Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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RAÏSSA CAVALCANTI

O MUNDO DO PAI

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II - Faetonte – O Mito do Pai Ausente

Filho de Hélio e Clímene, Faetonte foi educado pela mãe em total desconhecimento de quem era seu pai. Ao atingir o início da adolescência, a mãe que seu genitor era Hélio, o sol. Querendo certificar-se da revelação materna e dar uma resposta condigna aos que dele zombavam por dizer-se filho do Sol e, sobretudo, desejoso de conhecer o pai, resolveu procurá-lo.”

“O palácio de Hélio brilhava como ouro. Por dentro e por fora tudo dardejava luz, resplandecia e tremeluzia. Era sempre meio-dia; a meia-luz sombria nunca turvava a claridade; a escuridão e a noite eram desconhecidas. Muito poucos mortais poderiam resistir algum tempo àquele brilho imutável de luz, mas também apenas poucos teriam conseguido descobrir o caminho que levava até lá.”

 

    Faetonte, na ânsia de conhecer o pai, escalou longas e árduas encostas e repentinamente viu-se mergulhado na luz. Parou porque o esplendor do palácio paterno o cegava.

Sentado num trono de esmeraldas, Hélio, que tudo vê, divisou na luz o próprio filho e falou com ternura: “Que vens fazer aqui, que buscas, Faetonte, meu filho e minha glória?” Faetonte perguntou a Hélio se ele era realmente o seu pai. Hélio garantiu que sim e cometeu o erro de afirmar: “Para prová-lo, dar-te-ei o que pedires.” Faetonte pediu para dirigir a carruagem do Sol pelo firmamento. Hélio arrependeu-se da promessa feita: “Falei temerariamente; confesso que esta é a única coisa que eu gostaria de te recusar, pois perigoso é o teu desejo. Pedes algo imenso, muito superior às tuas forças. Tu és mortal e imortal é aquilo a que aspiras.” Hélio tentou em vão dissuadir Faetonte, com uma longa advertência: “O próprio soberano do Olimpo, que lança com a mão terrível o raio, não conduz este carro.” Ovídio, em suas Metamorfoses, deixou-nos o relato deste diálogo de Hélio com Faetonte:

Para que eu não te preste funesto, e já que ainda é tempo, muda de idéia. Na verdade, pedes uma prova para teres certeza de que nasceste do meu sangue? Meu temor é uma prova, o medo demonstra que sou teu pai. Encara-me bem. Oxalá pudesses com os olhos devassar-me o coração e descobrir em seu imo os cuidados de um pai!

Todas as ponderações de Hélio de nada valeram. Faetonte insistiu e a contragosto de seu pai cedeu.

Faetonte subiu na carruagem do Sol, mas com a tarefa estava além de sua capacidade, e não podendo controlar a gigantesca briga, despencou através do céu, criando o caos.Alastrou-se um vasto incêndio. Inflamaram-se as nuvens e fenderam-se as terras. A terra resseca, rios evaporam, os animais fogem e Faetonte, que não sabe como manejar as rédeas e que caminho tomar, é coberto por uma grossa camada de fumaça.

 A terra, a grande deusa, pediu a Zeus o fim dessa catástrofe. Zeus ouviu-lhe a prece. Subiu ao Olimpo e de lá desferiu seu raio certeiro contra o impulsivo rapaz, lançando morto no espaço; e o herói tombou em chamas no caudaloso Erídano, que lhe extinguiu as labaredas. As náiades da Hespéria o sepultaram e no túmulo colocaram a seguinte inscrição: “Aqui repousa Faetonte, condutor audaz do carro paterno, ao qual se não o pôde guiar, ao menos pareceu em gesta gloriosa.”

“Por um dia, mergulhado na dor, Hélio teria deixado a terra mergulhada em trevas, não fora o clarão das labaredas que ainda crepitavam. As irmãs de Faetonte, as Helíades, choram-no tanto, que nesse mesmo local,às margens do Erídano, foram metamorfoseadas em choupos.”

 Onde embora árvores, continuam a chorá-lo,

e cada lágrima, ao cair, enrijecida pelo Sol,

transforma-se em âmbar.

