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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.

IV - OS PASSOS EM VOLTA
VIAGEM E UTOPIA
2. Locus clausus

 

O que há de fascinante na viagem empreendida pelo poeta é a possibilidade de passagem de um lugar - o tempo do conhecido - para outro lugar - o tempo do desconhecido, aquele que abala a consistência do sujeito do conhecimento. Passar de quarto para quarto, como se diz em «Apresentação do rosto» (24) e no diálogo «O quarto», obriga à adaptação a objectos que, sendo novos, oferecem resistência. Neste texto, a última divisão da casa em construção, aquela cujo chão não será assoalhado (para não haver fronteiras entre elementos da mesma natureza e se deseja de novo conjugados - o corpo e a mater) é o lugar onde o dono da casa encontrará, após longas deambulações pelos vários continentes, a revelação máxima da sua existência.

Chegado ao fim da idade e caminhadas, quem manda construir a casa nova (destinada a abrigar o homem novo, alguém de regresso à primitiva pátria) resume deste modo o saber alcançado:

«Percorri a Europa, a América do Sul, África. Estive na Austrália, no Japão. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países.»

O percurso propriamente topográfico - a peregrinação - apenas ensina a igualdade entre todos os lugares e pessoas, ou seja, ensina que não pode vir desse tipo de percurso a verdadeira sabedoria. Por isso, a última viagem deste homem vai reduzir-se a passar de quarto para quarto, em itinerário interior, feito em locus clausus : a casa nova, construida na solidão de uma colina inclinada sobre o mar, com a última e enigmática câmara não assoalhada.

Casa e quarto são motivos espaciais dos mais frequentes na obra herbertiana, e particularmente em Os passos em volta. Nenhum destes lugares fechados está ao serviço da representação de qualquer situação doméstica: os animais domésticos (24) são justamente aqueles contra os quais se ergue a maior agressividade do poeta. A ira explode contra a domesticação, todas as defesas se conjugam para salvaguardar a liberdade individual. Os animais carnívoros (30) têm de manter-se fora do alcance das garras dos cães, e para isso se constroem as oficinas explosivas (52). Se a luta se aproxima, para o poeta só há uma alternativa: «Vence ou morre» (Aquele que dá a vida). Em «Cães, marinheiros» morre. Mas não foi domesticado. A única forma de não ser caçado será o abandono do exterior e instalação na fortaleza interior.

Em OPEV a maioria das acções desenrola-se em locus clausus, na clandestinidade das câmaras, quer porque o poeta acaba de chegar do estrangeiro e aluga o quarto de onde fala («Escadas e metafísica»), quer porque se instala no quarto de onde fala ao chegar ao estrangeiro («Os comboios que vão para Antuérpia»), quer porque alguém sai e regressa a casa («Aquele que dá a vida», conto-chave de OPEV). Esteja onde estiver, o quarto situa-se sempre no território corporal, sendo estrangeiro todo o espaço exterior, se entendido como sistema social. Em todo o caso, há sempre menção do trajecto feito ou a fazer entre estes dois espaços : o herói é itinerante e a itineração verifica-se entre o individual e o colectivo. Naturalmente, os motivos quarto e cidade, cidade estrangeira ou não, funcionam em dimensão simbólica, a-topicamente.

O que define o espaço fechado será o paradoxo estabelecido com o espaço aberto: o locus clausus, em termos de conhecimento e liberdade individuais, revela-se o lugar aberto por excelência, opostamente ao campo aberto, que de facto redunda em sistema fechado, inabitável. Na sua interioridade aberta e grande disponibilidade para entrar em comunicação com o radicalmente diferente, o locus clausus instaura o verdadeiro espaço sagrado.

A Europa dos vinte e nove anos (1), enquanto realidade concreta experimentada pelo viajante, isenta de formações imaginárias que sobre ela o poeta projectou, é espaço profano, desértico, instituído em sistema fechado. O trânsito entre os dois espaços polares -trágico - aparece claro nesse estranho e muito intenso conto «Aquele que dá a vida».

