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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.

V - PORTAGEM
O CORPO O LUXO A OBRA
2. O corpo no espaço

 

O poema abre com uma epígrafe de «Húmus» (41) alusiva à pedra-ouro-palavra, equivalente da árvore da vida - o poema. Tema da transmutação corporal (verbal), única forma de o poeta se integrar revolucionariamente no mundo e de o transformar, neste caso, diriamos, com especial referência metafórica à via húmida: «O luxo do espaço é um talento da árvore, / a arte do mundo húmido.» Em «Cobra» a transmutação do corpo verbal assentava simbolicamente na via seca e rápida, mediatizada pelo fogo.

No que diz respeito à obra transmutadora -

«A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem com o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa.» (55)

- importa sobretudo observar que ela incide no sujeito e na linguagem. Aliás, o atanor alquimista, no seu sentido mais fundo, sempre foi interior. Tudo o mais era secundário, e provavelmente apenas simbólico. A matéria transmutada em ouro pelo alquimista era o seu próprio corpo, a operação visava o aperfeiçoamento espiritual. Mas justamente aí, no domínio simbólico, Herberto Helder age transformadoramente, ao operar sobre a matéria verbal. Necessariamente, a acção metamórfica sofrida pela linguagem vai obrigar a que a linguagem transforme o sujeito. Este será o sentido mais importante dos poemas em que encontramos, como em «Transforma-se o amador na coisa amada», o tema da mútua transformação ao serviço da criação poética.

O ponto da mútua transmutação é fundamental, porque toca as relações da literatura com a sociedade: a linguagem do poder é inoperante no plano da transformação social, por não alterar as estruturas de pensamento; talvez o poder da linguagem consiga a transformação: tendo origem na liberdade pessoal, sendo por isso diferente, a linguagem poética não se assimila directa e passivamente sem pensar. Ela obriga a pensar, pondo em movimento a dinâmica corporal em termos de liberdade de imaginação. Penso que qualquer mudança profunda da sociedade terá de passar pelo lugar do sujeito - substituindo a linguagem do poder pela do prazer -, com mutação das estruturas do imaginário. Nesse ponto, a linguagem poética pode agir com alguma eficácia, porque estabelece uma corrente emocional entre duas subjectividades.

Voltando a «O Corpo O Luxo A Obra», direi que o poema está muito longe do que se poderia chamar o pensamento instituído. Para minimamente o entender foi preciso grande esforço de compreensão, donde a sua categoria de texto actuante.

Se «Cobra» é um poema brilhante, este último, retomando-o na linha temática e clarificando-o em certos pontos, é sobre- tudo poderoso e de notável perfeição. Só o estilo mudou, pois «O Corpo O Luxo A obra» aparece totalmente depurado dos aspectos magnificentes de «Cobra». De resto, o poeta tem grande versatilidade, renovando-se formalmente de livro para livro, e de poema para poema. De «A colher na boca» (17) até «Antropofagias» (31) passa-se do barroco com fundo mágico, na linha da despesa carnavalesca própria das festas primaveris, para a linguagem familiar, ao serviço da explicitação da familiaridade do poeta com o poema. «Antropofagias», por ausência de pontuações e recurso a segundo discurso encaixado com as aspas, é muito diferente de «Lugar» (36) ou de «Poemacto» (6), por exemplo. O tipo de verso também é diferente.

«O bebedor nocturno» (22), por sua vez, não se assemelha a nenhum outro livro, visto tratar-se de traduções e versões. «A máquina lírica» (18) tem de novo, relativamente aos textos anteriores, o recurso à área lexical da tecnologia - satélites, aviões, as viagens espaciais. Estamos na época em que os primeiros satélites chegam à Lua, à mater lunar - «A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -» (29) - e o poeta não pode resistir à tentação do luxo do espaço: toda a área e enorme distância siderais serão arrastadas para o interior do corpo que as devora, ultrapassando pantagruelicamente os seus limites corporais. Tal espaço sideral instalado dentro dos limites da «carne em seu tecido / redondo» reaparece em «O Corpo O Luxo A Obra» :

«O som espacial da pedra cai
no fundo do dia,
pulsa
a noite vascular, estendida
como uma toalha.
E dentro dessa noite cheia de ar negro,
os planetas
luzem
como rostos que se aproximam com as fendas
de sangue.»