O mito inicia narrando a ausência do pai: “Faetonte foi educado pela mãe em total desconhecimento de quem era seu pai…” Esta primeira colocação do mito já mostra o problema mais importante a ser tratado: a ausência do pai. E, no decorrer da narração, surgem às conseqüências e decorrências desse problema. No início do desenvolvimento, a criança vive num mundo exclusivamente materno e a sua dependência em relação à mãe constrói uma imagem materno absoluta e onipotente. Somente mais tarde, com o encerramento da fase matriarcal da consciência, é que a criança adquire o conhecimento sobre a realidade existencial do pai.

Faetonte, como filho, desconhece a realidade do pai até a sua entrada na adolescência. Esta afirmação no mito mostra que Faetonte é um filho que esteve preso à mãe por muito tempo e que esta tem uma característica possessiva que impede o desenvolvimento do filho. Ele, conseqüentemente, encontra dificuldade para sair do abraço forte do poder materno, que o mantém encerrado no mundo matriarcal e narcísico, e não pode, assim, fazer a sua entrada no mundo patriarcal, no mundo do pai.

Faetonte permanece ligado ao mundo da natureza, do instinto, porque o pai está ausente, não só física e psicologicamente, mas também como símbolo no discurso da mãe. O “Nome do Pai”, como símbolo estruturante, é inexistente no discurso da mãe. Faetonte, portanto, desconhece outra realidade que não seja a da mãe, da natureza, da vivência matriarcal. Vive num mundo sem acontecimentos, a-histórico, cativo neste modo de relação com a mãe que o mantém alheio a qualquer outra realidade. Faetonte está preso na negação materna da função do pai; não pode ser reconhecido como o filho do pai, o filho de Hélio. Quando a mãe não faz o reconhecimento do pai, mantém a criança presa à identificação primária, isto é, a identificação com o primeiro objeto, a mãe, e impede o desenvolvimento da identificação secundária com o pai, que a constitui como sujeito, como individualidade.

A mãe de Faetonte não reconhece o pai no seu discurso e, desta maneira, impede a entrada do terceiro, que rompa o vínculo simbiótico. E o filho cativo desta relação sofre da falta de filiação.

O pai como símbolo estruturante, como o falo que faz a mediação da saída da consciência matriarcal para a consciência patriarcal, o inexistente no início do mito. O arquétipo é o símbolo que leva à vivência da castração, isto é, à saída da condição narcísica, para a entrada no mundo da lei da ordem, da consciência patriarcal, no período fálico e edípico do desenvolvimento.

O símbolo do pai, como todo arquétipo, necessita da existência do pai real ou de um substituto para a sua atualização. Apesar da função paterna simbólica conservar a sua virtude estruturante na própria ausência do pai real, pois a dimensão do símbolo transcende as contingências reais, o símbolo necessita se encarnar na existência real.A intervenção do pai, no plano psicológico, é determinante para a estruturação do universo da criança, porque é o pai que engendra o filho como sujeito.

Quando o pai está ausente, ou é completamente desconhecimento, falta na experiência o vaso que possa conter a projeção do arquétipo e fazer a mediação entre o ego e a imagem arquetípica. A presença do pai ou de um substituto é, portanto, necessária para dar sentido e realidade à projeção do pai arquétipo. É a existência do pai herói que dá corporeidade à experiência do arquétipo do pai, como o detentor da função fálica e fundador da função simbólica. O símbolo do pai, como detentor da lei que traz o interdito à vivência regressiva e incestuosa, precisa estar representado no pai histórico. O pai simboliza na experiência pessoal a proibição do incesto.

A ausência física do pai ou de seu substituto provoca uma lacuna na psique que precisa ser preenchida. São os conteúdos do inconsciente coletivo que irão preencher esta falta e que, por sua vez, podem ser projetados em alguém, ou num modelo disponível para receber a projeção. Esta situação explica muitas idealizações de caráter grandioso que parecem exceder o real. Ou pode acontecer que a criança, carente de pai e ainda presa à condição narcísica, faça a identificação direta com o arquétipo, por faltar à mediação do pai real, que lhe forneça contornos mais humanos e previna contra a onipotência.

