é de facto um demiurgo. E, como referiu Pablo Picasso, “mais que o inspirado é aquele que inspira”. Que inspira o desejo de uma nova visão, de uma nova formulação e, ao mesmo tempo, fornece as faculdades interiores para que tal seja não só possível como concretizável.

Mediante as cores e as formas com que se erguem os sinais dos três reinos da natureza, o que este pintor lírico e surrealista visa é transfigurar a existência em algo de significativo e de salubre, indo para além das condicionantes sociais e humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma alquimia espiritual, que transforma e que faz permanecer na existência quotidiana os signos que a sustentam e através dela permanecem no mundo.

Sendo um filho da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as lendas dessas terras onde os gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias com os habitantes dos jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar figuras mágicas ao crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu turno, nas tardes de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e luminosa.

Porque dá mais facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez que confere mais rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache e a aguarela, como nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de frescura) com que ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef. 

Henrik Edstrom, através da sua paleta tão sabedora e livre como o coração duma criança, viaja pelos mundos onde dá gosto viver, mas com o conhecimento que de tal pode ter um animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques e jardins dos nossos afectos vitais.

Nele habitam o poeta e o artista - que as cores e seus prestígios revelam como num encantamento que a todos é, afinal, íntimo e comunicativo. 

Tive o gosto de o conhecer na biblioteca municipal, em Portalegre, onde veio  há um par de anos expôr uma surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria ali os meus últimos dias de funcionário.

Durante duas horas, na sua voz suavizada pela idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que aliás teve o ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos e de maneiras de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no plano das matérias, da forma concreta pela qual se exerce a arte de efectivar uma obra que haverá de andar nos dois planos do tempo: a que se palpa com os olhos e a que se observa com os dedos das mãos. Adicionalmente, a que – como a ars magna, a opus primae – reside e se reconhece no plano da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.  

 

Dias depois – já ele voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem que para tal eu houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao gabinete um embrulho relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha dois quadros belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para o amigo NS intitular como achar melhor”.

Estão hoje na sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se, com efeito,  “A partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas passagens do Kalevaala.

Foi a fórmula mais adequada que encontrei para lhe agradecer.

2. Hélio Rola e os dragões do mar

Um mundo feérico, alucinante e encantado de faunas diversas, de monstros e de meninos, de bichos que assumem a sua condição de santos civis e quotidianos visitados pela amargura e a mais devastadora felicidade. Coisas do mar, coisas da terra. A preto e branco e a cores. Olhos que se viram na direcção do horizonte. Ali no Brasil. Ou seja: ali ao pé da esquina, ao virar da página e da avenida: no teu largo, na tua rua, no teu quintal. Dentro do Brasil e fora do Brasil – no coração duma floresta da Europa onde se acocoram os mal-nascidos.  

Entre dentes e entre linhas. Entre deambulações. Entre o grito e o soluço. Para levar para casa como recordação intempestiva, para levar a todo o lado como uma minúscula assombração. Uma gargalhada louca correndo nos ares como o trilo duma flauta numa viela onde jazem carros esventrados, sacos velhos e dejectos de um mundo supranumerário. E também muitos lugares de serena contemplação. A tua, a minha, a alegria dos outros, de todos os que ainda não se desvaneceram. O adeus que não cessa, a melancolia de cidades ao alvorecer. A lua, o sol, um bocejo sonolento no meio da madrugada.

Ao bom calor do Brasil - aqui mesmo no Alentejo, junto ao lago dos patos no Palácio de Cristal, numa simpática tasquinha de Borba. Em Coimbra, nas terras da Amazónia. Como se o tempo e os seus contrastes fosse não mais que uns olhos ouvindo atentamente, orelhas a captarem todas as cores, a boca e a mão esvoaçantes que traçam os seus sinais sobre um cantinho do universo. 

Como se tudo e ainda bem não passasse de um desenho a tinta-da-china ou então um volteio de guache enfeitiçado.

  3. Lovecraft e a lua negra

Em fins de 1979 a revista norte-americana “Cultural Correspondence” deu a lume um número duplo (10/11) intitulado “O surrealismo e os seus cúmplices populares” mediante o qual foi pela primeira vez posto em relevo o importante papel desempenhado na cultura estadunidense e mundial por determinados autores e certas manifestações artísticas consideradas menores pela inteligentsia académica.

Figuras e personagens dos comics e dos pulps, do cinema e da rádio – como O Sombra e Bugs Bunny, Dick Tracy e Mandrake, autores como Edward Bellamy e Frank Belknap Long, artistas como Mel Blanc e Ernie Kovacs -  eram ali destacadamente epigrafados, dando-se notícia de que era por eles que sem quaisquer dúvidas passava a imaginação em liberdade forjando novos lugares de maravilhamento e lucidez.