A paisagem aqui descrita assimilou no corpo a rede de constelações concretas, para as transportar para o corpo verbal: «E escoa-se em mim o caudal/nuclear dos astros». Uma das fontes de inspiração mais importantes do poeta é o espaço sideral, visto frequentemente segundo a linha de significação astrológica.

Mas «A Máquina Lírica» (18) oferece também diferente 'maquinação' do verso e da frase -curtos -, implicando ritmo sincopado e mais acelerado. Ficamos longe da frase solene de «O amor em visita» (2), pois neste visa-se a concordância da fala com a exuberância telúrica, e na máquina lírica a escrita chega às vezes a parecer maquinal, mecânica: enérgica, repetitiva, económica, e desprovida de aspectos magnificentes.

«Retrato em movimento» (44) compõe-se inteiramente por poemas em prosa, sendo por isso novidade no conjunto da obra. Há, porém, nítidas diferenças formais internas: se «A imagem expansiva» (21) chega a tocar o sublime - para utilizar as expressões de A. Ramos Rosa -, já a linguagem de «Artes e ofícios» (19) se aproxima por vezes da secura e referencialidade directa do texto informativo de jornal.

"Cinco canções lacunares" (54) será o livro menos homogéneo de todos, evidenciando a heterogeneidade da poesia toda. As canções são lacunares por existirem lacunarmente, isoladas de outras; trata-se de um grupo de cinco textos soltos, que não formam um conjunto coeso. "Bicicieta" (37) tem algumas semelhanças formais e temáticas com "Poemacto". (6) e "Lugar" (36) ; "Canção despovoada" (39) integra forte subversão da linguagem poética habitual, com transportes violentos e frase assintáctica: "Há um crime sagrado onde / o mês aparece com. Digo. clareira."; a "Canção em quatro sonetos" (15), como o título indica, compõe-se de quatro sonetos, a única concessão do autor a formas clássicas ao longo da sua obra. Naturalmente, serão sonetos bem diferentes dos clássicos: pelo uso do verso livre, pela disposição gráfica, e inclusivamente pela temática. Transcrevo um fragmento em que a própria forma poética aparece corporalizada, estabelecendo o espaço carnal de aliança erótica entre poeta e poema.

".......................................................E o soneto
veloz abranda um pouco, e ela curva o corpo
teatral - e o ânus sobe como uma flor animal.
O meu pénis avança, no soneto que soletro
como uma dança, ou um peixe negro nos
frios planos sombrios e sonâmbulos:

- a aliança intrinseca de um pénis e de um ânus."

Não existe rima, pelo menos exterior, mas há paralelismos sonoros muito nítidos (pouco/corpo/flor; teatral/animal; abranda/avança/ dança/aliança; soneto/soletro/negro. sonâmbulos/ânus), visíveis também noutros poemas, particularmente em "Retratissimo ou narração de um homem depois de maio". (33).

"Um deus lisérgico" (35), ainda em "Cinco canções lacunares", usa o duplo ou triplo espaço entre as palavras em vez de pontuação. A linha temática mais forte será a da visão alucinada do corpo enquanto foco luminoso interno: "Acima das jubas molhadas pelo sangue/ ele viu o Rosto com seus buracos vertiginosos". A designação lacunares pode também ajustar-se perfeitamente aos «furos ígneos» e «buracos» vistos nesta paisagem facial. As lacunas entre as palavras, evidenciando-os, dão-nos de facto a visão lacunar do poema. O último texto - «Os mortos perigosos, fim.» (46) oferece a surpresa da suspensão final:

".............................................E a tua idade suspira
como um animal louco.
Quando."