O mito diz que a mãe de Faetonte lhe revela tardiamente a existência do pai, do “Nome do Pai”. Esta passagem mostra que faetonte fica preso por muito tempo no estado narcísico, pois está identificado com a mãe e a consciência matriarcal. Quando a mãe de Faetonte faz a revelação de sua filiação, marca o momento em que o “Nome do Pai” entra no seu discurso.

O “Nome do Pai” torna-se o terceiro elemento, o elemento simbólico que vem quebrar a díade e introduz o fator de separação entre Faetonte e sua mãe. A nomeação do pai no discurso da mãe provoca a diferenciação e o fim da simbiose da criança com a mãe.

O pai encarna o outro e inaugura o princípio da realidade. O “nome do Pai” rompe a identificação entre o desejo e o objeto do desejo, e assim se cria o mundo psicológico.

A revelação de uma realidade desconhecida é ameaçadora para a psique que teme a saída do estado de fusão. No entanto, esta revelação impulsiona o psiquismo para buscar segurança nos atributos do pai. Faetonte, com a saída da identificação com a mãe, se vê fraco, impotente e desprotegido. Ele deseja conhecer o pai, mas como este está ausente, a necessidade psíquica ativa os conteúdos do inconsciente coletivo e produz uma fantasia compensatória para a sua carência. Faetonte se vê como filho do Sol, filho de Hélio.

Neste momento, o personagem do mito encontra-se dividido entre o impulso para a diferenciação, conhecer o pai como terceiro, e o impulso que tem uma expectativa grandiosa para com o filho. É por este motivo que o filho põe em dúvida a sua revelação, pois deseja fazer a diferenciação entre o seu desejo e desejo da mãe.

Os amigos de Faetonte tentam em vão dar-lhe a medida de realidade, mas ele sente-se incompreendido. E, para preencher a falta do pai real, constrói a fantasia de um pai arquetípico. A carência do símbolo do pai, encarnado num pai real que possa lhe oferecer o princípio de realidade e os limites para a sua personalidade, o leva a preencher esta necessidade. Através da vivência direta do arquétipo, sem a intermediação humana. Faetonte constrói a fantasia onipotente na qual se vê como o filho do Sol: o pai arquétipo que distribui a luz, a fertilidade e rege o ciclo da natureza.

O desejo de liberta-se da mãe leva a criança, de ambos os sexos, a projetar o poder sobre o pai e o seu símbolo, o falo, e a retirar a libido da mãe e de seus símbolos.

Existem em Faetonte o desejo autêntico de conhecer o pai, como um impulso natural de sua psique que almeja a discriminação, a quebra da onipotência e a vivência da castração. Embora ele não possa, ainda, abdicar da onipotência, ele busca o pai como um segredo objeto para a sua identificação. Mas Faetonte deseja se identificar com um pai grandioso e onipotente. O seu pai é Hélio, o Sol.

A criança necessita sentir o pai, de certa forma, engrandecido, para que possa renunciar à identificação com o poder materno.O poder do pai, nesta etapa do desenvolvimento, precisa superar o poder da mãe, para que a criança deseje fazer a troca e se sinta suficientemente gratificada na mudança de objeto. O objeto que substitui o objeto primal precisa ter uma qualidade atraente. Neste sentido, as idealizações grandiosas em relação ao pai cumprem este papel.

Num determinado momento do desenvolvimento, a etapa fálica, o menino sente, também, o impulso para definir a sua identidade masculina. Esta necessidade aflora com muita força a partir das profundezas do inconsciente coletivo, do interior do Self, como o centro impulsionador do desenvolvimento. O menino se identifica com os heróis e os heróis de Hera, a rainha do Olimpo, de acordo com a raiz etimológica do nome herói. Nesta identificação, a psique mostra a necessidade de que um objeto de poder libidinal mais forte atraia para si o investimento objetal que deve ser retirado da mãe. Faetonte, como todo herói, busca a sua diferenciação.

Faetonte procura um pai grandioso com o qual possa se identificar e assim abandonar a casa da mãe. Ele busca um pai que o ajude a definir a sua identidade masculina, que lhe forneça um modelo adequado onde possa, também se espelhar e se reconhecer, o que fará o corte definitivo da sua identidade com a mãe, da relação simbiótica com o poder materno.