O homem dormiu longamente em sua câmara e ao acordar , sentindo-se forte, resolve sair até à festa dos homens. Atravessa os campos lavados de sol, para chegar ao centro da praça que é centro da aldeia. Aí se realiza uma tourada, durante a qual o toureiro é ferido pelo animal. O homem salta para a arena e salva o outro, vencendo o seu touro. O toureador não lhe perdoará tão grande humilhação. De noite, fazendo-se acompanhar por quatro aldeões, invadem todos a casa do homem e esfaqueiam-no em acto de represália. Note-se que antes da imolação os cinco assassinos consentem ao homem a sua última ceia, convidando-o a beber vinho. O homem acabará por ressuscitar, o sangue (o arbusto de fogo) cuidadosamente preservado, quando inteiramente se envolve em linho. O linho ainda em rama, não tecido, surge com poderes regeneradores por se tratar de produto natural, naturalmente vindo da terra; do contacto com as coisas puras e primordiais o poeta alcança superar as suas numerosas mortes, ressuscitando :

«Descansa um pouco e começa a rolar-se sobre si próprio, para que o linho o envolva completamente. Envolve-se nos flexíveis fios de linho, e descansa. Descansa o bastante para ter força de se envolver uma segunda e uma terceira vez, e ainda uma quarta vez, nos fios de linho. Fica inteiramente coberto de fios de linho, excepto os braços e a cabeça. Porque nem os braços nem a cabeça estão feridos.»

Fios. Fios de linho, linhas, religam o corpo à terra e à vida. A obsessão do poeta será sempre ligar-se, soldar-se às fontes energéticas. Do confronto com o sistema social, expresso aqui em termos de honra ferida, o poeta sairá atingido em todo o corpo excepto nas mãos que lhe permitem escrever, e na cabeça que lhe permite pensar e sentir: são os órgãos de resistência.

A preocupação do homem ferido será não perder o sangue, das energias, a mais fundamental. O sangue aparece frequentemente na obra herbertiana, e pode ter origens e naturezas diversas (42). Interessa neste momento o sangue como essência vital de que depende a escrita. Como já foi observado, o poema mais não faz do que representar biograficamente o corpo, aqui interno, com os seus sóis orgânicos e arbustos de fogo, cálcio ou sangue. O sangue é energia pura. Se o associarmos ao seu familiar fogo, ficamos com a explicação da vocação animal, a inspiração poética: a capacidade do animal para comunicar com outras zonas, criando o seu próprio imaginário :

«Sou o sangue em busca de como há-de bater nas mãos e nos pés, através das galerias, como um ramo de ventania a bater no espaço da ventania.

Mexes-te pouco, é o sono que te leva, as mãos tremem, os pés apanham os passos um pouco atrás, o coração é terrível como um órgão oculto - mas a boca exposta é que é o órgão do amor.» (43)

Fica claro neste fragmento o valor do sangue; o sujeito reduz-se completamente a tal essência; o sangue move-se, bate, transforma, faz o canto na boca - o órgão do amor, da poesia. As galerias atravessadas são os labirintos do universo mágico do poema: só no espaço do imaginário podem existir «ramos de ventania», forma de estabelecer relações filiais - tecer fios - entre vento e árvores, entre estes e o corpo. O corpo é um tecido de ramos e galerias percorridos pelo sangue, pelo cálcio e pelo mel.

O elemento ígneo-sanguíneo aparece nos primeiros textos do autor ligado à beleza, nos últimos, desprezada em parte a beleza (sobretudo a que se apoia em melodias) em favor da energia; o sangue passa a suportar o poema quase inteiramente em termos energéticos, a ponto de o poeta destruir toda a sua arte à excepção dos pontos fortes, aqueles onde está o sangue. Quer dizer que a tendência do autor, com o andar do tempo, foi deslizando do entendimento da beleza como motor central da poesia para o entendimento de que, mais que a beleza, a energia e a violência são os elementos básicos da construção poética, da poiesis. Embora a beleza deixe de ser considerada factor essencial, na verdade permanece nos textos, disso sendo admirável exemplo o poema «Cobra». Cito dois fragmentos em que se verifica a mudança de perspectiva sobre a natureza poética :

«Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.» (4)

«............................ Destrói:
esta paisagem eternamente em órbita em torno
deste eixo.
Este show treinado como um movimento da terra
Com o seu furo incandescente no meio, destrói.
Empurrar as cabeças cheias de relâmpagos para todos os lados
Como frases
Com fósforo. Cortar aos pedaços.
Quando o vídeo brilha como uma janela como um lirismo
arrebatador. Deitar fora. Ver e marcar onde está o sangue, só.» (13)

