Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

NÚMERO 01

 

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Pequena sabatina ao artista Sérgio Lucena

Fabrício Brandão

Página ilustrada com obras do artista Sérgio Lucena (Brasil)
 

A primeira visão de um tudo habitava as moradas de um silêncio. Pelos tecidos que escorriam entre as horas, o menino vislumbrava no seu cume predileto o sertão-mundo presente, palpável, concreto e imaginável aos olhos.

E sentir tais visões impregnadas na retina trazia-lhe a íntima certeza de que atirar-se à vida poderia ser algo delicado, complexo, porém não menos fascinante. A partir disso, tomava posse do sonho como um aliado ideal da sublime busca ensimesmada em torno dos sinais que percorrem a existência.

Aquele menino-sertão cruzaria os anos futuros carregando obstinadamente os imperativos de seu digno olhar sobre todas as coisas. Pelas alamedas inexplicáveis da arte, tornar-se-ia o homem que, além de perceber a realidade pulsando bem diante de si, mostraria disposição para transcender os signos embalados no caminho da criação. É como se, através de suas telas, Sérgio Lucena nos propusesse a vida surgindo sempre e revelada a cada dia. Desde os primeiros estudos de desenho e pintura em sua João Pessoa, na Paraíba, até as experiências acumuladas com exposições e premiações no Brasil e no exterior, o artista percorreria as trilhas naturais de sua afirmação criativa.

Durante todo esse tempo, conheceu pessoas, compartilhou saberes com outros artistas e se alimentou daquilo que, podemos suspeitar, seja o maior propósito de seu trabalho: o mergulho na essência das coisas.

Santos, anjos, profetas, musas, deuses e paisagens, dentre outros temas, unem-se em esforços que estreitam a relação dos homens com seus mais antigos mistérios. Nesse ponto, a obra de Sérgio nos oferta a unidade existencial, a comunhão entre o sagrado e o profano. Homens e deuses são um único ser e o conceito de divindade é cultuado no mais nobre altar da igualdade, algo que pode até nos remeter ao Uno de Plotino. Em meio a tais epifanias, Sérgio Lucena nos concede uma entrevista cujo ponto alto concentra-se nas suas sensíveis impressões em torno do fazer artístico. Nela, o artista desnuda-se e nos revela quão valiosa é a celebração de nossa humana idade. [FB]

FB | Suas primeiras visões vêm das reminiscências povoadas pelo vasto e mítico imaginário nordestino. Como foi que tais olhares se fortaleceram em seu íntimo a ponto de motivar a sua arte?

SL | Minha infância foi marcada pelo sertão, o centro do meu universo, a fazenda de gado e algodão do meu avô materno onde experimentei o real, o leito rochoso onde firmei os pés. Lá existe uma pedra, um imenso granito solitário com aproximadamente trezentos metros de altura. Costumava subir esta pedra para olhar o mundo do alto, para mim aquela visão era, e continua sendo, o lugar sem engano.

O sertão nordestino com seus silêncios, sua alma arcaica, consubstancia uma realidade sem dúvidas. “Viver é muito perigoso”, diz Guimarães, como a dizer que a vida só é possível com princípios, com dignidade, valor seminal. Toda a alta cultura nordestina não é outra coisa que a preservação de códigos de conduta. Estruturas essenciais que permitem a vida e criam espaço para o sonho realizador.
O que vi sem que me mostrassem, o que ouvi sem que me dissessem, o que senti sem demonstrar (a metodologia sertaneja de transmissão do que importa), tudo calou fundo em mim até estar pronto para vir à tona.

Sou hoje a pedra da minha infância, a vastidão, o mistério, o arcaico, o espaço cósmico infinito, o não saber, o aceitar. Minha pintura atende unicamente à vida, sua demanda... Minha motivação é estar à altura disto.

FB | Certa feita você afirmou que vida e arte são dois elementos indissociáveis. Por vezes, somos um tanto utópicos quando recriamos nossas existências através dos impulsos artísticos. Essa ideia da reinvenção da vida pode nos afastar ou aproximar da essência das coisas?

SL | “A vida imita a arte”, disse o Oscar Wilde. Eu concordo com esta afirmação. A meu ver, não recriamos nossa existência por meio da arte, entendo que a criamos.