Segundo o vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, a identificação é: “O processo psicológico pelo qual uma pessoa assimila um aspecto, um propriedade, um atributo de outra e transforma-se total ou parcialmente a partir deste modelo”. Faetonte busca um elemento comum entre ele e o pai que os torne iguais e que estabeleça a diferença entre ele e a mãe.

 Embora sua mãe tenha-lhe impedido o acesso ao pai e ao "Nome do Pai", a sua psique reage ao desejo possessivo materno e o impulsiona para a busca do pai, a busca do outro. O seu desejo torna-se diferente do desejo da mãe. E assim ele começa a marcar a sua individualidade.

Faetonte é impelido para o futuro. Ele abandona a casa materna e parte para uma longa jornada iniciática, para conhecer o pai, para torna-se homem. A busca da diferenciação corresponde, simbolicamente, a um processo iniciático. Mas esta tarefa não é fácil, pois a transferência e passagem de uma identificação para outra tem os seus riscos e perigos. É por isto que em muitas culturas antigas esta passagem era feita através de ritos iniciáticos que lhe forneciam a continência simbólica necessária a este momento delicado. O rito iniciático tinha a função de orientar o abandono oficial do mundo da sua mãe, do mundo familiar, para a entrada no mundo do pai, no mundo social, no mundo exterior.

Como não existe na sociedade moderna o auxílio destes instrumentos facilitadores da passagem, o papel do pai real, como agente facilitador e continente desta passagem, assume a máxima importância. Neste momento, a presença do pai ou de alguém que o substitua em sua função e papel é imprescindível para que o arquétipo do pai, como portador da civilização, possa ser encarnado e para que o filho possa cair na identificação com a mãe. Quando a criança não se desidentifica da mãe, ela permanece fundida ao próprio inconsciente.

Faetonte abandona a casa da mãe, o mudo matriarcal. Ele se desidentifica do poder materno e entra no mundo do pai, no mundo patriarcal, que possui outro brilho, a luminosidade da consciência. O palácio de Hélio brilhava como o ouro. O ouro representa o Sol e a consciência, assim como a prata a lua e o inconsciente. Faetonte realiza a difícil passagem sem um condutor que o acompanhe nesse percurso. A necessidade do pai neste momento é fundamental, porque na sua ausência o arquétipo não encontrado respaldo na realidade para a sua vivência, pode assumir características grandiosas e onipotentes. A necessidade do pai nesta etapa do desenvolvimento, quando o filho não encontra no exterior o objeto no qual recairá a expectativa inconsciente, permanece arcaica e será alimentada pelos conteúdos do inconsciente coletivo. Quanto mais carente for o filho de um pai que seja continente para as suas necessidades e expectativas, mas este filho tenderá a construir uma imagem grandiosa e primitiva do pai.

Faetonte faz a sua longa jornada, movido por este desejo de encontro com um pai. Na ânsia de conhecer o pai, o herói escalas longas e árduas encostas e repentinamente vê-se mergulhado na luz… A psique do personagem está mobilizada com essa expectativa: o desejo de encontro com o pai que o ajude a fazer a passagem necessária, a saída do mundo da mãe.

O pai, como representante da lei, impede a busca da satisfação narcísica pela criança e faz a mediatização entre o desejo e a lei, entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. Mas, como Faetonte não possui uma imagem encarnada do pai, ele está preso à imagem arquetípica que é grandiosa e numinosa. A casa do pai é percebida pelo herói com um brilho imutável e que quase o cega. Ele percebe a numinosidade do arquétipo sem a mediatização de um meio que dilua o seu poder, isto é, a sua numinosidade, é desestruturante para o ego. O excesso de luz pode cegar, porque a consciência humana é limitada para perceber tanta luz. A numinosidade do arquétipo é uma experiência avassaladora para o ego e corresponde ao Mysterium Fascinans.

Na ausência do pai, o herói busca na imagem arquetípica a realização do seu desejo; o encontro com a lei do pai, que o leve a fazer a discriminação, a separação definitiva da natureza. Mas a numinosidade do arquétipo quase o cega e este pai onipotente com o qual ele entra em contato é Hélio, o deus-Sol, sentado em seu trono de esmeraldas.

