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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.

III - COBRA
MONTAGEM E RACCORD

 

Este texto sobre «Cobra» já começa a ser bem longo; os bons poemas são estimulantes e nunca se esgotam. A esta capacidade de geração constante de sentidos característica da grande poesia chamo a complexificação. Texto complexo é aquele que, a partir de um número maior ou menor de palavras, possibilita infinitas leituras e interpretações. Só na aparência os poemas se fecham num limitado número de palavras, na realidade abrem-se à plurissignificação. Tal facto também só é possível nos textos que enigmatizam, ou seja, aqueles que vivem da sua própria energia interna, criando uma realidade autónoma daquela donde porventura partiram: se o texto parte das circunstâncias objectivas do mundo que nos cerca, e acaba sempre por traçar o mapa da realidade social e histórica em que se inscreve, também ultrapassa essa realidade, podendo ser lido independentemente dela. Quando o poema se torna dependente de contextos exteriores a si transforma-se em simples documento histórico, perdendo a capacidade física de se metamorfosear e, por isso, de criar novas significações.

A dificuldade do comentador, no caso de poemas complexos e autónomos como os de Herberto Helder, reside na selecção mais ou menos feliz, mais ou menos pertinente, de linhas de leitura. Visto que as possibilidades de descodifícação não se esgotam, fica sempre algo por dizer, e o comentador pode sentir a angústia de não ter feito a melhor selecção, deixando de parte o mais importante.

No caso de Herberto Helder, tal sucede por motivos vários, entre eles pela circunstância de o signo agir fortemente sobre o imaginário do leitor, desencadeando a teia de associações e de desenvolvimentos a partir de um motivo ou tema inicial. A intensa motivação existe porque o signo não remete só para objectos particulares e concretos, mas também para universais. Na obra herbertiana o signo funciona simultaneamente como símbolo. Esta dupla e simultânea actividade de signo e símbolo tem por consequência enorme irradiação de sentidos, entre os quais justamente o leitor fica enredado; precisa, por questões de método, de seleccionar, mas fica com o escrúpulo de não ter feito a selecção mais válida. Se há opacidade nos textos, ela deve-se à grande concentração de vectores de significação na sua tessitura.

Da dupla e simultânea actividade de signo e símbolo resulta ainda a rigorosa integração do elemento de significação na totalidade do poema: não somente ele se articula intimamente com outros que lhe estejam próximos (o que leva também a que não existam metáforas a soar falso), na frase ou na estrofe, como pode espelhar núcleos de significação mais amplos, quando não o poema inteiro. Se a primeira estrofe de «Cobra» funciona como síntese do poema no plano do conteúdo (o percurso das estações simbolizando o percurso da idade e a regeneração cíclica da vida), e como sua imagem no plano da expressão (a circularidade), há unidades ainda menores cujo funcionamento se revela semelhante.

Na segunda estrofe de «Cobra» encontra-se um bom exemplo da dupla e simultânea actividade de signo e símbolo na palavra obsidiana. Enquanto signo, a obsidiana remete para sentidos ligados à área do particular: pedra de origem vulcânica com a qual se podem construir objectos concretos tais como facas, espelhos, ornamentos ou, neste caso especial, um leque. Enquanto signo, liga-se a outros elementos minerais ou ctónicos da estrofe em que se insere - as víboras, os tentáculos radiciais, a terra - ou do poema na sua totalidade: os espelhos, o fogo, e muito em especial as outras pedras, de adorno ou não: mármore, granito, ágata, diamante, coral (no caso do coral, a obsidiana estabelece também relação com a vida animal, facto que implica a animização da matéria petrificada, habitual na poesia herbertiana), etc.. As pedras, como tem sido apontado, são objectos dotados de grande capacidade fascinadora sobre a imaginação do autor. O primeiro texto de «Lugar» (36), por exemplo, gira em torno do encontro com a pedra móvel, orgânica e mágica.

