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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.
IV - OS PASSOS EM VOLTA
6. Regresso ao lugar
 

A saída de casa é condição indispensável para o regresso, faz parte da dinâmica do conhecimento, como deste faz parte o diálogo gerado por pergunta/resposta, ou pergunta/ausência de resposta. Saber de si passa pelo saber dos outros e do outro de si. Só nestas condições a existência pode ser assumida com as duas proposições equivalentes: existo porque me pensas/existes porque te penso.

A função narrativa do regresso não existe só no último texto, embora este o explicite da forma mais clara, por alusão à parábola do filho pródigo. Digamos que Os passos em volta tem uma originalidade: sendo os 23 textos completamente diversos, até no estilo, todos eles são gémeos: em todos podemos encontrar uma morte e uma ressurreição («Aquele que dá a vida», «Equação» ; em «Teorema» a escrita-alimento permanece viva sobre uma dupla morte), ou uma partida e um regresso.

Cada texto funciona como uma das 23 imagens do livro todo, do Todo: 23 são os passos (as voltas) necessários para atingir a casa central, o corpo que, sabemo-Io, pode ser simbolicamente expresso pelo número cinco. Cinco eram os assassinos em «Aquele que dá a vida» : o corpo revoltado, os cinco dedos da mão esquerda. Também «Cobra» tem cinco letras, e três delas são as de corpo. O cinco funciona como número mágico na obra do autor: o signo das núpcias do passivo (dois) com o activo (três). Significa o número central, a cruz, entendendo por cruz a projecção de um eixo vertical sobre um eixo horizontal com cruzamento num ponto nuclear. Tal projecção representa a arquitectura simbólica tanto do corpo macro como microcósmico.

Independentemente do seu valor operatório, será talvez curioso verificar que para Jakobson a poesia se reduz à arte de combinar e de seleccionar, sendo que a selecção se verifica no eixo vertical - paradigmático -, e a combinação no eixo horizontal - sintagmático. Ou seja: a poesia, para Jakobson, tem como arquitectura de base a projecção de um eixo vertical sobre um eixo horizontal, a arquitectura afinal do corpo humano. Em termos de pensamento poético, a concepção de Jakobson coincide perfeitamente com a concepção herbertiana da poesia: a unificação no poema-corpo do corpo humano, verbal e cósmico.

Continuando com a decifração do enigma do número cinco, direi que ele representa o corpo, porque são cinco os sentidos, cinco as extremidades do corpo, e cinco os dedos de cada membro: a acção individual, a Acção, em suma. Mas o número cinco não representa apenas o centro dinâmico do microcosmos humano e a arquitectura do universo. Na Numerologia ele é atribuído à Poesia. Veja-se, então, que tal símbolo pode concentrar em si a totalidade dos sentidos da obra herbertiana, e ligá-Ios indissoluvelmente a si próprio como seu procriador: o cinco aponta o poema-corpo, a rebis poética constituída por poeta e língua-mater.

«Poemacto» (6), o poema da 'criacção' por excelência, da acção corporal unificada, tem cinco partes. O nome do autor soma catorze letras, o que novamente dá resultado cinco. Cinco são as partes de «Cobra», «Cinco canções lacunares» (34) , quinto o mês escolhido para duas biografias corporais: «Narração de um homem em maio» ( 49) , e «Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio» (33). Cinco mais cinco são as letras de «Poesia Toda», «toda» porque encerrada na totalidade deste número mágico.

Além do número cinco, há apenas outro com alguma reduzida importância simbólica - o doze : exprime uma unidade de tempo, um ciclo. Mas a unidade de tempo mais importante, significando qualquer tempo, será a expressão «um mês», frequentíssima na obra.

A viagem no exterior vale em função da viagem interior. Da sua experiência torna-se possível o regresso, e o mergulho na trama de sangue de que se faz o poema. Por outro lado, há necessidade de um suporte material - simbólico - que possa representar o interdito.

As viagens pela Europa, em «Os passos em volta», correspondem, no plano da linguagem poética, a uma peregrinação a Santiago de Compostela, por exemplo. Quero dizer que, efectuada ou não, a peregrinação representa outra coisa: ela não é aquilo de que se fala, mas aquilo com que se fala daquilo de que se não chega a falar explicitamente (note-se que sendo autobiográfica a escrita do autor, não existem dados biográficos explícitos de natureza histórica e social, mas tão-somente a grafia do corpo, ou seja, a sucessão interminável de exercícios corporais).

Muitos daqueles que descreveram minuciosamente a sua viagem a Santiago de Compostela nunca lá foram de verdade. Não foram por saberem que não era essa a viagem a fazer. Simplesmente, o percurso de facto realizado não podia ser narrado. Se há um dever de dizer, há também o dever de não dizer. Nessa razão se fundam alguns graus avançados de ciências antigas ou modernas e a salvaguarda das razões do corpo. Se é certo que o autor muito diz, afirmando várias vezes não ter «nada na manga», muito também oculta, pois não escreve comunicações académicas, escreve poemas. Em muitos sentidos Herberto Helder é com efeito um poeta obscuro.

O percurso topográfico - a peregrinação - representa de forma visível um trajecto invisível, não em superfície, mas na dimensão psíquica - mítica - de profundidade. Viagem perfeitamente ucrónica e utópica.

Para terminar, «Os passos em volta», além de vinte e três textos de excepcional qualidade poética (como aliás é usual, neste poeta muito grande), são os passos de um homem que tenta inquirir o sentido da (sua) existência: saber porque está aqui, donde veio, para onde irá. Não lhe vindo nenhuma resposta do transcendente, e na certeza de haver uma transcendência não metafísica na vida, todo o transcendente será transportado para a matéria - a Mater - do presente. O único sentido para a vida será o poema-corpo: daí partiu, aí regressa o viajante que das coisas vistas e sentidas trouxe a sabedoria vil, esmagadora: saber tudo, no fim da idade, corresponde ao nada saber no seu início. Todo o milagre se coloca no corpo. A consciência trágica da ignorância daquilo que poderia remir a agonia do homem que caminha e se senta na sua idade será a sua grande sabedoria. Por isso a criança é sagrada, sagrado o corpo, e sagrado o que nasce de um corpo aberto de facadas por todos os lados: a poesia, o poemacto, o lugar mais alto. É aí que o percurso da idade assume carácter redentor porque, devorando o poeta, o poema o recria em eternidade. Assim o viajante atinge, de facto, o reino de Utopia: um lugar de sol no país da linguagem.

 




 




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