Faetonte, diante do poder do arquétipo, põe em dúvida a própria onipotência e, pela primeira vez, tem a medida da sua onipotência. O arquétipo do pai traz a possibilidade de marcar a separação do mundo da mãe e a quebra da onipotência. A renuncia à onipotência liga-se ao doloroso reconhecimento que a criança faz de sua pequenez, de sua onipotência, diante do poder do pai.

 A vivência do símbolo do pai opera uma mudança na psique, que necessita ser atualizada na vida consciente. Parece já existir a mobilização interna no herói para a vivência da castração através da constelação do arquétipo do pai como detentor da lei que não sofreu a castração, aquele que tem a posse absoluta do falo, o “ao menos um” de que fala Lacan. Este “ao menos um” é Helio para Faetonte. O símbolo do pai como poder discriminador substitui o símbolo da mãe.

Faetonte faz a sua entrada na casa do Sol, no mundo patriarcal. O nascimento da consciência solar patriarcal já pressupõe o corte com o mundo lunar matriarcal e demarca a saída do estado narcísico. Faetonte, com a sua entrada no mundo solar, se abre para um universo de novas possibilidades que é o mundo do pai.

O mito diz que Hélio é aquele que tudo vê. O ato de ver se refere ao conhecer, ao discriminar; portanto, o ver está relacionado à consciência e ao conhecimento. É através do olhar que se faz a discriminação. Que se ordena o conhecimento do mundo. A visão que ordena o mundo como espaço ordena também o tempo e coloca o homem dentro desta dimensão espaço-temporal, que é a medida humana, que o tira da onipotência.

O conhecimento do pai retira a criança da vivência da eternidade e a coloca dentro da dimensão espaço-temporal, histórica, na qual a realidade se ordena em presente, passado e futuro. Faetonte tem a oportunidade de adquirir a consciência de seus limites e limitações, o que significa conhecer a sua medida, o seu métron.

O pai ajuda o filho a adquirir o conhecimento da noção de identidade e de individualidade, da percepção dos contornos psíquicos e das fronteiras que distinguem o eu do não-eu. Com o aumento da consciência da individualidade há, paralelamente, um aumento da consciência do outro. E a percepção da individualidade do outro aumenta, por sua vez, a percepção do eu.

O pai tem um importante papel de auxiliar o filho a conhecer os conteúdos psíquicos que precisam ser postos a serviço do desenvolvimento do ego como, por exemplo, a agressividade usada como autodefesa e auto-afirmação. No processo de desenvolvimento do ego e da noção de individualidade é fundamental a presença do pai ou de um substituto, que permitirá a criança a exploração e descoberta do mundo externo e social, assim como o desenvolvimento da objetividade e de outras aptidões que devem ser experimentadas e exercitadas no mundo. É por isso que Hélio permite a Faetonte dirigir o seu carro, embora o deus sabia que isto constitui uma hybris. Mas hélio também sabe que ele deve dar ao filho a oportunidade de se exercitar no mundo, para encontrar a sua própria medida.

O contato com o pai dá a Faetonte a possibilidade de encontrar a sua medida, mas ele deseja a identificação onipotente com o poder do pai, com o falo, e pede a Hélio para dirigir a sua carruagem. Para mostrar a sua onipotência o arquétipo sempre se expressa em sua plenitude: Hélio promete a Faetonte satisfazer todos os seus desejos. O deus sabe que a onipotência e a desmedida trazem, também, a oportunidade de confronto com a medida de cada um e, desta maneira, deseja levar o filho à vivência da castração.

Neste momento, o arquétipo do pai age como a lei que retira da onipotência mostrando os limites, embora a sua conduta possa dar a entender o contrário. Muitas vezes, é excedendo as próprias medidas que se pode chegar à consciência real dos próprios limites. E Hélio, como um deus, como o conhecimento do Self, sabe disto e impõe a Faetonte o seu pathos,o sofrimento para a sua transformação. Mas o seu castigo é também um prêmio.

Faetonte sobe na carruagem do Sol mas, como a tarefa estava além de suas possibilidades, acaba em chamas. Faetonte desejava experimentar a sua força, objetividade, determinação, mas além dos seus limites, num desejo de afirmação narcísica. A realidade oferece a oportunidade de conhecimento da própria medida. Faetonte é obrigado a aceitar a lei do pai, que pune com a autodestruição aquele que comete a desmedida. Toda onipotência é, em si mesma, autodestrutiva. Dirigir o carro do Sol foi um descomedimento de Faetonte.