A maior preocupação do homem, em «Aquele que dá a vida», será por consequência não perder o sangue, o sopro vital. Renascido, procura quem o apunhalara, e este terceiro encontro verifica-se no lugar do primeiro, lá, onde o touro fora vencido. Pela segunda vez o homem vence uma fera, em combate singular: o castigo do outro é deixá-lo viver. Uma condição, apenas: o vencido terá de pronunciar enigmática fórmula: «Tu tiraste-me a vida e voltaste a dar-me a vida». O enigma está em que a frase pareceria mais adequada na boca de quem a manda pronunciar do que na de quem terá de a pronunciar se não quiser morrer.

A vida equivale ao perdão que o vencido implora e lhe concedem : «Os animais são imperdoáveis e imperdoados, porque não esperam perdão.» Esperar perdão significa elevar-se acima da condição de animal. Esperar perdão e, sobretudo, tê-lo significa viver, ter a fulgurante consciência de ser a vida razão esmagadora. Mais que a tourada, festa da morte, é festa da morte a existência (e a escrita poética, por consumir o poeta). O homem tinha saído do seu sono para ir à festa dos homens, e os homens apunhalaram-no. Lá, na arena festiva, o sistema fechado dos «animais imperdoáveis». Dentro, no lugar do sangue, no corpo aberto de facadas por todos os lados, a abertura da ressurreição. O locus clausus abre-se em dom terrível, o perdão para o assassino.

Aquele que dá a vida é não somente quem se dá em perdão ao outro, como nele pode gerar a capacidade de (o) perdoar. Porque ambos cometem faltas, ambos descem ao inferno, e desse lugar ascendem.

Lendo de outra maneira (não significando isto que o assunto se esgote), não há duas personagens centrais no conto, mas uma só. Por isso carecem de identificação e se apresentam ambas como «o homem». Problema do eu e do duplo já anteriormente observado. Identifiquei uma das personagens pelo nome de «toureador» apenas para poder fazer o resumo da história, porque o conto apresenta estrutura narrativa complexa e obscura, não respeita identidades nem a sequência cronológica normal dos acontecimentos. O toureiro representa o toureado. Estamos sempre em presença deste arquétipo situacional habitual no autor, do perseguidor perseguido, ou da conjugação dos elementos contrários.

A tourada, na interpretação já clássica, representa o confronto entre as forças racionais e irracionais. No conto verifica-se a coincidentia oppositorum, não há por conseguinte vencedor nem vencido. O touro aparece algumas poucas vezes na obra herbertiana, ligado aos sentidos do ímpeto e das energias libidinais. Estas forças estão na base da criação poética. Por isso nos aparece o Minotauro no labirinto da palavra (52) , massa energética desencadeadora do processo da escrita. Em «Aquele que dá a vida», o touro propriamente dito aparece como figura secundária, pois os seus sentidos são absorvidos pela personagem que o representa, o toureiro.

O quarto instaura o lugar de passagem entre dois diferentes níveis de conhecimento, não podendo por isso ser dissociado do acto de pensar. É a sucessão de instantes de pensamento (lugares) que se exprime em frases como esta: «não sei como pensar de quarto para quarto» (21). A verdadeira viagem será sempre interior, será sempre uma katabase, um exercício corporal (11) : descida iluminante ao obscuro labirinto governado pelo Minotauro. Mas para descobrir que a única viagem possível para o poeta só pode ser feita na dimensão interior, será necessário, antes, ir à festa dos homens. Sentido conclusivo das narrativas «Descobrimento», «O quarto», «Aquele que dá a vida», «Trezentos e sessenta graus». Porque o poeta conhecer a festa dos homens, poderá escrever o texto «A poesia é feita contra todos» ( 45) , significativamente publicado em Outubro de 1974.

De tudo quanto foi visto e experimentado no corpo durante a estadia na festa dos homens sobra aterradora sabedoria, porque em total oposição com a realidade maquinal do quotidiano, e inaplicável a ele: «Que hei-de fazer de toda a minha sabedoria ?» pergunta o poeta quase ao fechar o livro.