Do ponto de vista lexical e até temático, «Os mortos perigosos, fim.» aproxima-se de «O Corpo O Luxo A Obra». Finalmente, «Os brancos arquipélagos» (26) é um texto curioso porque construído quase essencialmente com nomes, aparecendo os verbos em número representativo só no sexto bloco. Trata-se de pura enumeração de centros energéticos fixados independentemente de articulação lógica com outros, e existindo lacunarmente, ou seja, na ausência de faixas ver bais mortas (13) : apenas se captou a energia do objecto, desgarrado de antecedentes e consequentes :

«geografia em pólvora, solitária brancura
deflagrada, é a flor das lâmpadas, poeira
a fremir por canos finos, largura escoada,
imprime-se o espaço em transe,
pulmões na camisa, por ser devagar,»

Como se nota, neste fragmento só existem duas formas verbais conjugáveis (é, imprime-se), tudo o mais são substantivos e adjectivos. Mas o curioso não virá do facto de se tratar de poema 'semantemático', sim da capacidade de extrair acção e movimento de termos que gramaticalmente não têm por função exprimi-Ios, como será bem evidente na expressão «geografia em pólvora», ou «largura escoada», como se o nome funcionasse em vez do verbo. Observe-se ainda que o poema desprezou as pontuações fortes, utilizando unicamente as vírgulas. Daí a inexistência de maiúsculas iniciais, e consequente inexistência de princípio e fim do poema.

Estas observações retrospectivas visaram dar a ideia da grande capacidade do poeta em se metamorfosear e multiplicar, mas sobretudo tiveram a intenção de mostrar que grande parte dos artifícios técnicos utilizados por muitos autores portugueses contemporâneos - e também recurso a áreas lexicais e termos obsessivos - vêm directa ou indirectamente de Herberto Helder.

A relação de «O Corpo O Luxo A Obra» com «Húmus» estabelece-se por via temática, mas sobretudo por via espacial: os poemas têm o mesmo aspecto gráfico, ocupando e desocupando o espaço da página de maneira semelhante, com segmentação da frase em versos paralelos mas assimétricos. Alternam os longos versos com versos constituídos por uma palavra só, começando os posteriores no ponto onde acabam os antecedentes. Tal tipo de arranjo espacial visa a concordância do texto, enquanto imagem visual, com a visão do modo como a árvore habita o espaço tridimensional : subterrâneo, terrestre e aéreo. As ramificações arbóreas e energético desenvolvimento radial do ouro ficam claros na estrutura espacial de uma estrofe como esta :

«Eram
rápidas,
fortes,
espaçosas
as noites do poder. O alimento vinha
com o apuro do mel. O dom
desenvolvia em mim esses mesmos rostos
abertos a meio, com a lua
e o sol dentro e fora.
Lanho a lanho
cerrara-se a carne em seu tecido
redondo.»

O ciclo alimentar de «A colher na boca» reaparece. No poema concentra-se determinado número de significações já conhecidas de outros livros do autor, visto serem as linhas de força e a coluna vertebral do seu universo. Por exemplo, reencontramos as musas cegas (8), embora se fale agora de outras cegueiras:

«.......................................o que alimenta
as musas
abismadas
é tudo quanto me cega.»


O poeta fica ofuscado ao alimentar-se do poder que alimenta as musas; ele será a sua própria musa, alimentando-se de si mesmo, à semelhança da autodevoração sofrida pelo poema-corpo.