O carro do Sol é a representação do poder fálico do pai, que só pode ser adquirido quando se deixar de ser o falo, quando se houver sofrido a castração. O carro do Sol representa o percurso do Sol no céu, de um extremo ao outro, do Oriente ao Ocidente, e simboliza a onipotência solar que tudo abrange, tudo vê e tudo ilumina. O carro do Sol não conhece limites nem obstáculos, anda depressa, livremente, por toda parte. É a representação adequada do poder fálico do pai e da sua condição de incastrado.

Faetonte, desejando dirigir o carro solar, aspira à condição de detentor do poder fálico e à condição de incastrado e, por isso, é punido. “A felicidade, como a infelicidade, desce sempre do céu.” Esta é uma idéia que está presente em muitos contos de fadas e traduz a noção de que o destino é também determinado pelo pai do céu.

O carro é muitas vezes associado ao Sol, ao poder do pai, mas o carro é também a representação do ego. O fato de Faetonte desejar dirigir o carro do pai mostra um impulso da psique para a construção do ego, que toma como modelo o pai arquétipo. O carro é o veículo do guerreiro e do herói e Faetonte é a representação do jovem ego, do herói em busca da construção de sua individualidade.

Saber conduzir um carro é saber lidar com a noção de tempo e espaço, que são os parâmetros básicos que definem a condição humana. Conduzir um carro é a representação simbólica da capacidade do ego de usar suas potencialidades e habilidades e ter sob controle os seus impulsos, desejos e vontade.

Aquele que conduz o carro representa tanto a natureza espiritual do homem quanto a sua natureza material. No aspecto material, representa o desejo do homem da posse e do controle dos bens materiais, seu instinto de conservação e de destruição. No plano espiritual, representa a busca do controle dos instintos e das paixões desenfreadas. O carro e seu condutor representam o homem e a forma como ele lida com a realidade, o seu maior grau de consciência ou de inconsciência.

 O carro e seu condutor representam tanto o processo do desenvolvimento egóico quanto o processo de transformação espiritual da individualização. Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, o carro aparece, de acordo com uma tradição védica amplamente difundida, como o veículo de uma alma em experiência; ele transporta esta alma pelo tempo que dura uma encarnação. O carro de fogo, ainda segundo estes autores, é um símbolo universal do carro alado da alma. O carro é, portanto, a representação do ego, o veículo que possibilita a expressão do Self individual, que transporta a psique em sua experiência humana.

Faetonte, como todo herói, comete a hybris que leva à sua transformação: dirige o carro do Sol e é punido por isto. Hélio aparece, neste momento, constelado como a representação da lei do pai que instaura a castração simbólica, punindo aquele que comete a onipotência.

A imagem de faetonte em chamas também corresponde à vivencia da castração simbólica que o transforma, pois o fogo tem o caráter simbólico de agente transformador e transmutador da libido. Faetonte consumido em chamas tanto corresponde à saída da onipotência e á entrada na castração, no mundo simbólico, quanto é a continuidade do processo de desenvolvimento do homem na busca de sua transcendência e espiritualização. Segundo Chevalier e Gheerbrant: “Toda representação de um personagem a arremessar-se impetuosamente num carro de fogo em direção ao domínio da imortalidade é o símbolo do homem espiritual, a destruir pelo caminho seu corpo físico em benefício de uma ascensão excepcionalmente rápida.”

 Faetonte vivencia o processo metafórico que lhe possibilita o acesso ao mundo simbólico através da experiência da castração. A castração, que corresponde à perda da onipotência narcísica, pode ser sentida como um dano narcísico ao eu corporal.Faetonte em chamas pode representar ainda a imagem da vivencia do sentimento de dano narcísico ao corpo.

Este fogo no qual faetonte é consumido não tem somente o significado de autodestruição, mas pode significar a transmutação de um estado para o outro e corresponde ao batismo pelo fogo que capacita o iniciado a fazer parte de uma comunidade. O batismo pelo fogo é similar ao batismo pela água. Faetonte sofre o batismo de fogo que o capacita a ingressar na ordem do humano.