A arte formaliza o real, de maneira que a vida que se manifesta foi antes criada num espaço sutil. A nova realidade consciente se dá pelo fato de ter sido antes elaborada em forma de linguagem, uma estrutura capaz de acessar a percepção e o entendimento humanos. Isto é alta magia.

Neste sentido nos aproximamos da essência das coisas, pois é de nós mesmos que nos aproximamos. A utopia é o contrário disto, e se reflete claramente na alienação, na dissociação do indivíduo de si mesmo.

Também é do Oscar Wilde o pensamento de que o mistério maior está no que vemos e não no invisível. Todo artista que pode ser chamado grande, o é por sua obra realizada, nunca por suas subjetividades ou idiossincrasias.

O embate do artista é com a esmagadora força de acomodação e alienação exercida pelo mundo contingente, e é a percepção intuitiva em busca dos meios de elaboração e expressão do que é intuído que cria a tensão necessária para a realização da obra.

É natural que o artista conviva com o abutre prometéico, que lhe come o fígado diariamente, mas é o fogo roubado aos Deuses o que interessa de fato. De maneira que a realização objetiva da obra é o meio de passagem da situação utópica para a realidade concreta.
A obra realizada é o portal de acesso à nova consciência. A realidade da obra, portanto estabelece o novo olhar, a nova percepção. Assim, cria-se a vida.

Para mim, certamente, a arte como linguagem é a melhor expressão do essencial, trata-se da linguagem da alma, imediata, completa, pura e espiritual.

Para concluir, digo que a vida não se inventa tampouco se reinventa, a vida se revela ao passo que se nos desvelamos.
FB | Como é que você avalia o papel da crítica de arte feita no Brasil?

SL | A crítica de arte no Brasil, no âmbito das artes visuais, já há mais de década foi expulsa de seu espaço: os veículos de comunicação. Hoje temos apenas anúncios de eventos e, quando muito, meras opiniões.

Um fato lamentável, causador de imensurável prejuízo ao avanço da reflexão, do aprofundamento das questões da arte e, consequentemente, da diluição do pensamento.

Toda história da arte está respaldada no diálogo artístico, a ausência disto em nosso país é um atraso para a sedimentação da cultura, uma forma espúria de fragilizar nossa identidade.

Curioso é que os próprios artistas participaram deste movimento de extinção da crítica, com uma postura no mínimo leniente, para não dizer subserviente aos interesses do mercado.

Fato é que sem crítica de arte não existe arte. O interlocutor é fundamental para o artista.

FB | O pintor suíço Paul Klee dizia que o papel do artista era o de convencer os outros da veracidade de suas mentiras. De que modo você percebe tal ideia?

SL | Paul Klee foi um sol radiante, sua luz permanece como um farol de lucidez. Ele não diz, ele sugere, aponta... A única forma de falar do indescritível.

Entendo que esta citação do Klee corresponde ao que tratávamos na segunda pergunta, que vida e arte são indissociáveis.

A arte não se vale da lógica cartesiana, da constatação científica, da confirmação empírica para afirmar seu valor. Logo, para nossos arcaicos padrões de valoração, a arte é uma grande ilusão, uma baita mentira cujo único mérito seria nos distrair, afinal não é fácil lidar ininterruptamente com as coisas “sérias, verídicas e importantes” da vida. Há de haver um tempo para o descanso.

Entretanto, é justo neste espaço de tempo em que a guarda está baixa, visto ser hora de relaxar, que se dá o inimaginável. O sujeito senta-se diante de um quadro e o contempla, ou fecha os olhos e escuta uma música, ou lê um poema e, sem que se dê conta, a arte atua no indivíduo carente de significados, acalenta-o, o faz sentir-se humano, e o mundo, então, surpreendentemente, faz sentido.

Aquela mentira o salvou da pior das verdades, a grande alienação do homem em relação a si mesmo e, consequentemente, ao próximo e a tudo.

É isso o que me parece querer dizer o mestre Paul Klee.

FB | A Série Deuses é, sem dúvida alguma, um dos pontos marcantes de sua obra. Nela, é possível apreender um estreitar de laços entre o humano e o divino. Em que medida as inquietudes da alma ali aparecem diluídas?