Naturalmente que HPL não podia ficar de fora. E, assim, textos de Robert Benayoun e Gérard Legrand entre outros debruçavam-se sobre o grande escritor e, como corolário, era dada a público um excerto apropriado da última carta do autor de “O que sussurra na escuridão”. É precisamente esse pequeno acervo que agora aqui se apresenta, extraído daquela revista que me foi oferecida, em 1982, por Mário Cesariny – grande apreciador de Lovecraft.

«Recuando um pouco no tempo, notar-se-á que antes ainda de Arthur Machen e Algernon Blackwood, na sombra gigantesca de Arthur Gordon Pym e Waldemar, figura Howard Philips Lovecraft (1890-1937).

Este recluso de Providence, Rhode Island, não se contentou apenas com o destilar da polpa dos pesadelos – aquele horror do tempo e do espaço assinalado por De Quincey e evocado por Benjamin Paul Blood em “Pluriverse”.

Engolfado nas águas das praias de Mu, Lovecraft – na sua prosa deslocada, forjada nos fornos da Alquimia, que ele venerava – anunciou o regresso oculto dos Grandes Antigos.

Faz parte da essência de tais fantasias o serem estas propagadas como que através de vibrações inscritas no próprio coração dos seus trabalhos posteriores.

Tal facto tem sido amplamente demonstrado pelo Círculo de Sauk City – representado entre outros por August Derleth, Robert Bloch, Hazel Head e Robert E. Howard, que perpetuaram a lenda negra de Cthulhu.»  -  Robert Benayoun 

«A grandeza de Lovecraft reside em nada menos que na criação de uma mitologia própria que ridiculariza a “história moderna”.

Difundida, até à sua morte, através das páginas de revistas diversas, essa mitologia reflecte um conhecimento autêntico do oculto, tratado com inteira liberdade.

Vindos de planetas desconhecidos desceram à Terra, muito antes do Homem, fundadores de religiões cujos vestígios ainda nos rodeiam.

É interessante verificar que este ponto de partida ilumina trabalhos certamente desconhecidos de Lovecraft, tais como a cosmologia glacial de Horbiger e certos desenvolvimentos patentes na arqueologia sul-americana (cf. Dennis Saurat “A Atlântida e o reino dos gigantes” – Nouvelle Revue Française, Agosto 1953).

Prevendo - e depois analisando - uma literatura pré-diluviana sob parâmetros por si dirigidos, este escritor irrepreensível e o seu Círculo proporcionaram-se o luxo de efectuarem uma verificação pessoal da mitologia correspondente.

 Raramente tem um tal rigor servido assim para a evocação das indecifráveis profundezas.»  -  Gérard Legrand                                                                                                      

A última carta de HPL (fragmento)

No decorrer destes últimos tempos, muitos dos meus correspondentes nesta zona pestífera têm-me escrito dando-me conta da Exposição de pinturas fantásticas e surrealistas que tem estado patente no Museu de Arte Moderna. Espero que na sua digressão seja incluída a velha Providence.

O acervo de manifestações de outrora – fantasistas pictóricos tão antigos como El Greco e o Bosch do fogo do Inferno – decerto me iria fascinar... Receio, contudo, que estes lugares não sejam incluídos no seu rescaldo migratório.

No geral, não sou todavia um entusiasta por aí além do surrealismo, visto pensar que os praticantes dessa escola dão as suas impressões sub-conscientes através dum automatismo um pouco leve. Não que as impressões a que aludo não sejam potencialmente valiosas, mas a meu ver tendem para se tornar triviais e com um significado restrito, excepto nos casos em que são adequadamente guiadas por um conceito imaginativo eficaz. Uma obra de Dali, com o apelido humorístico de “Os relógios moles” tende a transformar-se numa redução por absurdo do princípio fantástico e a exemplificar a decadência estética manifestada em diversas fases da nossa era moribunda e, socialmente, de transição.

Compreendo, no entanto, que esta forma de expressão seja bem aceite pelos conhecedores, já que muitas das suas produções possuem indubitavelmente uma poderosa frescura e um marcado alcance imaginativo; tal como o Movimento no seu todo poderá de facto contribuir com obras importantes e revivificadoras para a corrente da Arte.