O facto de o viajante ser confrontado com novos aspectos da realidade produz nele insegurança e inquietação. Porém, o poeta não busca a segurança social, antes o inverso: a ruptura entre o modo de estar conforme e a instabilidade do não ter ainda real modo de estar . Não se deseja ser conforme, mas romper com o conformismo, encontrar forma mais pura e essencial de relacionação com o mundo visível e o que o determina. No fundo, o que determina a visibilidade do essencial será a profundidade do olhar, a capacidade de ver e não apenas de reconhecer um objecto por ser idêntico a outros. Conformista é quem cristaliza os objectos através do hábito, em relação invisual, ou quem tem hábitos por não ser excêntrico relativamente ao saber estatuído. Ora, o estrangeiro mostra-se duplamente excêntrico: em relação ao sistema de conhecimento fechado, do qual se afasta cada vez mais pela interrogação e negação; em relação ao impensado - o mundo do desejo - do qual se vai aproximando por etapas circulares. Se o percurso se faz orbitalmente, isso significa que o poeta se move numa zona de confronto de tensões: ou o sistema da realidade social o caça («Polícia», «Cães, marinheiros»), ou o caça a loucura («Estilo», «Brandy», «Sonhos»). Entre as duas diferentes maneiras de alienação - do social e do imaginário - a primeira pode ser a salvação: atingindo a máxima consciência, o poeta nunca fica desligado da realidade concreta, corporal. Se a unidade é possível - e outra coisa não demandam poeta e poema - é necessário transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Será este o estilo de viver a vida, longe das festas públicas, e na obscura comunhão de sangue e palavra.

Sendo conformista quem estabelece com os objectos maquinal relação de menor esforço, o poeta não tem com que ser conforme, pois permanentemente entra em confronto com o que não domina. Para dominar precisaria de permanecer o tempo bastante junto do objecto, até lhe sentir a presença sem mesmo o ter visto. Ora, o estrangeiro não se fixa, tem destino nómada; o objecto maior da demanda situa-se fora da realidade externa, a qual lhe dá somente pontos de referência para a outra viagem. Isto o obriga ao perpétuo discorrer através dos mapas, neste caso, narrativas. Deste modo, viagem e conhecimento ligam-se estreitamente ao processo de criação poética: cria-se na medida do dinamismo pessoal, desde que se seja capaz de destruir o já pensado e construir o impensado, ou seja, de pensar de maneira diferente. Afinal, a singularidade não se situa no plano da ideia nova, mas da nova maneira de exprimir as inquietações ancestrais do homem. Mas o processo da criação gera a angústia, visto que se transforma em círculo vicioso: de cada vez que a criação se efectua, imobiliza-se, donde necessário se torna voltar ao princípio, dinamizando-a pela destruição.

Este facto evidenciou-se com a publicação de «Cobra» : os exemplares do livro distribuídos pelo autor são todos diferentes entre si, e diferentes da versão pública, distribuída nas livrarias. Interrogado a propósito, Herberto Helder respondeu:

«As versões têm variado de destinatário para destinatário, ( ...) porque o livro, em si mesmo, digamos, flutua. É um livro em suspensão. (...) Não é excitante que um livro se não cristalize, não seja 'definitivo'?» (53)

A suspensão, a não cristalização do texto, em suma, este curiosíssimo facto - talvez inédito na história dos livros - de não existir um poema chamado «Cobra», porque existem dezenas de «Cobras», é a manifestação física - extrema - da insatisfação provocada pela demanda da criação original, primeira. «Cobra» virá a ser livro definitivo quando o poeta chegar a Singapura. Nada pode ser definitivo senão o princípio ou fim absolutos. Por isso, só o silêncio ou morte podem ser citáveis (53), só eles correspondem ao descobrimento definitivo do estilo. O caçador enreda-se sempre na própria teia, e a solução será a infinita regeneração da Ouroboros, o incessante dar passos em volta (da vida, dos textos). Mas à medida que o texto se faz, desfaz e refaz, mais apertados se tornam os círculos e mais perto o viajante vai ficando do eixo em torno do qual roda. «Os Passos em volta» são, do mesmo modo que «Cobra», uma estrada em caracol.

 




 




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