O luxo é naturalmente um dos centros de interesse do livro, e pode ser analisado de ângulos diversos. A obra transmutatória, por exemplo, pode ser encarada como um luxo, por incidir essencialmente no domínio do individual e particular: o sujeito e sua linguagem. Mas na verdade, o poeta só pode inserir-se no processo metamórfico geral e universal através da sua própria transformação corporal: a transformação do pensamento e consequentemente da linguagem. Ou antes: só na medida em que o poeta actua transformadoramente no seio da matéria verbal pode transformar as suas estruturas de pensamento, e seguidamente agir através dessa metamorfose no espaço da linguagem e pensamento sociais. As revoluções só podem vingar a partir da alteração do sistema de pensamento, que o mesmo é dizer, a partir da revolução da linguagem. Isto também significa que, sendo a linguagem a apropriação pessoal da língua, enquanto fala específica do poeta, a revolução vinga se passar pelo corpo individual, nunca se for assimilação passiva de qualquer linguagem do poder, colectivamente imposta. Qualquer sistema de pensamento colectivo se cristaliza em instituição, mumificando-se. A verdadeira revolução precisa de ser permanente. Ora, só o individual consegue a transformação permanente, nunca o sistema social instituído. Daí também que toda a literatura que se aproprie da linguagem do poder instituído (ou instituível) caia na contra-revolução, apesar do conteúdo eventualmente revolucionário, e seja muito mais revolucionária a linguagem assente na transformação do sujeito - a mais subjectiva das linguagens -, particularmente na transformação do corpo, que o mesmo será dizer, do desejo, e da transformação individual dos códigos de significação de uso colectivo.

Neste ponto se situa Herberto Helder, com a sua fala poética essencialmente dependente das metamorfoses do desejo subjectivo, por isso a mais radical linguagem corporal existente na literatura portuguesa. A versatilidade, pensamento corruptor da ordem, de ordem por vezes criminal - patente de forma mais sistemática n'«Os animais carnívoros» (30) - constituem não uma teoria transformadora, mas a prática efectiva da transformação do mundo através da metamorfose permanente do corpo e do corpo verbal. O leitor só não cai «morto na pátria rudimentar das imagens» (21) , por não chegar a entrar verdadeiramente no espaço de risco criminal constituído pelas «oficinas explosivas» (45).

Mas o luxo do poeta é também a linguagem, a sua linguagem um carnaval, porque festa, irrupção do excesso e violentação da ordem. Espaço de crime, com pantagruélico consumo de carne em tempos de austeridade:

«Esta é também a clareira dos crimes, uma festa para consumir o corpo, a sua paixão lida ou não lida, escrita ou não, em silêncio, em voz, de pé, deitada como o jornal acabado no seu dia, que é único.» (19)

A arte e o ofício do poeta são os crimes do corpo integrado intimamente na matéria verbal :

«Numa fábrica de papel registou-se um invulgar desastre no trabalho: um operário caiu num misturador e ficou literalmente transformado em pasta para papel. (...) O corpo achava-se integrado nas folhas de papel que continuavam, entretanto, a sair das prensas.» (19)

Será de natureza carnívora o mais frequente dos crimes herbertianos. Neste ponto, tocamos a rede significativa das «Antropofagias», e o excesso carnavalesco. No caso da citação anterior assistimos à fase antropofágica em que o poema devora o poeta. Após a mútua devoração - a comunhão de poderes - surge o poema-corpo, ponto de confluência da consciência do poeta e do poema, ou seja, ponto de confluência de duas ciências.

Herberto Helder tem a paixão do crime: «A violência envenena-me» (55). O crime funciona magneticamente, em termos de objecto altamente fascinador. De facto, o crime é um acto que, para além de violentar de imediato qualquer código social ou moral, traz a fascinação das obscuras motivações desencadeadoras do gesto excessivo, gratuito, primário e irreprimível. Isento de finalidades interesseiras, apenas excesso corporal, ele é uma das muitas musas cegas.