Não pode traçar-se uma barreira entre a chamada fantasia que vem da linha tradicional e a que se reclama do denominado surrealismo; nenhumas dúvidas tenho de que as paisagens de pesadelo de alguns dos seus cultores correspondem, como o fazem tantas outras  criações actuais, aos horrores iconográficos atribuídos por diversos escritores de ficção a artistas alucinados ou perseguidos pelos seus demónios. Se fossem reais um Richard Upton Pickman ou um Félix Ebbonly (*) estou certo de que teriam criado grande número de inquietantes e blasfemas telas a óleo para a recente Exposição(...)

 

(*) Artistas fictícios de contos de HPL

ALGUNS POEMAS DE LOVECRAFT

A KLARKASH-TON, SENHOR DE AVEROIGNE

Dentre farrapos de nuvens negra torre se destaca;

Ao redor, um imaculado e opressivo bosque.

Sombras que pairam e o silencio, mofo e putrefacção

E uma mortalha cinzenta sobre velhas lápides

Há muito tempo desmoronadas.

Nenhum pé fez restolhar, nenhum pio de ave quebrou

A mortal solidão desta alongada noite

Mas às vezes o ar freme com um breve estremecer

Quando na torre brilha um mortiço luzeiro.

 

Aqui, na solidão, mora aquele cujas mãos

Traçaram estranhas obras por que o Mundo se amedronta

E que em indecifráveis hieroglifos revelou

O que palpita além dos mundos estelares.

 

Sombrio Senhor de Averoigne, tuas janelas abrem-se

A visões de sonho que outros não podem acolher.

 

NotaHomenagem a Clark Ashton Smith - evidência que, por cabala fonética, se transfigura no título – é o derradeiro poema de HPL, que o enviou a E.Hoffman Price dois meses antes de falecer.

AO PEQUENO SAM PERKINS
No velho jardim nocturno

Uma profunda pena vai caindo

Como se o peso do silencio e da sombra

No ar voassem.

 

Com oculto pesar se inclina a erva

Incapaz de esquecer o dia de ontem

Em que umas leves patas a tocavam

E já são só lembrança.

 

NotaSam Perkins era um gatito de HPL, cuja morte causou a este fundo desgosto.

À DONA SOFIA SIMPLE, RAINHA DO CINEMA

Esse mutável rosto, em frente ao nosso olhar

De alegrias e tristezas vai desvendando um mar

E o trejeito risonho assombra-nos deveras.

Mas duma vez por todas, aprende a actuar!

 

Teus olhos brilham mais do que as estrelas

E a tua boca é como o arco de Cupido.

Bem rosadas e firmes tens as maçãs do rosto.

Então porque serás tão docemente estúpida?

 

O herói só de ver-te fica mais do que rendido

E já só quer apod’rar-se da tua mãozinha bela.

Ah! o pobre palerma, que lástima nos causa,

Esta vítima mais do teu riso de tôla!

 

E sendo assim, porque choramos nós

Ao ver o trágico destino que te cabe?

No fundo é natural – por um mísero tostão

Alguma maravilha queríamos ver então?!!

 

NotaIncursão nada habitual de HPL pelos domínios da sátira aplicada a um facto do  mundo quotidiano. Lovecraft - como se referiu na Introdução – gostava muito de cinema, dos “serials” aos depois tidos como clássicos.

A UM SONHADOR

Observo o teu rosto pálido e tranquilo

Junto à luz solitária de uma vela;

A borda escura das pálpebras, sob a qual

O olho dorme, alheio a este mundo.

 

E, olhando-te, quisera conhecer

As veredas por onde o sonho te conduz.

As fantasmais regiões que com olhos velados

Nem tu nem eu, de aqui, podemos ver

 

Pois também eu, dormindo, contemplei

Coisas que agora só a memória guarda;

Nesta semiconsciência anseio olhar de novo

Os cenários que a ti apenas se desvendam.

 

Também eu conheci os altos cimos de Thock;

E os vales de Pnath, de oníricas formas cheios;

E as catacumbas de Zinn... Por isso entendo bem

Porque desejas tu que a vela fique acesa.

 

Mas...que coisa é essa que subtilmente corre

Sobre o teu rosto e os teus barbados lábios?

Que medo te perturba o coração e a mente

Que até a tua fronte já de suores se perla?

 

Velhas visões despertam... E os teus olhos abertos

Brilham, negros de nuvens de outros firmamentos;

E como se o fizera por demoníaca mirada

Vejo-me a esvoaçar através da noite encantada.

           

Nota – Este poema, extraído do acervo de poemas fantásticos, tem o tom de relatos como “Os demónios de Randolph Carter” ou de “A música de Erich Zann”, seus parentes directos na geografia e na encenação.

Textos e traduções de NS

Nicolau Saião: «Homenagem a Lovecraft»

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
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