Independentemente do valor particular de cada uma delas, o que de comum as liga será a sua durabilidade e resistência, por oposição, sobretudo, a outro campo semântico que também exerce alguma atracção sobre o poeta: o das flores. Note-se, entretanto, que a presença das flores nunca está ao serviço da representação de lugares visualmente encantadores. As flores relacionam-se quase sempre com a vitalidade e capacidade regeneradora da terra, daí que venham muitas vezes a ser sinónimas dos signos: a palavra-flor indica a natureza física da linguagem, a sua força criadora. A flor está na origem da vida, é uma espécie de objecto totémico, ponto de referência original, tal como podemos observar neste fragmento de «Prefácio» (4):

«Contudo, só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.»

Na medida em que a flor oferece uma faceta de fragilidade, vai opor-se ao aspecto durável e resistente da pedra. Por isso nos aparece, em «Cobra», uma imagem em que se conjugam estes dois pólos antagónicos - de longa e curta vida - nas «flores cerâmicas». Na estrofe onde se menciona a obsidiana, a imagem que inclui a rosa também evoca a pedra, dada a presença das raízes mergulhadas no espaço telúrico: «as rosas nos tentáculos / pelos abismos da terra.»

Como símbolo, a obsidiana remete para práticas mágicas de cura que serão objecto de atenção por parte do autor no segundo poema de «E outros exemplos» : a faculdade de abrir e fechar a carne humana: «do outro lado faiscando / todos os astros: / as obturações as / aberturas na carne:». A esta faculdade devemos acrescentar ainda o tema da antropofagia ritual. De facto, as facas usadas outrora (no México e no Peru, por exemplo) nos sacrifícios humanos eram feitas de obsidiana. Em todo o caso, a homologação faz-se indirecta e viciosamente, pois a pedra representa o corpo. Fiz já algumas referências a este aspecto, o qual toma parte na particular 'mitificação' herbertiana, e se verifica um pouco por todo o lado. Citemos, a título de exemplo, «Para o leitor ler de/vagar» (34) , «Lugar» (36), e também «Cobra». A obsidiana espelha assim grande número de temas no texto: o diálogo luz/treva (por ser pedra ígnea), abertura/clausura, ocultação/revelação (por se tratar do leque), baixo/alto (pela articulação da terra com a lua). E ainda: porque a obsidiana foi usada, como vimos, nas lâminas das facas de sacrifício1, vai estabelecer relações de significação com a doença (enquanto marca deixada pela provação iniciática) , e com o «vitelo brando», animal de sacrifício. Por outro lado, sendo pedra - herma -, o símbolo remete para os mitologemas da criança divina, para o saber hermético, e para a instauração de centros (lugares de instalação do sujeito e de colocação da voz) : a herma, tal como o lapis (na sua dignidade de filius sapientiae), ou outras pedras consagradas, oferece, na projecção vertical, a imagem do axis mundi.

Este aproveitamento das possibilidades oferecidas pela matéria verbal dá o modo de expressão típico em Herberto Helder, ao serviço da sua cosmovisão : o mínimo espelha os processos do máximo: n' «as massas de cristal/dos quartos planetários» o mínimo dos quartos vai espelhar o máximo das revoluções planetárias, o baixo dos quartos iguala-se ao alto das constelações.

Os signos-símbolos sucedem-se uns aos outros em rigorosa sequência, dado o aproveitamento da sua polivalência. Uma ou mais valências da unidade vão gerar outra unidade que tem essas valências em comum com a anterior; há, deste modo, uma espécie de sentido que flui, independentemente das fracturas narrativas que se manifestam ao longo dos textos.