O mais corruptor dos crimes será o luxo de erguer o poema contra todos, na mais radical inutilidade:

«Temos tudo o mais contra os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia, por acaso, estar o nosso endereço.» (45)

Como se lê, esta linguagem está longe da linguagem do poder, obriga a rever muitas concepções cristalizadas pelo hábito. Crime será o conhecimento fora da manipulação institucional, fora das manobras sedutórias destinadas a promover o poeta à categoria de sustentáculo de poderes políticos (da linguagem do poder). O poema é organismo vivo, em permanente transformação de si e do mundo, não aceita outras permanências que não sejam as do imaginário (o imaginário permanece, mas em curso metamórfico), as coisas divinas:

«Tudo morreu em nós, menos exactamente a morte das coisas divinas. É por dentro dos poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma política da ignorância pessoal, que nos compelimos assumir até ao fim, para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a saber que nunca estivemos.» ( 45)

Fala-se também do espaço de manobras poéticas em «O Corpo O Luxo A Obra», espaço ocupado pelo poder pessoal. Trata-se de evidenciar a magnitude do lugar poético e corporal. O locus clausus abre-se na maior expansão, carecendo de quaisquer fronteiras. Há a sensação das larguras infinitas, desses «dias ópticos» ocupando todo o espaço das estações. Veja-se como se exprime essa magnitude dos campos-Iivros, dos campos livres e abertos que se desenvolvem adentro dos limites corporais e verbais :

«Longas estrelas rodam entre os pólos
das salas, voltam-se
as camisas
na translação dos dias ópticos, todo o ar se enche
de noites
largas.»

O livro refere mortes e ressurreições, tal como em «Húmus», feridas e cicatrizes. O poeta renova-se em cada poema escrito, cada poema escrito abre a ferida na garganta - a «corola cesariana». Cada novo poema resulta de lugar ferido, cada novo poema opera cirurgicamente a cicatrização da ferida aberta, para ao terminar deixar a garganta em sangue :

«Quando
as veias dos mortos fazem um nó vivo
com as minhas veias,
a voz
costura-se com as linhas de sangue
da sua fala.»

Estamos em presença do poema-corpo, o «sorvedouro» que faz «um laço de carne» em torno de tudo. Progressivamente o poeta tem vindo a absorver a variedade de campos de conhecimento no espaço metafórico do corpo, ou seja: o mundo, nos seus aspectos e objectos vários, é absorvido em termos alimentares e doado ao poema sob a forma de metáfora corporal, sobretudo visceral.

Dada a fusão das parcelas na unidade, daí resulta a supremacia do sujeito e a total ausência da segunda pessoa verbal. Tal facto tem vindo a acentuar-se ao longo dos textos do autor, e já fora evidente em «Cobra». Se n'«O amor em visita» (2) o tu se alargava da mulher à Tellus Mater, para finalmente alastrar à totalidade das coisas criadas, neste poema a segunda pessoa é já algo de assimilado orgânica e alimentarmente pelo poema. A ausência resulta do facto de já não ser objecto, tendo-se tornado corpo poético do sujeito. Criador e coisa criada são um só. A antropofagia opera a comunhão de poderes, reúne num único ser o corpo subjectivo e objectivo.

O poeta unificou completamente a voz, dispensando interlocutores internos e externos: o espaço é um luxo, a independência será outro luxo que o poeta se permite. Diríamos que em «O Corpo O Luxo A Obra» há um verdadeiro manifesto de individualismo e independência: o poeta e o poema autonomizam-se, escrevendo-se e descrevendo-se à maneira científica, na ausência de receptor interno: «Assim / o nervo que entrelaça a carne toda, / de estrela a estrela da obra». As únicas relações expressas de comunicação verificam-se em circuito interno, vão ser estes laços nervosos traçados de poeta a corpo poético. Há nítida rebelião relativamente ao conceito de arte como coisa útil, utilitária - daí também o luxo -, dirigida a alguém em particular, ou visando finalidades culturais ou pedagógicas de qualquer espécie: a poesia é feita contra todos. Sendo fundamentalmente a linguagem do humano, da por vezes doçura e fragilidade do humano, a poesia de HH evidencia também grande crueldade. A unidade do corpo é conseguida pela polarização de impulsos contrários mutuamente reversíveis: a crueldade pode ser um gesto de ternura, a doçura pode assumir a violência dos animais carnívoros. A audácia de tais implicações não deixa de ser perturbadora, alterando grandemente as nossas próprias concepções da vida.