SL | A série Deuses, que se divide em dois momentos, Deuses da Terra e Deuses do Céu, foi um divisor de águas. Em verdade, este foi o tempo apaziguador das inquietudes de minha alma.

Com os Deuses da Terra, pude me reconciliar com os meus medos, reconhecer neles meus mestres e aliados. O próprio título da série vem deste apaziguamento. Os animais remontam minha pintura anterior, ligada ao burlesco, ao anedótico, ao satírico, quando a pintura tinha forte caráter narrativo e era concebida como alegoria fantástica. Entretanto, agora, eles já não mais compunham o cenário como personagens coadjuvantes, eles foram alçados a protagonistas, únicos, dignos e solitários. Tratei de vesti-los com a mais fina joalheria, peles bordadas a ouro e platina, dei a cada um deles o seu lugar divino e merecido. Cada ser revelado em um Deus, um aspecto inconsciente de mim mesmo que, quando reconhecido na sua natureza e magnificência, abriu a porta de seu universo e permitiu que eu avançasse, integrando sua força ao propósito que nos une. Cada ser é um portal.

Esta experiência levou alguns anos, três, para ser mais exato, durante os quais tudo em mim e à minha volta se transformou. Veio assim à aceitação e o apaziguamento, situações que permitiram o novo momento da série: Deuses do Céu.

Enriquecido pelo mundo subterrâneo, alimentado de humos, tornei-me apto a, novamente e pela primeira vez, escalar a pedra da minha infância. Vi outra vez o que ainda não tinha visto: a vastidão, o horizonte indefinido. Minha pintura adentra um campo simultaneamente familiar e desconhecido… Deuses do Céu.

FB | Algumas de suas pinturas remontam ao realismo-fantástico e, nesse aspecto, poderíamos mencionar, por exemplo, os signos presentes em O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luís Borges. Nessa comunhão entre texto e imagem, o que mais lhe chama atenção?

SL | Todo pensamento tem sua imagem correspondente. A pintura abstrata, por exemplo, é a forma elaborada de um estado psíquico, emocional e de percepção da realidade. Lembro-me de Mark Rothko, grande pintor russo-americano, que não aceitava a alcunha de pintor abstrato, pois afirmava que sua pintura tratava do que havia de mais concreto: as emoções humanas básicas. Sobre a pintura que hoje faço, que não se presta a uma descrição narrativa, muito já se falou. Ou seja, o texto e a imagem são uma e mesma coisa. Um texto suscita uma imagem, uma imagem suscita um texto, são duas faces da mesma moeda. O que é preciso estar atento, e isto é muito importante, é que nem o texto existe para explicar a imagem nem a imagem existe para ilustrar o texto. Se tal situação ocorre, e sabemos que ocorre bastante, não estamos falando de arte.

FB | Você se utiliza do sagrado como uma forma de evocar um entendimento mais sublime sobre a condição humana?

SL | A condição humana é sublime, logo, toda miséria, todo o horror que assistimos diariamente não é outra coisa senão a ignorância deste fato: a condição humana é sublime.

O crítico de arte Jacob Klintowitz formulou o primeiro pensamento em nossa época, de que tenho conhecimento, relativo a esta questão. A este conceito chamou de “A Ressacralização da Arte”. O retorno em nossa época do princípio sacro da Arte que, assim como fora nos primórdios de nossa espécie, não se vincula a instituições religiosas, antes aponta para a comunicação direta do homem com o divino, o homem íntegro e integrado.

“Toda Arte que se pretende digna deste nome é religiosa”, disse Matisse, um artista superior. Naturalmente, aqui ele não estava referindo-se às religiões ou dogmas, mas ao sentido etimológico da palavra religião: religare – ligar novamente, a grande arte religa o homem a sua natureza, sua sublime condição: O Deus Homem.

FB | O homem e a retomada de seu centro. Ainda estamos muito distantes desse propósito?

SL | De minha parte, considero que não se trata de uma questão coletiva, mas individual. Cada um deve buscar o seu próprio centro, o encontro é individual e único.

Fabrício Brandão (Brasil, 1974). Poeta e editor. Inédito em livro. Dirige, juntamente com Leila Andrade, a revista eletrônica Diversos Afins, em cuja edição # 35 se publicou originalmente a presente entrevista. Contato: diversosafins@gmail.com

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