Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

NÚMERO 01

 

 

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A poética-cyborg de Wellington de Melo

Johnny Martins



Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)

Uma conversa entre um homem e um computador figura entre os momentos mais tocantes do cinema: a cena em que o personagem-astronauta Dave Bowman desliga o supercomputador HAL 9000 no filme 2001 – Uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick.

A respiração tranqüila do astronauta enquanto “mata” o computador, que “suplica” para que ele desista do ato, imprime no espectador uma estranha identificação e empatia pela máquina, parecendo esta mais humana do que seu interlocutor de carne e osso. Quatro décadas após o lançamento daquele filme, tendo o computador se tornado parte da vida cotidiana, as reflexões contemporâneas acerca da interação e semelhanças entre o ser humano e a máquina podem ser encontradas sob diversas perspectivas, desde a biológica até a filosófica, chegando à ruptura com essa separação através do “mito do cyborg”, [1] descrito por Donna Haraway como um “híbrido de máquina e organismo, uma criatura tanto da realidade social quanto da ficção”. Embora essa nossa realidade pós-moderna torne essas discussões muito passíveis de inspiração literária, encontrar nessa aproximação entre o humano e o inumano algo de poético torna-se uma empreitada tanto difícil quanto ousada, sobretudo pelo perigo de se cair no clichê.

Um livro de poemas articulado em cinco partes ― A proto-M@quina, A M@quina, A anti-M@quina, A hiper-M@quina e O pó ― conduz o leitor por uma viagem poética, cujo veículo poderia mais ser a espaçonave de Kubrick do que o navio modernista de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa). O livro se chama [desvirtual provisório], recentemente lançado pelo poeta Wellington de Melo. Na obra, a concepção de máquina se confunde com algo que está antes, dentro e depois do homem, com o caos ordenado do cosmos, [2] com a máquina-natureza, enfim, (con)funde-se com aquilo que muitas vezes desafia a racionalização, mas, ainda assim, move-se e nos move: a poesia.
O título é revelador quanto à noção de que a poesia é sempre algo prestes a se fazer presente, sempre algo virtual na existência das coisas, sempre à espreita para se tornar real mesmo que seja nas poucas dezenas de minutos em que lemos um livro. E ela, a poesia, se “desvirtualiza” nessa leitura, mesmo que provisoriamente. Em [desvirtual provisório], as palavras resgatam imagens salvas na memória das coisas, da História e do poeta; ora enfatizam, ora rebelam-se contra o nada, resistentes a se tornarem pó, como se fora um cyborg, que “não foi feito do barro e não pode sonhar em retornar ao pó”. [3]

O que é a poesia senão também a memória ressignificada? O pós-modernismo ― que Fredric Jameson prefere identificar “não como um estilo, mas como uma dominante cultural” [4] ― ressalta isso por toda parte em sua produção artística e nas diversas linguagens, com suas reinterpretações da memória cultural, principalmente no que tange a História, a Estética e a Ética. A pós-modernidade tem operado uma “limpeza de disco” sobre as concepções oriundas da modernidade, mas sem “deletá-las”, apenas reestruturando e atualizando os fragmentos de informações e experiências. [desvirtual provisório] alinha, a seu modo, as letras pernambucanas com o discurso paradoxal pós-moderno de uma negação acolhedora, ao mesmo tempo distanciada e cúmplice. E temos uma revelação disso em seu texto inicial, intitulado [Preâmbulo à M@quina], no qual a síntese de opostos se concretiza na própria linguagem através do neologismo do verbo “odeiamar” (odiar + amar):

[...]

finalmente descubro que pesa sobre
mim a herança de meu tempo, a única verdade que o Homem de
meu tempo entende:
a M@quina.
É ela que canto. É ela que odeiamo. É ela que mato & é ela
quem me renasce. É ela que me anula & porque me anula me faz
mais homem.

O mito do cyborg, como já assinalado, também alude à fusão do virtual com o real através da síntese, num mesmo corpo, de um ser oriundo da ficção científica (uma inteligência artificial autônoma) e da realidade social (o ser humano). Poderíamos encontrar essa noção trabalhada de forma poeticamente crítica nestes versos finais do poema [osso-silício], em que o homem surge como parte de uma ficção opressora criada pelas burocracias cotidianas:


só sou se impresso registrado autenticado
: enquanto isso
sou possibilidade
mentira esquartejada em carne &
OSSO

A máquina cantada por Wellington de Melo não é mais aquela das locomotivas, navios e demais engrenagens dos modernistas. O símbolo convencionalmente chamado de “arroba” (@) marca sempre a palavra máquina, substituindo também em outras palavras a letra “a” tônica, fazendo alusão aos símbolos gráficos freqüentes na rede mundial de computadores, e talvez esta possa ser considerada um “proto-cyborg”, onde a máquina se torna, de maneira cada vez mais irrevogável, uma espécie de continuidade do pensamento humano. Um “uróboro apocalíptico” é mencionado no poema [Preâmbulo à M@quina], o que imprime à arroba também uma lembrança daquele dragão mitológico que devora a própria cauda e é símbolo de infinitude em várias culturas antigas. Aliás, a dimensão transcendental da memória cultural humana é buscada na obra em vários momentos, inclusive através da presença de termos cuja origem cultural diverge bastante, em aproximações paradoxais, tais como: “uróboro apocalíptico” e “Ogum Hightech” (paganismo, cristianismo, candomblé). A memória, então, trazida para a viagem que [desvirtual provisório] propõe, é uma memória cambiante entre as particularidades culturais do poeta e a vastidão da História (enquanto arquivo das experiências da humanidade).