O poema não fala com alguém de circunstâncias alheias a si, o poema-corpo esventra-se na obra, explicitando unicamente as relações de ser a ser em palavra, e os mecanismos fisiológicos da obra, afinal corpo poético, ou seja, corpo imaginário do sujeito. Por isso toda a paisagem será interna e visceral, porque o imaginário estabelece a profundidade real do ser; não do homo faber, mas do homo fantasia, o fabricador de universos em permanente translação e rotação metamórficas. O faber apenas fabrica utilidades temporárias, o fantasia determina a permanente alteração da permanência instuída : altera a sensibilidade, o modo de conhecimento, altera o seu próprio poder de criar a acção eterna. Se as coisas existem em função da perspectiva, do lugar ocupado pelo sujeito do olhar, toda a transformação do sujeito implica a transformação das coisas visíveis: tudo o que existe depende da consciência do sujeito, altera-se de acordo com as variações de grau de consciência.

O poeta tem como centros de referência exemplar os mecanismos internos do aparelho textual, querendo isto dizer que tem como alvo de caça a fisiologia da sua máquina do imaginário: máquina lírica, eis o nome que o poeta atribui ao homo fantasia. Katabase será o nome da viagem gnoseológica às potencialidades de criação de real latentes e viventes nos alicerces da máquina corporal. A poesia é a linguagem do corpo, é o mundo real. O homem não desaparece; quando fecha os olhos, o que desaparece é o mundo. Por isso, real é o corpo e a sua linguagem. Tudo o mais se desvanece a um simples piscar de olhos, pois o poeta vê, mas as musas são cegas. Daí também a obsessão do autor pelo motivo dos olhos, grandes e abertos, porque ver significa existir e criar o real :

«A pupila deste animal grande como uma pálpebra
ao espelho, nua, a dormir ,
sob as radiações
brancas.»

Se virmos bem, o animal tem uma pupila tão grande que para a cobrir toda a epiderme se transforma em pálpebra. De cada vez que a cerra, o mundo - o seu espelho - desaparece. O espelho só existe por existir a pupila: a luz totalizante da consciência. Isto, vendo as coisas do ponto de vista do sujeito, já que não as podemos ver do ponto de vista do objecto: as musas não têm consciência, por isso são cegas.

Por consequência, visto ser a poesia a linguagem do corpo, e o corpo constituir o real, a poesia é e cria o real. Fora dela só existe o homo faber a construir máquinas de pensar por si, sujeito à escravatura do trabalho útil-inútil, fabricando objectos de que não precisa para se alimentar - alimentar no sentido em que a colher pode ligar a carne à violência do espírito (17).

O locus clausus constituído pelo corpo cerra cada vez mais as portas sobre a vida poética, absorvente, absorvida que foi a realidade exterior; não existe tal realidade exterior, pois foi devorada e digerida pelo texto. Onde n'«As musas cegas» (8) já se estabelecia a correspondência unitária de palavra e objecto -

«Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.»

- agora não existe palavra nem objecto, apenas o corpo, o luxo da arrumação definitiva do corpo na casa una: a obra.

Aquele rosto já sem fronteiras (13) será esta rebis expansiva, que tudo alcança e tudo compreende, que está fora e dentro, em baixo e ao alto. O poeta consegue a metamorfose da palavra no corpo da sua opus magna, a sua obra grande, a acção e poder corporais fundiram-se no texto, gerando o poder e acção da obra. Daqui para diante tudo será possível, pois atingiu o lugar da acção por excelência - o corpo: «A sua força e poder são absolutos, quando transformados em terra, para receber a força das coisas superiores e inferiores. ( ...) Toda a obscuridade te abandonará. No interior disto está o poder (...). Disse Hermes Trismegisto.» (55)

«Toda a obscuridade te abandonará»
disse Hermes Trismegisto.

 




 




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