Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

5. Procurando um pintor, encontra-se outro

Quase tive de me agarrar a mim mesmo por debaixo dos braços para me levantar. Que comportamento, que mentalidade tão distantes de um polícia, Eduardo! E já começava a ficar cansado de me censurar, de me auto-flagelar, e de me elevar a auto-estima, caraças, estava a fartar-me de mim mesmo!

Voltei para trás, comi um prego num restaurante do Largo de Camões e mais reconfortado de espírito encaminhei-me para o Fragilidades. A bela apesar de elefantina mulher que fazia a segurança à entrada  deu-me passagem desviando de mim o olhar.  Para não ter de levantar problemas aos sapatos enlameados, à roupa molhada, sei lá! Ia apanhar uma valente constipação de certeza, chuva na cabeça, então, ataca-me logo a garganta!

A fumarada tinha aumentado entretanto, vogavam vultos vagos pelas salas, de copo na mão. Os putos da festa punk, esses, apesar do simulacro ainda tinham tomates, pensei, a fim de desviar de mim a atenção. Transpiravam violência. Estes, apáticos, snobs, envoltos em sudários de seda, desafiavam fantasmas. Até o bar lembra um sepulcro, escuro, as máscaras negras penduradas, as crípticas telas de Cabrita Reis a vedarem passagens para as zonas claras da racionalidade.  

— Você não imagina o tipo de relações que se transam por aqui — comentou para mim um tipo de barbas, erguendo o copo em jeito de saúde.  — É a primeira vez que o vejo por cá, procura alguém? — na curiosidade que demonstrava li um não sei quê de viscoso, de impudor. Desagradou-me aquela abordagem sem apresentação nem preliminares, parecia-me sôfrega. A que transas se referia? Eu só via na sala grupos de pessoas solitárias, ansiosas por se ancorarem ao primeiro que aparecesse. A menos que a transa fosse essa, a de jogar tudo em tudo, mesmo no escuro. E reparei nas mãos fechadas sobre o copo daquele gajo que tinha na cara uma máscara desaforada.

— Procuro um tipo, um pintor... — respondi, tempos passados, ante o seu olhar ansioso.

— Pintores é o que por aqui há mais... — fez ele, desapontado, mostrando a sala em toda a sua amplidão.

— Dizem que se chama Gilberto — acrescentei, sem vontade de me envolver.

- Ah, o Gilberto! Coitado!... - o lábio caído denunciava menosprezo, olhou para outro lado, desinteressando-se.

— Coitado?!...

— Não vale nada, é um pinta-monos... Nunca expôs, pelo menos em galeria de jeito... Umas colectivas insignificantes em bares, átrios de hotel, sítios assim... Você vá ver, não tem a noção do movimento, da perspectiva... Para não dizer que lhe falta técnica, não sabe nada de anatomia... Bonecos disformes, parados, a duas dimensões...

O gajo irritava-me, era demasiado emproado, demasiado superior. Desses que se julgam os maiores, de opiniões formadas, inabaláveis. Não posso com gente de opiniões, se uma pessoa encosta só um bocadinho o snob à parede, verifica que é pessoa sem qualidades nenhumas, menos ainda que as do pinta-monos. Mas a mim interessava-me a investigação, precisava de descobrir a cassette, tudo o que me levasse ao criminoso, por isso nem dei atenção à dica de que o tal Gilberto estava naquele momento a pintar no Fragilidades, ou a preparar-se para começar.

— Talvez o seu objectivo seja mesmo esse: mostrar as pessoas como elas são, paradas, num espaço a duas dimensões... — defendi, para alimentar a conversa. — Numa dimensão que fosse, o que interessa é a capacidade de captação do real — acendi, sem saber exactamente o que estava a dizer.

— Você andou a ler o Umberto Eco, e deve ser partidário do hiper-realismo... Olhe, viu aquela exposição de esculturas hiper-realistas nos jardins da Gulbenkian, aqui há tempos? Vou-lhe contar: aquilo enganou-me mesmo, a páginas tantas até pedi desculpa a uma senhora por lhe ter dado um encontrãozito, e depois senti a rigidez do corpo... Provocou-me náuseas, sabe? Uma arte tão verista que nos engana só pode causar-nos náuseas... Eu estou farto de realismos, já conhecemos tantos realismos, desde os clássicos, e na verdade tudo o que fazemos é realista, com maior ou menor grau de desvio e com maior ou menor aproximação de realidades estranhas ao conhecimento comum. A realidade dos surrealistas, por exemplo, é a realidade onírica, freudiana... Olá, querido! - cortou, abraçando um jovem louro. - Olhe que o Gilberto está lá dentro, vá lá ter com ele - disse ainda, com um gesto de adeus.

A história do homem unidimensional de Umberto Eco estava na moda, e eu não me tinha enganado: aquele gajo devia ser pintor também, podia já ter feito alguma exposição individual e até em bom galerista, mas não tinha nomeada nenhuma.

- Esse tipo que vai ali abraçado ao rapaz louro, quem é? - perguntei ao barman. Ele fez sinal de não ter ouvido, insisti, elevando a voz.

- Manuel Santos, pintor - respondeu ele, chocalhando bebidas explosivas na misturadora.

- E que pinta ele? - insisti, gritando.

- Olhe, só conheço os quadros que expôs aqui mesmo, há meses: eram imagens geométricas, quadrados, triângulos, linhas...

E nada mais se conseguiu entender, a batida de Michael Jackson abafava o marulhar das conversas e o vídeo projectado na parede convocava para a sua electrizante performance todos os olhares. Este tipo não é humano, é um íman! - e fiquei também eu de olhos cravados no cantor-bailarino.

Michael Jackson, «Billie Jean»

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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