A inserção de alguns dos códigos semióticos próprios da linguagem da Internet também funda na obra um tipo de nova escrita, ampliando os significados ― e, conseqüentemente, as leituras ― sugerindo também o desejo de fundar uma língua que supere a sensação de solidão e o medo diante da máquina, do inumano:

neste tempo de c@al & treva
de concreto & silício
foi que finalmente a M@quina
roubou de mim a palavra
que me fazia humano,
que me imprimia a dor:
o horror
o horror
o horror

[desvirtual provisório III]

[desvirtual provisório], portanto, traz uma ostensiva percepção de aspectos visuais como geradores ou amplificadores de significado. Evidentemente, a associação entre o visual e o poético não é raro nem novo na literatura. A originalidade que o livro apresenta quanto a isso está justamente no fato de que essa retomada não tem a ênfase dos poetas concretistas, mas está intimamente associada ao discurso poético da obra e a coloca em diálogo com um cotidiano em que as informações nos chegam, sobretudo, através dos olhos, e freqüentemente desprovidas de qualquer poesia.

Haraway (1991) reflete, em seu texto sobre o mito do cyborg, que “nossas máquinas estão perturbadoramente vívidas, e nós mesmos assustadoramente inertes”. Na poética-cyborg de Wellington de Melo, “o livro não é um canto contra a máquina”, nos revela o poeta. [5] De fato, a máquina ― chamada no poema [Leviatã] de “amada opressora” ― por vezes se torna metáfora de uma vida ausente de sentido, conduzida de forma mecânica. Temos um exemplo disso no poema [O Pisassonhos], um dos mais belos do livro, que abre com uma epígrafe de um dos mais notáveis poetas do modernismo britânico, W. B. Yeats: “But I, being poor, have only my dreams; / I have spread my dreams under your feet, / Tread softly because you tread on my dreams”. [6] Aqui há um significativo diálogo com o modernismo, pela ironia ― numa atmosfera pós-moderna: “entre a identificação e a distância” [7] ― que se instaura através do poema que segue essa epígrafe. A advertência do poema de Yeats (“pisa manso, pois estás a pisar em meus sonhos”) torna-se inútil, uma vez que tal apelo não surtiria efeito sobre uma máquina:

meu sonho
sob os pés
da M@quina
escorre
entre
Seus dedos

& renasce
na morte do dia-a-dia:
o que me esmaga
é da esperança
a falta

A metáfora da máquina, portanto, vai além do olhar de dependência e, ao mesmo tempo, de ironia quanto à voz modernista. A máquina metaforiza-se aqui na falta de esperança que avança implacável, uma máquina e que está, não fora, mas dentro do ser humano.

Nessa poética-cyborg de Wellington de Melo, a poesia opera uma fusão que associa o inumano (a casa) ao humano (a família) e, assim, as coisas se tornam extensão dos organismos ― e vice-versa ―, humanizam-se através de memórias emotivas, tornam-se uma continuidade do indivíduo, como vemos neste trecho do poema [Casa], dedicado aos pais do poeta:

essa casa que me habita
& que me faz paredes abertas ―
me acompanha
& se verte
sombra em meu presente ―
exerce
sobre mim a influência
que a M@quina
em vão aplaca.

Dissemos que, no livro, a arroba faz lembrar também o Uróboro, entidade mitológica presente em diversas culturas antigas. Digamos melhor: a obra inteira se estrutura como na circularidade auto-devoradora do uróboro, trazendo o “antes de todo o caos” no primeiro poema e o “pós-pó” no último. A imagem do dragão que abocanha a própria cauda ― algo vivo que, no entanto, se devora ― nos leva a descobrir na obra uma noção de poesia como eterna auto-devoração. Acrescentemos a essa observação o fato de que o étimo da palavra “poesia” ― poiese (ποίηση) em grego ― quer dizer, entre outras coisas, “criar, trazer à existência”, [8] e atentemos para este poema, intitulado [Hipertexto]:

desconstrói-me:
minha ilusão de
imortal
se esvai com tua leitura

quebra-me
alado
o verso
leva-me de novo
ao berço
da palavra encantada

faz-me de novo
sílaba
d@-me um sopro
de teu nada.

recria-me
infinito

eis teu novo mundo:
insone.

apropria-te da linha
que nova
é tua Fome.

E enquanto a máquina e o homem têm lugares intercambiantes na poética-cyborg (ou melhor: “Ogum Hightech”) de Desvirtual Provisório, devorando-se e recriando-se, a poesia pernambucana se aproxima das grandes questões estético-discursivas conduzidas pela pós-modernidade, “e o longe está sempre onde esteve - / Em parte nenhuma, graças a Deus!”.
 
NOTAS

1. Haraway, Donna. “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century”. In: Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature (New York; Routledge, 1991), pp.149-181. Disponível em: www.stanford.edu/dept/HPS/Haraway/CyborgManifesto.html.

2. Uma epígrafe de Nietzsche antecipa os poemas com estas palavras: “É necessário possuir um caos dentro de si para dar à luz uma estrela brilhante.”

3. Haraway, 1991 (Op. Cit.).

4. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000, p.29.

5. Em entrevista para o telejornal Bom Dia Pernambuco, da Rede Globo, em 02/01/2009.

6. Tradução livre: “Mas eu, que sou pobre, tenho apenas meus sonhos; / Espalhei meus sonhos aos teus pés, / Pisa manso, pois estás a pisar em meus sonhos”.

7. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, p.58.

8. LIDDELL, Henry George e SCOTT, Robert. Greek-English Lexicon (Web Version). Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/resolveform.
 

João B. Martins de Morais (Johnny Martins) (Brasil, 1972). Ensaísta. Inédito em livro. Contato: johnny.martins@gmail.com

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