Os fogos solar e celeste são fogos uranianos que representam a sabedoria divina, pois são a extensão ígnea da luz.O fogo que queima Faetonte é o fogo do pai, o fogo masculino, que marca o afastamento do herói de sua natureza animal e possibilita o acesso à ordem simbólica e espiritual. Este fogo solar simboliza a ação fecundante, iluminadora e civilizadora do masculino. E, nessa ação purificadora, o fogo de Hélio se distingue da purificação pela água, porque ele traz a luz, a consciência, à compreensão simbólica e espiritual.

A castração, representada neste mito como queima pelo fogo, traz a compreensão da lei, da ordem e da lógica fálica, o que possibilita transformar o desejo onipotente de ser o falo na compreensão de poder vir a ter o falo simbolicamente. Este episódio é a representação simbólica do desenvolvimento do herói Faetonte, da sua perda da onipotência, da sua queda, que o leva a se transformar; a libido narcísica é transmutada.

A morte de Faetonte não é a morte do eu corporal, é a morte do estado de fusão com o Self primal, da onipotência. O nascimento da consciência do eu, da existência do outro, deferente de mim mesmo, do tempo e do espaço, corresponde à morte do estado paradisíaco de eternidade. O ego-herói se torna consciente de sua identidade e, ao enfrentar as provas necessárias, morre e se transforma.

A morte do herói que constitui o encerramento de suas provas é, geralmente, trágica, violenta e solitária. A morte de Faetonte como herói tem o significado de sua redenção. Segundo Junito de Souza Brandão, a morte do herói é “o clímax de sua dokimasia, do conjunto de provas por que teve que passar e que o transforma em daimon, um intermediário entre os homens e os deuses e cuja tarefa é chegar à unidade”.

A morte do herói é o final de seu pathos,é a anagnórisis: o conhecer-se por inteiro, isto é, o processo de individualização. A morte representa simbolicamente a realização da totalização, a conjunção das polaridades de forma diferenciada. E o céu e a terra se unem para finalizar o sofrimento do herói. A pedido da terra, a grande deusa, Zeus dispara o seu raio certeiro, lançando Faetonte morto no espaço.

O herói completa o processo da vivencia de castração e assim pode unir as polaridades no processo de individualização: o céu com aterra, a água com o fogo, o mundo inferior com o mundo superior. A Grande-Mãe renuncia a posse do filho e o pai pode deixar a sua lei. 

 

Revista de Artes, Letras e Ciências, nº 3, Janeiro de 2010

Capítulo do livro O mundo do Pai (Mitos, Símbolos e Arquétipos), Editora Cultrix, São Paulo, de Raïssa Cavalcanti (Brasil). Psicoterapeuta junguiana, autora de livros como Retorno do Sagrado e Símbolos do Centro. Contato: raissacavalcanti@uol.com.br.

O mundo do Pai trata do arquétipo do pai, da questão essencial do desenvolvimento da personalidade e da estrutura do mundo social. A perda da onipotência e o desejo sob a lei do pai, assim como o arquétipo do pai, símbolo da estruturante da personalidade que retira a criança do matriarcado para o patriarcado, constituem também alguns de seus temas. O livro reconta a saga mítica do herói, na qual o pai é o instaurador do princípio da realidade e a criança, nas suas diversas fases evolutivas simbólicas, refaz o caminho da humanidade em direção ao desenvolvimento e aa autonomia do ego. A autora, a psicoterapeuta brasileira Raïssa Cavalcanti, através dos mitos, dos símbolos e dos arquétipos, esclarece de maneira extraordinária a compreensão do patriarcado e, como polaridade, rediscute a função do matriarcado. Num dos mais completos e originais estudos dessas questões, a autora analisa prometeu, o pai dos homens; Faetonte, o mito do pai ausente, os pais míticos: Urano, Crono-Saturno, Zeus, as filhas do pai: Têmis, Afrodite, Mnemósina, Héstia, Deméter, Hera, Atena, Ártemis, os filhos amados do pai: Apolo, o enviado; Dionísio, o mundo das múltiplas formas; Hermes, o mensageiro. Este livro, portanto, é um estudo inovador, indispensável para compreender o processo de desenvolvimento do ser humano e as bases psicológicas onde se alicerçam os fundamentos da civilização.

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