O deslizamento de sentido, de elementos para elementos de significação, corresponde ao que em cinema se chama o raccord; com efeito, o raccord implica a existência de um elemento separador entre duas diferentes sequências, elemento esse que simultaneamente 140
estabelece entre ambas um traço de união, um hífen. Em «Exemplo» encontramos a ilustração mais clara deste aspecto da técnica poética de HH :

e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas
um caudal sumptuoso
cortado «era tão estranho!» pela ligeireza dos dedos abertos
delicado pentagrama a duas alturas
«uma estrela refractada» para falar do que se viu
na projecção do filme

Note-se que neste caso, por exemplo, a linguagem cinematográfica aparece expressamente utilizada, facto não raro na obra, sobretudo a partir do livro que primitivamente se chamou «Electronicolírica» e hoje tem o titulo de «A máquina lírica» (18).

Nesta estrofe, o símbolo pentagrama foi gerado pelo valor numérico da palavra cinco, implícito no signo dedos. A valência numérica do pentagrama gera por sua vez a estrela. Dupla estrela, pois refractada (retome-se o speculum), pormenor originado pelas duas alturas do pentagrama, as quais por seu turno tinham sido geradas pela representação das mãos (duas vezes cinco dedos) , a partir ainda do signo dedos. O raccord, nestas circunstâncias, é constituído pela valência numérica. Diga-se em boa verdade que a própria valência do número constitui o símbolo fundamental nesta sequência de três imagens. Já muitas vezes se sublinhou tal número, e não será ainda totalmente explicado por não ser o momento mais oportuno. O cinco tem categoria de símbolo se pensarmos que o objecto representado nesta sequência fílmica é o corpo microcósmico, algo de semelhante ao pentagrama de Leonardo da Vinci, o qual exprime a harmonia das proporções do corpo humano. E entendemos também a situação de refracção, ao aludir ao corpo humano na sua qualidade de imagem do corpo macrocósmico. Refractada, a estrela, e não reflectida, porque houve mudança de meio óptico com o antecedente «caudal», ou talvez também com a «projecção do filme», expressão que aparece a seguir.

Relacionando-se ainda com a montagem do poema filmico, vamos considerar um aspecto que se nos afigura extremamente curioso: o acto de referência. Não a referência a universos extra-linguísticos, mas ao próprio universo de discurso nos poemas. Estranho nele será o facto de provocar o desfasamento entre escrita e discurso. Algo como ver um filme que abolisse a sequência cronológica das acções. Isto acontece, pelo menos de forma mais evidente, com os deícticos: na escrita eles não funcionam, por os interpretantes não serem seus antecedentes imediatos. Um início de poema como o do terceiro de «E outros exemplos» (e, aliás, este próprio título) - «Esta é a mãe central» - confunde o leitor: que coisa é a mãe central ?

Em «Cobra» há exemplos mais claros de incoincidência; o discurso sobre a criança inicia-se na página 29: «Uma criança abisma-se no génio analfabeto». Mas o primeiro acto de referência vem na página 26, de chofre, antes de o leitor ter tido a oportunidade de ser apresentado a tal personagem, tão inesperadamente irrompendo do texto: «Nesta criança aumenta agora um arbusto de cálcio». Nestas circunstâncias, e no momento em que o leitor chega a este verso da página 26, tem razões para perguntar : qual criança ? O termo «esta» pressupõe um antecedente que não existe na escrita até àquele momento. O que acontece é que os interpretantes vêm após o acto de referência. Na página 29 apresenta-se de facto uma criança arrancada ao analfabetismo pelo confronto com aquilo que lhe vai servir de alimento: «Qualquer doçura lhe alimenta /os esplendores / da alucinação». O alimento torna-a luminosa - «Oh crianças de negros rostos vivos, / os candeeiros» - e fá-la crescer. Ora, o crescimento, no texto, vem antes do nascimento, pois o «arbusto de cálcio» (esqueleto ) da página 26 só pode desenvolver-se depois de ter sido alimentado, o que só ocorre na página 29.

Há uma espécie de estrutura helicoidal nos poemas; ela faz com que a escrita refira antecipadamente segmentos de discurso futuro ou recupere, como se os recordasse agora, segmentos de discurso anteriores, ou mesmo pertencentes a outros poemas. O poema entra desse modo em diálogo com a totalidade da obra onde se integra, ou estabelece diálogo com discursos alheios, caso mais evidente de «Memória, montagem», «Húmus» (41) e «A máquina de emaranhar paisagens» (23) .Note-se o início abrupto de «ExempIo» : «A teoria era esta: arrasar tudo». Faz-se referência a teorias de destruição implícitas em «Memória, montagem», explícitas e efectuadas no primeiro de «E outros exemplos». Talvez por isso, justamente, se verifique a recuperação cíclica dos mesmos títulos e a informação não final constituída por «Cólofon». Podemos contudo recuar a textos mais antigos, onde a destruição aparece como factor necessário de construção - «A máquina de emaranhar paisagens» (23), «Para o leitor ler de/vagar» (34), por exemplo.

Aquela primeira linha de «Exemplo» constitui sem dúvida referência a algo de exterior ao poema que inicia, mas interior à obra herbertiana; isso torna-se evidente se verificarmos que em «Exemplo» não há nem discurso sobre a destruição, nem qualquer processo retórico destrutivo, mas, bem pelo contrário, o discurso e atitude de reconstrução. Essa, a razão do mas: «A teoria era esta: arrasar tudo - mas alguém pegou / na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça». Torna-se difícil fazer citações minimamente completas porque «Exemplo», por exemplo, é um poema-frase.

Posto isto, a conclusão a tirar não pode ser a de falta de interpretantes que permitam estabelecer situações de discurso, mas do lugar ocupado no texto (e na obra) pelos interpretantes : semeados em círculo. Como a ponta por onde o leitor inicia a leitura não coincide forçosamente com o início do discurso (E haverá realmente um início ? Não se procurará, porventura, alcançar precisamente a origem mais remota do actual discurso ?) , é preciso ir dando voltas - passos em volta - até apanhar as pontas à meada.

O tempo da história enquanto diacronia não interessa ao poeta, preocupado sobretudo com as simultaneidades: à maneira de cartas de jogar, as diferentes sequências foram baralhadas na montagem, ou houve eliminação de «faixas verbais mortas» para se «marcar onde está o sangue, só». Só os pontos fortes permanecem no texto. Donde também não é forçoso que a leitura mais 'racional' dos textos consista em pegar neles por onde a escrita principia. Como já se observou, a estrofe primeira de «Cobra» só começa 'Iogicamente' pela sua extremidade - eis a serpente a morder a própria cauda. Iniciar um poema pela copulativa ( «E então vinha a baforada do estio» ) ou pelo demonstrativo («Esta é a mãe central» ) deixa logo claro que se trata de falsos princípios.

A incoincidência entre escrita e discurso vai ser, de resto, objecto de reflexão no próprio poema. Por razões outras - as razões do Outro reclamam atenção - é verdade :

«- Fala-se de um tigre, talvez, um tigre profundo,
sem sonhos,
movendo-se nos aros do seu próprio corpo com um feixe
de chamas de cada lado.»

A reflexão está não tanto na expressão modalizante talvez, mas na vírgula que lhe fica após. O tigre está na escrita, com certeza e sem talvez. Mas talvez o discurso não tenha qualquer tigre por objecto de referência. Quer dizer: o discurso está longe de se preocupar com tigres-tigres (quer os propriamente ditos referentes selváticos, quer os mais mansos caseiros signos). O tigre escrito é um tigre-tigre, mas o tigre do discurso é o discurso do Outro: o texto - meu - poderia começar agora.

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1. Será de obsidiana a faca empunhada pela criança demoníaca no desenho de Carlos Ferreiro? Ambos estabelecemos relações com facas quando tal objecto não aparece uma única vez em «Cobra». O único instrumento parecido presente no poema é a flecha, arma altamente privilegiada na obra do autor como símbolo da inspiração poética, elemento ascensional de natureza sagitariana, e metonímica representação do próprio poeta enquanto corpo cantante.

 




 




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